Cândido Portinari
De chaleira, como antigamente
Luciano Siqueira, no
Jornal da Besta Fubana
Antigamente, no
caso, faz bastante tempo mesmo: anos cinquenta do século passado, na Lagoa
Seca, em Natal, campo do Tremembé, onde transcorriam partidas que valiam por
uma final de Copa do Mundo. Em nossa imaginação de meninos.
A rigor, nem posso
dizer que fazia parte dos jogos no Tremembé, pois foram poucas as vezes que
pisei naquele chão meio areia solta, meio barro batido. Meu pai admitia tão
somente tímidas peladas na própria rua onde morávamos, a São João, esquina com
a Alberto Silva (“para evitar as más companhias”). Ali, em reduzido espaço, a
gente se sentia no Maracanã, disputando autênticos clássicos no barra-a barra
com bola de meia.
Mas o Tremembé é que
era mesmo o nosso Maracanã. E ali, numa barra feita por dois paus na vertical e
um cordão grosso fazendo as vezes de travessão, defendi um pênalti quase por
milagre – para alegria da galera; e também, na mesma partida, engoli um frango
decepcionante. Por debaixo das pernas, falha capaz de por abaixo a reputação
dos melhores goleiros da região. Eu era apenas sofrível.
A proibição de frequentar
o Tremembé o tornava objeto de fascínio. Certa vez, vindo de uma aula
particular de matemática com um jovem professor que, se não me engano, se
preparava para ingressar no Colégio Militar do Recife, parei para assistir o
final de um jogo eletrizante. Estava empate e a torcida era grande, nervosa,
parece que rolava aposta em dinheiro, coisa assim. Minha irmã Socorro, que nada
entendia de futebol, me viu à distância por trás da barra e deduziu que eu
teria matado a aula para tomar parte na peleja. Resultado: me denunciou em casa
e terminei levando uma surra de minha doce mãe Oneide, que raramente nos batia
em reprimenda por alguma falta considerada grave.
Essa surra doeu
muito, mais moral do que fisicamente, por se tratar de uma imensa injustiça. E
eu que gostava mesmo de estudar, no dia seguinte resolvi cometer o pecado pelo
qual pagara, sem razão, na véspera. Talvez o primeiro marco da minha índole
rebelde, que anos depois me levou à militância no movimento estudantil.
Mas, por que hoje,
mais de cinco décadas passadas, me vem à memória lances de modestas peladas?
Porque acabo de ver em reprise na TV um gol de chaleira feito por Nilton, meio
campista do Cruzeiro de Minas Gerais, contra o Botafogo do Rio de Janeiro, não
faz muito tempo. Batido o escanteio, fez-se o bolo de jogadores dentro da área,
aquele agarra-agarra onde vale tudo e o juiz nunca dá pênalti, e a bola sobrou
para Nilton, que bateu meio sem jeito, quase com o calcanhar, um tanto
desequilibrado. Exatamente a chaleira do meu tempo de menino. Um gol
espetacular, sonho de qualquer atacante naquele tempo.
A chaleira tinha
tanta importância no imaginário da turma da Lagoa Seca, que ficávamos a tecer
lances incríveis protagonizados pelos craques da seleção brasileira, Zizinho,
Ademir e outros tantos, destaques nos álbuns de figurinhas e nos sonhos da
meninada.
O tempo passou, já nem
me lembrava da preciosa chaleira, até que nesse Cruzeiro X Botafogo o Nilton me
vez reviver a infância. Grande Nilton! Feliz meu tempo de menino! Viva as
peladas de rua! Viva o bom futebol brasileiro!
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