Emir Sader, no Brasil 247
Pudemos ver ontem dois pedaços do
mesmo país, mas que pareciam pertencer a dois países distintos. As mais
maravilhosas manifestações populares, de norte a sul, com música, alegria,
juventude, mulheres, negros, as mais distintas camadas do nosso povo, cantando,
gritando, todos, na sua imensa diversidade, contra o golpe, pela democracia.
Se se pretendia convocar a
votação para um domingo, acreditando que se promoveriam manifestações
favoráveis ao golpe, deu tudo ao contrário. Não só em todo o Brasil, mas
especialmente em Brasília, o Congresso foi cercado por 200 mil pessoas, contra
o golpe.
Nunca tivemos tantas
manifestações, em tantos lugares do país, tantas declarações de entidades as
mais diversas da sociedade civil, todas expressando a condenação do golpe e o
apoio à continuidade do processo democrático. Houve algumas manifestações, em particular,
notáveis, marcos na história de lutas do povo brasileiro, como, entre tantas
outras a da Avenida Paulista com o Lula, a dos Arcos da Lapa também com ele, a
marcha de Brasília do dia 18 de março, a manifestação do funk em Copacabana
ontem, a marcha de Brasília também de ontem.
As lutas do povo brasileiro nunca
mais serão as mesmas. A CUT, o MST, o MTST e tantas outras entidades
demonstraram uma extraordinária capacidade de mobilização e de organização. Ao
mesmo tempo, o espirito unitário das manifestações, em torno da defesa da
democracia, demonstrou uma grande maturidade política do movimento popular
brasileiro.
Frente a esse quadro, tivemos um
outro, protagonizado pela Câmara, dirigida pelo político mais corrupto do
Brasil, atuando com seus métodos gangsters, de manipulação, chantagem, pressão,
corrupção, como se uma instituição como o Congresso, lhe pertencesse. E, ao seu
redor, uma maioria execrável de parlamentares, promovendo um golpe branco no
país, usurpando o direito do povo de eleger seus governantes, acreditando que
podem eleger um presidente da república com 1% de apoio, como se o poder fosse
um botim que pudesse ser assaltado por capatazes.
Discursos que envergonham o país
de ter parlamentares assim, mas quando nos lembramos que eles compõem a bancada
da bala, a do fundamentalismo evangélico, a do agronegócio, e tantas outras, e
nos recordamos os retrocessos que promoveram sob a direção de Eduardo Cunha,
nos damos conta de quem compõem o Congresso brasileiro atual.
São duas porções do mesmo país,
que não se reconhecem. O povo não reconhece nesses congressistas seus
representantes. E os deputados não conhecem o povo brasileiro.
Sendo o último Congresso eleito
com financiamento empresarial, os cidadãos brasileiros têm a oportunidade de
renova-lo radicalmente, ainda mais com a consciência dos danos que um Congresso
conservador e inexpressivo do povo brasileiro pode causar ao país. Para isso as
entidades civis, os sindicatos, os movimentos sociais todos, tem que tomar
consciência que para democratizar a vida política brasileira, é fundamental que
a educação pública brasileira tenha sua bancada, da mesma forma que a saúde
pública. Assim como os trabalhadores de todas as categorias – metalúrgicos,
bancários, químicos, etc., etc., ao lado de uma forte bancada dos trabalhadores
rurais, das mulheres, dos negros, dos jovens das periferias, entre tantos
outros setores que se manifestaram nestas semanas nas ruas do Brasil.
É um desastre para a democracia
brasileira ter um Congresso assim, pelos interesses minoritários dominantes e
retrógrados que eles representam. E por terem sido eleitos com apoio financeiro
de um parlamentar que envergonha a qualquer Congresso, e que eles elegeram para
presidir a Câmara de Deputados.
Entender essas duas caras do
mesmo país é fundamental para entender os obstáculos que a construção de um
país democrático requer. A crise atual só se aprofunda com essa decisão. Não há
possibilidade que um governo dirigido por alguém que tem 1% de apoio e 81% de
rejeição, com um duro ajuste fiscal, eleito por um golpe, possa resolver a
crise brasileira. Ele faz parte da crise.
Crise que está ainda mais longe
de ser resolvida, porque aprofunda sua dimensão institucional, sem que avance
em nada na retomada do crescimento econômico com distribuição de renda que o
país requer e que Lula propõe. Um bando de políticos corruptos vai ter que se
enfrentar com esse extraordinário movimento popular que o cercou hoje no
Congresso e em centenas de cidades brasileiras. Esse Congresso não pode mais
viver solto no ar, tomando decisões contra o povo, contra o país, tentando se
apropriar do governo como se fosse um botim de uma gangue, dirigido por um
parlamentar execrável. Veremos nos próximos meses que país triunfa sobre o
outro, ou que porção do Brasil representa realmente o país.
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