O presidente da Câmara e seus milhões não declarados estarão na foto
histórica do impeachment e até o Supremo terá desconforto ao vê-la.
Flávia Marreiro, em El País
Com a pouca qualidade da oposição, que nem na maior recessão em décadas
conseguiu capitalizar apoio próprio relevante, seria impossível imaginar um
trâmite tão célere e preciso do impeachment sem o maestro Eduardo Cunha. Réu na
Lava Jato, com milhões não declarados na Suíça e gastos de sultão, está na
posição central da legislação brasileira para por um mandatário nas cordas: a
presidência da Câmara.
Como lembrou o cientista político Leon Victor de Queiroz, o cargo é mais
importante do que o de ministro da Casa Civil. Não só pelo poder de aceitar ou
não pedidos de impeachment, mas pelo comando da agenda real do país. A
presidenta Dilma Rousseff poderia ter considerado isso se pensasse mais em
estratégia política do que na lógica da guerra e resistência que a parece
guiar.
Ainda assim, é vergonhoso que as principais lideranças da oposição -
entre elas Fernando Henrique Cardoso que repete que "infelizmente"
temos de fazer o impeachment -, tenham aceitado sem maiores dramas essa aliança
carnal com Eduardo Cunha. Sem esse pacto, seria muito difícil que mesmo o
habilidoso Cunha tivesse conseguido se livrar tão bem até agora do seu processo
de cassação.
A imprensa estrangeira e parte da nacional se estarrece na hora de
descrever a ficha corrida dele e dos aliados que comandarão o Big Brother da
destituição até domingo na Câmara. Têm ainda mais dificuldades para esclarecer,
afinal, do que se tratam os decretos e atrasos de pagamentos pelos quais,
juridicamente, a Câmara se apressa em dizer que há motivos para afastar a
presidenta. (Esse parágrafo merece um post-scriptum: Na nossa Constituição, o
impeachment é um processo político-jurídico em que a Câmara, um corpo político,
tem a última palavra. A lei do impeachment é ampla e, juridicamente, não se
trata, evidentemente, de nada fora da lei. A questão é que não há nada que
impeça que se instale fora do Parlamento um debate sobre a legitimidade e a
razoabilidade da decisão e é justamente por ser um processo também político que
a narrativa que decanta a respeito dele importa).
Das multitudinárias manifestações que sacudiram o Brasil no último ano e
meio, o ponto comum relevante, mostrou o Datafolha, é que mais de 95% quer a
queda de Cunha, um consenso bem maior do que em torno do impeachment. Para
parte deles e do sistema político, no entanto, venceu a praticidade: “Vamos
derrubar Dilma e depois a gente vê”.
O problema, como demonstrou a bizarra reunião em que o PMDB encenou uma
saída da base governista, é que Cunha não quer sair da foto. Ele sabe tudo que
fez para conseguir a derrubada do Governo para justamente agora livrar seus
sócios deste constrangimento.
Os ministros do Supremo, tão cruciais nessa crise, também não terão
conforto ao mirar a cena histórica. Está nas mãos deles desde dezembro um
pedido do procurador-geral, Rodrigo Janot, que pede o afastamento de Cunha por
abuso no exercício da função. O STF bem poderia dizer que não há como intervir
neste caso, questão interna do Legislativo, mas nós tínhamos o direito de
conhecer esse veredito antes de que Cunha comande o rito mais radical da nossa
democracia. Não decidir é decidir. Como, aliás, fez a Corte ao determinar que a
questão da posse de Lula como ministro da Casa Civil só será julgada em 20 de
abril, dias depois da votação. Para todos os efeitos, é uma vitória do
magistrado Gilmar Mendes, que com uma decisão individual tomada às 21h de uma
sexta-feira e às vésperas de um recesso conseguiu bloquear a iniciativa da
presidenta até agora. A importância dessa decisão só perde para outra igualmente
monocrática e crucial: a do juiz Sérgio Moro de liberar os áudios de Lula e
Dilma um dia antes da posse prevista de Lula na pasta. Pedir desculpas, como
fez Moro nesse caso, soa no mínimo cínico.
Por fim, os aliados do vice-presidente Michel Temer tentam acalmar os
mais desconfortáveis garantindo que, ao menos, Cunha não será mais presidente
da Câmara depois que o serviço estiver feito. Pode ser, mas não faltará em seu
círculo quem avalie que seria burro tirar um político tão competente e com um comando
ímpar da Casa justamente quando se promete aprovar projetos que necessitam de
grande número de votos. Se a pauta for, finalmente, um ajuste fiscal e reformas
palatáveis ao empresariado e ao mercado, duvido que haja patos gigantes
infláveis contra o peemedebista. Como se diz em espanhol, amanecerá y veremos.
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