20 novembro 2016

O retrocesso segue

A política habitacional na contramão

Guilherme Boulos, Folha de S. Paulo

Na última segunda (14), Michel Temer disse no programa "Roda Viva" que seu governo "incentiva" o Minha Casa, Minha Vida. Causou espanto que não tenha sido questionado por nenhum dos jornalistas presentes. Desde sua posse, Temer suspendeu todas as contratações da faixa 1 do programa. Essa é a faixa que faz do Minha Casa, Minha Vida um programa social de moradia e não uma linha de crédito imobiliário. Destinada a famílias com renda mensal inferior a R$ 1.800, a faixa 1 tem um patamar elevado de subsídio, o que permite reduzir as prestações e tornar os critérios de adesão mais acessíveis.
O Minha Casa, Minha Vida tem muitos problemas, a começar pelo papel protagonista das empreiteiras, que tem o poder de definir a localização e, dentro de limites mínimos, a qualidade e tamanho das casas. Mas tem uma importante qualidade: o subsídio reservado à faixa 1, que inclui na política habitacional milhões de pessoas que, por não serem "sujeitos de crédito" bancário, historicamente nunca puderam ter acesso ao direito à moradia. É precisamente esta qualidade que está sendo desmontada.
O Brasil tem hoje um deficit habitacional de 6,06 milhões de famílias, segundo o último levantamento do IBGE. Desse total, 84% estão na faixa de renda inferior a três salários mínimos. Qualquer política que pretenda enfrentar a falta de moradia no país deveria, portanto, ter foco nesse segmento. Deveria ainda aprender com a experiência anterior e ampliar a modalidade Entidades, que demonstrou capacidade de produzir casas melhores com valor menor, através da participação dos futuros moradores na gestão do projeto e da obra. Os exemplos são muitos, a começar pelo Condomínio João Cândido, entregue em 2014, com apartamentos de 63 m², três dormitórios, varanda e elevador, utilizando o mesmo recurso com que as empreiteiras entregam caixotes de 39 m².
Mas a política do governo Michel Temer vai em sentido inverso. Ao mesmo tempo em que congelou a faixa 1 e descumpriu compromissos de retomada do Entidades, ampliou as linhas de crédito para moradias de alto padrão. Em julho, o governo dobrou o teto do valor dos imóveis financiados pela Caixa, passando de R$ 1,5 milhão para imóveis de R$ 3 milhões. E ampliou, nestes casos, a parcela financiável de 70% a 80% do valor total. É o Minha Mansão, Minha Vida.
Todas as contratações de moradia desde a posse de Temer tiveram foco nas faixas 2 e 3 do programa, que responde por apenas 16% do deficit habitacional. Tentando tapar o sol com a peneira e manter as aparências do Minha Casa, Minha Vida como programa social, o governo abriu este mês a possibilidade de contratações para a chamada "faixa 1,5", que permite o atendimento de famílias mais pobres, porém, com subsídio bem mais reduzido e critérios de adesão próximos aos de mercado. Quem tiver restrição cadastral está automaticamente excluído e a aferição dos critérios de renda é extremamente rígida. É uma falsa solução para o problema.
Na prática, sem alarde, estão acabando com o Minha Casa, Minha Vida como programa social e retomando a velha política do BNH (Banco Nacional de Habitação) de tratar a moradia como ativo financeiro, restrito a quem tenha capacidade de crédito imobiliário. Além de destinar a maior parte do volume de recursos da Caixa para o financiamento de imóveis de alto padrão. De direito, a moradia passa ao status de privilégio.
Esta opção política terá como consequência previsível o agravamento da crise urbana e dos conflitos sociais. A escalada recessiva, com aumento do desemprego e redução da renda dos trabalhadores, já tem criado um aperto no orçamento familiar que vai tornando o aluguel uma despesa quase impagável para milhões de brasileiros. O "ônus excessivo com aluguel" tornou-se o principal fator do deficit habitacional, especialmente nos grandes centros urbanos. Em São Paulo, responde por 60% do total; no Rio, por 63%.
Some-se a isso a falta de perspectiva de atendimento por programas públicos. O resultado será explosivo. É de se esperar um novo ciclo de ocupações urbanas e de conflitos pela terra nas periferias das grandes cidades. Se as ocupações e mobilizações pela moradia já vinham crescendo –mesmo com o fator compensatório do Minha Casa, Minha Vida– agora tendem a explodir, agravando ainda mais a tensão social no país.
Dirigir na contramão sempre trás sérios riscos. Dirigir um governo na contramão das necessidades sociais, principalmente de uma necessidade tão básica como a moradia, é colisão na certa.

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