09 novembro 2016

Vale a pena ler de novo

Fernando Henrique e a soprano careca
Rogério Cezar Cerqueira Leite, na Folha de S. Paulo, janeiro de 2003

O finado teatro do absurdo foi inaugurado com a peça “A Soprano Careca”, de Eugène Ionesco, autor que, em uma série de obras publicadas nos anos 50 e 60, expõe, por meio de um conjunto de fórmulas antilógicas e surrealistas, o absurdo das convenções sociais e a futilidade da vida moderna. Uma de suas peças menos conhecidas é “Medéia”, personagem da mitologia grega, retomada sucessivamente por Eurípedes, Sêneca, Corneille e Anouilh, que encarna o mais sanguinário ciúme. Na peça do teatrólogo maldito, Medéia está só no título, a ação se resume num crescente desconforto dos personagens devido a um defunto, talvez de um parente, que cresce continuamente. Aos poucos, o corpo passa a ocupar toda a sala. Os membros superiores e inferiores já se estendem através dos demais cômodos, os pés invadem o jardim. A advertência da farsa eloquente, ao menos a um nível primário concreto, é de que convém enterrar o defunto o mais cedo possível, antes que cresça demais, tornando-se impossível de carregar.
No plano econômico, em oito gloriosos anos, o PIB per capita brasileiro ficou estagnado. A inflação foi mantida em patamares satisfatórios, é verdade. Mas foi à custa do crescimento da dívida pública e da dívida externa até níveis insuportáveis. Os juros são os mais altos do mundo, o que liquidou muitas pequenas e médias indústrias. O desemprego explodiu. A indústria e o comércio se desnacionalizaram em grande medida. E, não obstante, Fernando Henrique foi um grande presidente.
A infra-estrutura do país por pouco não desmorona. Falta de planejamento e opções equivocadas quase levam o país a um desastre energético. A privatização no setor, em vez de criar uma desejável concorrência, gerou aumentos insuportáveis de preços, evidente cartelização e nichos dos mais desavergonhados casos de nepotismo e corrupção. O saneamento básico foi negligenciado, as estradas federais foram abandonadas. Portos foram entregues a grupos corruptos, estradas de ferro foram sucateadas. E, apesar disso, Fernando Henrique foi um grande presidente.
No plano social, a violência cresceu gravemente. Não é preciso recorrer a estatísticas para demonstrar esse fato incontestável. As bonecas do Ipea estão se esforçando para demonstrar um suposto avanço do Índice de Desenvolvimento Humano. Bulhufas. Na realidade, o aumento desse índice se deve sobretudo a um de seus componentes, a escolaridade, que é responsabilidade de Estados e municípios, não da União. Além disso, a política de promoção compulsória do aluno, imposta pelo MEC, contabiliza alunos que são propulsionados automaticamente pela burocracia, não a melhoria ou a ampliação do ensino, o que desqualifica o conceito de escolaridade para o Brasil. Da mesma forma, a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida são, em sua maior medida, responsabilidade e consequência de administrações estaduais e municipais. Prova disso é o fato de que essas melhorias ocorrem em medidas bastante variadas em diferentes Estados e municípios. Além do mais, certa melhoria deveria ocorrer vegetativamente, como consequência da evolução tecnológica na área da saúde e do aumento da circulação de informação na mídia, o que pouco ou nada teve a ver com o governo federal. E, mesmo assim, Fernando Henrique foi um grande presidente.
Um grande sucesso da era FHC teria sido, por outro lado, na área da saúde, a introdução dos medicamentos genéricos. Todavia a triste realidade é que esse programa não proporcionou a menor ampliação do acesso ao medicamento pela população de baixa renda, pois não houve aumento de consumo. A razão é que os aumentos sucessivos de preços, ocorridos desde o início da administração FHC, suplantaram a diferença de preços entre os medicamentos de referência e os genéricos. Corrigidos pela inflação, os preços dos genéricos são hoje superiores aos preços dos seus respectivos medicamentos de referência há oito anos. Ademais, a abertura do mercado para fármacos e medicamentos causou um aumento de 500% nas importações e o fechamento de cerca de 450 unidades de produção no Brasil. De fato, houve um programa humanitário que beneficiou os portadores do HIV, 0,005% da população brasileira, à custa do abandono dos programas relativos às endemias que afligem cerca de 20% da população. Todavia Fernando Henrique foi um grande presidente.
Das várias reformas – administrativa, fiscal, política, previdenciária etc. –, só a primeira foi tocada, e, assim mesmo, superficialmente. O professor FHC chama a si a responsabilidade pela evolução política do país. “O coronelismo foi derrotado”, diz. Se o foi ou não, nada teve a ver com sua administração, que aprimorou à perfeição o toma-lá-da-cá e se associou aos mais retrógrados feudos, de ACM a Amazonino, de Jaime Lerner a Jader Barbalho. Aliás, um dos mais vergonhosos episódios desses gloriosos oito anos foi a negociata para derrotar o honesto e lúcido senador Peres na disputa pela presidência do Senado com Jader Barbalho, operação orquestrada por FHC, que não poderia deixar de conhecer o currículo de seu candidato. Outro resultado dessa atitude conivente da Presidência foi a sequência de escândalos. O caso Sivan, o Proer e o bloqueio da CPI, a compra de votos para passar a reeleição, a putrefação do DNER, o grampo do BNDES e o envolvimento pessoal do presidente no favorecimento de grupos, o caso Sudan, o Banpará, a Sudene, o enigma EJ etc. Se os escândalos vieram a público, isso ocorreu devido ao arrojo e à perseverança dos promotores federais e estaduais, com a ajuda da mídia, não por ação do Executivo. Este, aliás, sempre se opôs às investigações. Mas Fernando Henrique foi um grande presidente.
Mas é em outro campo que reside o maior prestígio de FHC. “Um estadista”, dizem! Foi até recebido para um café da manhã por Clinton! E por Bush. Uau, que presidente brasileiro já teria alcançado tal distinção? Mas, para ser tão bem recebido, é preciso ser um presidente conveniente. Só o Sivan, segundo Clinton, gerou 20 mil empregos nos EUA e ainda manteve sob controle americano a Amazônia.
A legislação de patentes brasileira constitui uma rendição incondicional a oligopólios estrangeiros. Rio Branco foi um estadista porque expandiu nossas fronteiras. FHC, se o foi, deveu-se às concessões permissivas, para não dizer entreguistas, que fez aos EUA. Mas Fernando Henrique foi um grande presidente. Se não o foi, temos de reconhecer que não houve na história do Brasil um melhor ator, um maior ilusionista farsante – digno de uma farsa de Ionesco.

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