Em momentos em que uma nação se
encontra num voo cego e perdeu o rumo de seu destino, este povo deve ser
convocado para dizer que tipo de país quer e que tipo de democracia deseja.
Leonardo Boff*, no Brasil 247
Quando há
uma crise generalizada como esta que estamos vivendo e sofrendo sem perspectiva
de uma saída que crie consenso, não temos outra alternativa senão voltar à
fonte do poder político, expressão da soberania de um povo. Temos que resgatar
todo o valor do primeiro artigo da Constituição, parágrafo único: "Todo
poder emana do povo".
O povo é,
pois, o sujeito último do poder. Em momentos em que uma nação se encontra num
voo cego e perdeu o rumo de seu destino, este povo deve ser convocado para
dizer que tipo de país quer e que tipo de democracia deseja: esta com um
presidencialismo de coalizão, feito de negócios e negociatas ou uma democracia
de verdade, na qual os representantes eleitos representam efetivamente os
eleitores e não os interesses corporativos e empresariais que lhe garantiram a
eleição? Urge avançar mais: precisamos dar forma política ao nível de
consciência que cresceu em todos os estratos sociais, mostrando vontade de
participação nos destinos do país.
No fundo
volta a questão básica: vamos nos alinhar aos que detém o poder mundial
(inclusive de matar todo mundo) ou vamos construir o nosso caminho autônomo,
soberano e aberto à nova fase planetizada da humanidade?
O primeiro
projeto prolonga a história ocorrida até os dias de hoje: desde a Colônia,
passando pelo Império e pela República sempre fomos mantidos subalternos. Os
ibéricos não vieram para fundar aqui uma sociedade mas para montar uma grande
empresa internacional privada, uma verdadeira. agroindústria, destinada a
abastecer o mercado mundial. Essa lógica perdura até os dias atuais: tentar
transformar nosso eventual futuro em nosso conhecido passado. Ao Brasil cabe
ser o grande fornecedor de commodities sem ou com parca tecnologia e valor
agregado, num processo de recolonização.
Lamentavelmente,
este é o intento do atual governo interino, especialmente do PSDB que
claramente se alinha a um severo neoliberalismo que implica diminuição do
Estado, ataque aos direitos sociais em favor do mercado e um inescrupulosa privatização
de bens públicos como o pré-sal entre outros.
O projeto
alternativo finca suas raízes na cultura brasileira e no aproveitamento de
nossa imensa riqueza que nos pode sustentar como nação independente, soberana e
aberta a todas as demais nações. Seríamos uma grande potência, não militarista,
nos trópicos, com uma economia, entre as maiores do mundo.
Curiosamente,
as jornadas de junho de 2013 e posteriormente, mostraram que o povo percebeu os
limites da formação social para os negócios. Quer ser sociedade, quer outras
prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil. Numa palavra, quer ser uma
sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade de negócios. Tal propósito
implica refundar o Brasil sobre outras bases.
Mas quem
escutou o clamor das ruas, especialmente, dos jovens? Efetivamente ninguém,
pois tudo ficou como antes.
O que na
verdade nos faltou em nossa história, foi uma verdadeira revolução como houve
na França, na Itália e em outros países. A história nunca é uma continuidade,
algo que cresce organicamente de uma para outra coisa. Ela é feita de
descontinuidades e rupturas radicais que derrubam uma ordem e instauram uma
nova.
No Brasil,
como sempre lamentava Celso Furtado, nunca tivemos essa ruptura. O que
predominou em todo o tempo até hoje é a política de conciliação entre os
poderosos. O povo sempre ficou de fora como incômodo dos acertos feitos por
cima e contra ele.
O que está
ocorrendo agora com a tentativa de impeachment da Presidenta Dilma Roussef,
legitimamente eleita, é de dar continuidade a esta política de conciliação das
elites, do capital rentista e financeiro, daqueles, 10%, segundo o IBGE de 2013
que controlam 42% da renda nacional. Jessé Souza do IPEA os enumera: são 71.440
super ricos que, por trás manejam o Estado e os rumos da economia na
perspectiva de seus interesses, absolutamente egoístas, conservadores e
antipopulares. Não lhes importa a perversa desigualdade social, uma das maiores
do mundo, que se traduz em favelização de nossas cidades, violência absurda,
geração de humilhação, preconceito e degradação social por falta de
infraestrutura, de saúde, de escola e de transporte.
Se o Brasil
foi fundado como empresa e para continuar como empresa transnacionalizada, é
hora de se refundar como sociedade de cidadãos criativos e conscientes de seus
valores.
O meu sonho
é que a atual crise com o sofrimento que encerra, não seja em vão. Que ela crie
as bases para o que Paulo Freire chamaria de “o inédito viável”: nunca mais
coalização entre os poucos ricos de costas para as grandes maiorias. Que se
busque viabilizar o que prescreve a Constituição em seu terceiro artigo (IV):
"promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
*Leonardo
Boff é filósofo, teólogo e professor aposentado de Ética da UERJ
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