Rumo
ao colapso
José Luís Fiori e
William Nozaki, Revista IUH
"Hoje, a
única dúvida que nos resta é se o desastre à frente assumirá a forma de uma
estagnação prolongada, acompanhada da destruição da indústria e de seu mercado
de trabalho, ou a forma pura e simples de um colapso, com a desintegração
progressiva da infraestrutura, dos serviços públicos e do próprio tecido
social", escrevem José Luís Fiori, professor titular
do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e William Nozaki, professor da Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em artigo
publicado por A
terra é redonda, 14-03-2020.
Eis o artigo.
Basta
ligar dois pontos para desenhar uma reta. No caso da economia brasileira, são
muitos pontos numa mesma direção, apesar de que as autoridades insistam em
desconhecê-los, iludindo-se com a ideia de uma “retomada” que nunca existiu e
nunca esteve no horizonte. Tudo isso muito antes e independentemente da epidemia de coronavírus,
da guerra de preços do petróleo e da
recessão mundial que deverá ocorrer, uma soma que irá piorar bastante a
situação.
Hoje, a única dúvida que nos resta é se o desastre à frente
assumirá a forma de uma estagnação prolongada, acompanhada da destruição da
indústria e de seu mercado de trabalho, ou a forma pura e simples de um
colapso, com a desintegração progressiva da infraestrutura, dos serviços
públicos e do próprio tecido social.
Tudo isto se reflete no crescimento pífio do PIB brasileiro dos
últimos três anos, mas muito mais ainda no declínio continuado da taxa de
investimento da economia, que era de 20,9% em 2013, e que hoje é de 15,4%,
a despeito do golpe de Estado, da reforma trabalhista, da reforma da
previdência e das privatizações. Ao contrário do prometido, a economia não só
não cresceu, como aumenta a cada dia a “fuga de capitais”, que nos últimos três
meses já é maior do que em todo o ano de 2019.
A esperança depositada nos investidores internacionais também
esmaeceu com a notícia de que, em 2019,
o Brasil simplesmente
desapareceu do Índice Global de Confiança para
Investimento Estrangeiro, da consultoria americana Kearney, que
indica os 25 países mais atraentes para os investidores internacionais. O mesmo
índice em que o Brasil ocupava
a 3a posição
nos anos de 2012 e 2013, tendo caído para o 25º em 2018, e
do qual foi simplesmente eliminado na hora das grandes reformas ultraliberais
de Paulo Guedes, que
supostamente iriam atrair os grandes investidores internacionais.
Este quadro só tende a piorar com a nova crise econômica mundial que
se anuncia, com o avanço da pandemia do coronavírus e
com o início de uma nova guerra de preços na indústria do petróleo. As
agências financeiras privadas e os organismos internacionais já estão prevendo
uma redução do investimento global na ordem de 15%, e uma queda do PIB mundial na
ordem de 1,9%, com a possibilidade de uma recessão mundial no primeiro semestre
de 2020, que pode prolongar-se no segundo semestre, tanto na Europa como
nos Estados
Unidos. Neste momento, o que predomina é o pânico e a
incerteza, mas o pior ainda pode estar por vir.
Tudo isso coincide com o período das eleições presidenciais
norte-americanas, na qual Donald Trump busca
a reeleição. Desde agora, bem no início da crise que se anuncia, o presidente
americano parece que já está perdendo apoios, segundo pesquisa publicada pelo
jornal Financial
Times. E é exatamente aqui que pode estar se gestando a grande
“tentação” do presidente Trump e
que poderá se transformar numa catástrofe para a América Latina nos
próximos meses. Afinal, é nessas horas, sobretudo no caso de um presidente
americano que busca sua própria reeleição, que é comum a aposta em alguma
inciativa de “alto teor” explosivo, como é o caso de guerras ou ações
militares que façam esquecer a agenda desfavorável e que
sejam capazes de mobilizar o sentimento comum de identidade nacional e
patriotismo dos norte-americanos.
O problema é que o “menu de alternativas” à disposição do
presidente Donald Trump é
bastante limitado, e parece que só existe uma opção capaz de unificar o
establishment norte-americano, cooptando inclusive as principais lideranças
do Partido Democrata, qual
seja, o cerco, o bloqueio naval ou o ataque direto à Venezuela, em
tempo de driblar a epidemia,
a recessão e
a crise de
sua indústria do petróleo.
E foi exatamente isto que Donald Trump anunciou
no seu discurso sobre o Estado
da União, frente ao Congresso Americano,
mesmo sem entrar em detalhes. Devendo-se anotar que este foi o único momento em
que ele foi aplaudido de pé, e em conjunto, por todos os congressistas,
republicanos e democratas.
É exatamente aqui, na preparação dessa operação militar
americana, que se inscreve a encenação do jantar do presidente Trump na
sua casa de praia, com seu vassalo brasileiro, que ele despreza de forma
visível, mas que vem lhe entregando sem contrapartida tudo o que lhe é
solicitado – inclusive o novo acordo militar RDT&E, que
deverá servir de “guarda-chuva” para todas as ações militares conjuntas no
futuro próximo, incluindo o tensionamento com a Venezuela.
Trata-se de um Acordo que
começou a ser negociado logo depois do Golpe de Estado de 2016,
pelo Departamento
de Defesa dos EUA em conjunto com o Ministério de Defesa do Brasil,
e que acaba de ser assinado pelos representantes brasileiros, de forma
emblemática, diretamente com o Comandante Craig Faller, chefe
do Comando
Sul das Forças Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe.
Na ocasião da assinatura, o Almirante Craig declarou:
“assinamos um acordo histórico hoje, que abrirá caminho para o compartilhamento
ainda maior de experiências e informações. Trabalhamos muito próximos das
nações aliadas”, além disso fez referências explícitas à Venezuela e
à Bolívia (ver
jornal Valor econômico
de 08 de março de 2020).
É interessante chamar atenção para o papel do General Braga Neto, que
participou das negociações deste Acordo e
que depois foi Comandante
do Estado Maior do Exército brasileiro, antes de assumir
recentemente a Casa
Civil da Presidência
da República, colocando-se ao lado do general Luiz Eduardo Ramos, que
era o Chefe
do Comando Militar do Sudeste e hoje ocupa a Secretaria do Governo,
como cabeças visíveis de um governo “paramilitar” que já conta com 2.897
integrantes das FFAA,
alocados em inúmeros órgãos da administração pública federal, muito mais do que
durante toda a ditadura militar de 1964 (segundo notícia do Portal 360).
Além disso, do ponto de vista econômico, merece atenção neste período
recente a forma como a política e os gastos da Defesa têm crescido, na
contramão da política econômica ultraliberal do Ministério da Economia.
Basta dizer que foi exatamente no período recente de 2019-2020 que o Ministério da Defesa brasileiro
teve seu maior orçamento histórico, R$ 115 bilhões em média. E só a Empresa Gerencial de Projetos
Navais (Emgepron),
vinculada à Defesa e à Marinha,
foi capitalizada em R$ 7,6 bilhões, passando por um projeto de revisão de sua
atuação e escopo que lhe permite coordenar e executar projetos estratégicos não
apenas da Marinha,
mas também do Exército e
da Aeronáutica.
Seguindo esta linha, cabe sublinhar que o próprio acordo RDT&E,
parece ter sido apenas um passo a mais de uma estratégia que já passou por
outros acordos anteriores com as FFAA norte-americanas,
como é o caso do Master
Information Exchange Agreement (de troca de informações
tecnológicas militares), o Acquisition
and Cross-Servicing Agreement (de apoio logístico e de
serviços militares) e o Space
Situational Awareness (de uso do espaço exterior e aéreo
para “fins pacíficos”).
Vários movimentos militares que parecem convergir e coincidir
com o documento divulgado recentemente pelas FFAA, no qual
elas definem, a partir de seu próprio arbítrio, os cenários da política de
defesa brasileira até 2040,
com a escolha da França como
principal inimigo estratégico do Brasil.
Uma escolha que surpreendeu aos menos avisados, mas que parece perfeitamente
coerente com o objetivo central e imediato da preocupação das FFAA brasileiras,
que é a Venezuela,
e agora também a Guiana,
devido a sua descoberta recente de imensas reservas de petróleo off-shore.
Além disso, a escolha da França como principal inimigo
facilita a provável denúncia futura do acordo de cooperação militar do Brasil com
a França,
em torno da construção do primeiro submarino nuclear brasileiro, que
provavelmente será substituído por um novo projeto conjunto com os próprios
Estados Unidos. É dentro dessa mesma perspectiva que se deve enquadrar também o
acordo já assinado com os EUA de liberação do lançamento de foguetes e
satélites na Base de Alcântara,
de venda da Embraer para
a Boeing,
de transformação do Brasil em aliado preferencial extra-OTAN, o que
significa, no limite, a transformação progressiva do Brasil em um “protetorado
militar” dos EUA.
Mais ainda, é dentro dessa mesma “ofensiva final” contra a Venezuela,
anunciada pelos Estados Unidos e
apoiada pelo Brasil,
que se pode entender a nomeação do General Mourão para
o comando unificado do Conselho da
Amazônia, do qual foram excluídos todos os
governadores civis da região, que assim ficam afastados de todo tipo de
informação e decisão, inclusive na eventualidade de que o Brasil seja convocado
pelos norte-americanos para garantir o cerco amazônico da fronteira venezuelana.
Uma situação que parece cada vez mais exequível depois que o Brasil retirou
seus diplomatas e cônsules das cidades fronteiriças da Venezuela, e
depois que o governo brasileiro notificou vários funcionários e diplomatas
venezuelanos de que devem abandonar o território brasileiro no prazo de 60
dias. Uma ruptura diplomática sem precedentes, que só costuma ocorrer em caso
de escaladas militares ou de preparação para a guerra.
Dadas as características próprias da sociedade americana, não é
impossível que essa ofensiva militar – muito provável – possa “salvar” a
eleição de Donald Trump, numa
conjuntura de forte recessão econômica. O mesmo se pode dizer com relação ao
governo “paramilitar” brasileiro, que poderia passar a governar por “decreto” e
por cima do Congresso
Nacional, em caso de uma “emergência de segurança nacional”
desse tipo. No entanto, se o Brasil quiser
obedecer e seguir atrás dos Estados Unidos, os
responsáveis por tal insensatez devem ter claro para si que estarão entrando em
um tipo de conflito internacional do qual o Brasil nunca participou, envolvendo
de forma direta as três maiores potências militares do sistema mundial.
Deve-se ter bem claro, além disso, que o Brasil não
dispõe de armamentos, nem de capacidade financeira e logística para enfrentar
as forças armadas venezuelanas, a menos que se restrinja ao mesmo papel
simbólico, subalterno e pontual que teve ao lado dos Estados Unidos na
Segunda Guerra, e na invasão de Santo
Domingos, em 1965. Mas, se mais à frente – e isto é muito
provável – as FFAA brasileiras
receberem e aprenderem a utilizar o armamento americano mais sofisticado que
deve lhes ser repassado pelo novo acordo RDT&E, e decidirem utilizá-lo
contra um vizinho latino-americano, seria muito importante que esses senhores
que pretendem tomar uma decisão de tamanha gravidade, em nome do povo
brasileiro, tenham muito claro o que estão fazendo e quais as consequências do
seu ato de vassalagem, para o longo prazo da história do Brasil e da América Latina.
Porque eles serão os responsáveis, diante da História, por terem
trazido a guerra em grande escala para um continente que foi sempre pacífico, e
por terem contribuído com os Estados Unidos para
transformar esta região da América
do Sul num novo Oriente Médio. Com a
diferença que, neste caso, não será concedido ao Brasil o lugar que Israel
ocupa na política externa americana. Pelo contrário, o mais provável é que o
Brasil se transforme num novo Iraque de Saddam Hussein,
que foi usado pelos americanos durante uma década de guerra contra o Irã, e que
depois foi destruído pelos próprios Estados Unidos. Quase da mesma maneira com
que os Estados
Unidos utilizaram os Talibãs na sua guerra contra
a URSS,
na década de 80, e depois os bombardearam durante 20 anos antes de trazer seus
jovens de volta para casa, deixando para trás um Afeganistão completamente
destroçado.
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