Finjo não sonhar que Trump seja derrotado pela vacina da democracia
Não
quero viver outra manhã como aquela de 2016 em que, desavisada, acordei com o
monstro louro sentado no Salão Oval
Fernanda Torres, Folha
de S. Paulo
E
lá se foram quatro anos.
No
dia 8 de novembro de 2016, fui dormir com Hillary Clinton na liderança da
disputa para a Presidência dos Estados Unidos e acordei
com Donald Trump eleito. Me lembro do pânico que senti, na mesa do café da manhã,
diante do poder conferido ao Nero cor de laranja.
Ano
duro aquele. Em abril de 2016, reunida com amigos, assisti à votação da Câmara
dos Deputados que aprovaria o afastamento de Dilma Rousseff, abrindo caminho
para o
impeachment, ou
golpe, ou golpe-impeachment.
Festa
estranha, com gente esquisita. A consciência estarrecedora do baixíssimo nível
dos congressistas, coroado pelo elogio a Ustra, feito pelo atual presidente do
Brasil.
Com
um filho no ensino médio e o outro no fundamental, calculava, naquela manhã
fatídica, o tempo necessário para que o planeta voltasse a entrar nos trilhos,
rezando para que a reviravolta ocorresse antes de eles chegarem aos 30.
O
mau presságio se confirmou nos anos seguintes. O horror, o horror, o horror.
A
propagação de crenças terraplanistas, anticientificistas e antiambientalistas;
o muro, o ódio e o preconceito rompendo as bolhas insanas das redes insociais.
Meu
filho mais velho fez 21 anos neste fim de outubro. Faltam nove para os 30. No
mesmo dia em que ele alcançou a maioridade, o Brasil assinou uma declaração
internacional em defesa da família tradicional, junto com os Estados Unidos, a
Hungria, a Indonésia e Uganda. Diga-me com quem andas...
Cursa
filosofia, uma cadeira inútil, segundo as novas diretrizes desses tempos de
guerra.
E,
como se não bastasse o levante monolítico da extrema direita, a esquerda se
dividiu em nichos defensores de causas tanto urgentes quanto justas, mas que,
diante da brutalidade e da indiferença do oponente, muitas vezes terminam por
eleger como inimigos pessoas que poderiam servir de aliados na batalha.
A
maioria dos filósofos ocidentais tem, na sua biografia, alguma mancha sexista
ou racista. Kant, Heiddeger, e mesmo os gregos, pecaram feio, quando avaliados
pelos ideais de liberdade, igualdade e justiça que hoje imperam.
No
anseio de relativizar o peso da cultura branca macha ocidental, me disse a
reitora de uma universidade da Suécia, algumas correntes acadêmicas defendem o
cancelamento da "Crítica da Razão Pura".
Toco
no assunto porque tenho um filho homem, branco, aluno de universidade
particular, nascido de uma família de artistas de classe média alta, que
desenvolveu interesses ligados à música e ao intelecto. Trata-se de um ser que
reúne em si todos os atributos, à esquerda e à direita, passíveis de
condenação.
Ele
não reclama, tem uma visão estoica da vida e se refugiou no universo dos
próprios interesses. Admira o rigor e o método de Aristóteles e Platão e também
Santo Agostinho.
Os
estudos sobre linguagem o levaram a Wittgenstein, ele chegou a cogitar
enveredar pela lógica, mas anda seduzido pela hermenêutica, graças a Hans-Georg
Gadamer. Ele toca Bach, Schubert e Beethoven no piano, lê Mann e Machado e
gosta de filmes trash.
É
como se meu filho se negasse a seguir as tendências políticas e sociais de uma
época irascível e barulhenta e tivesse criado um bunker de sobrevivência entre
as paredes de sua casa. Quem não?
Sera?
mais nobre sofrer na alma/ Pedradas e flechadas do destino feroz/ Ou pegar em
armas contra o mar de angústias/ E, combatendo-o, dar-lhe fim?
Confesso
que também tenho vontade de me virar para dentro e esperar a onda passar. E
ainda veio a pandemia. A ameaça pairando no ar. Uma distopia em que até
respirar tornou-se tóxico.
Acompanho
as prévias da eleição americana com a mesma impotência hamletiana. Sei que o
resultado das urnas de 2022 no Brasil depende da escolha de agora, feita por
americanos de Pensilvânia, Flórida e demais estados-pêndulo.
As
pesquisas apontam vantagem do frágil Biden, mas Trump já ameaça judicializar a
eleição, tendo a Corte e o Senado de retaguarda.
Não
quero viver outra manhã como aquela em que, desavisada, acordei com o monstro
louro sentado no Salão Oval.
Foi
como abrir a porta errada de um inferno paralelo, certa de que, em alguma outra
existência, as conquistas civilizatórias da humanidade seguiam seu curso.
Aguardo
a futura manhã de novembro de 2020, fingindo não desejar, implorar, rezar,
torcer, ansiar e sonhar que Trump seja derrotado pela vacina da democracia.
Seria
o inverno do nosso descontentamento.
Veja:
Abordagem dos desafios do Brasil há que se fazer com base teórica sólida https://bit.ly/3b37OeG
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