O humano, o algoritmo e o cuidado: dilemas
da inteligência artificial em saúde
Jailson
Correia
Médico e
professor do IMIP, FPS, UPE e Professor Associado Honorário da University
College London
Talvez seja redundante afirmar que a inteligência artificial já é parte de nossas rotinas quotidianas, mesmo sem que percebamos, com o celular que sugere o caminho mais rápido, o aplicativo que traduz, em tempo real, o programa que reconhece um rosto em uma multidão. Quando se fala de IA na saúde, porém, o impacto não é apenas de conveniência ou eficiência — é de vida e morte, de cuidado e abandono, de promessas e riscos.
Eu
costumava dizer que sonhava com um dia em que, como médico pediatra, poderia
dedicar mais tempo ao paciente e sua família do que às tarefas burocráticas
inerentes ao trabalho clínico. Sem saber, essa visão estava alinhada ao que nos
ensina Eric Topol, em Medicina Profunda: a IA pode devolver humanidade à
prática médica. Ao assumir tarefas repetitivas e burocráticas, ela liberta
profissionais de saúde para o que nenhuma máquina é capaz de substituir: o
encontro humano, a escuta atenta, a compaixão. Seria um paradoxo curioso —
quanto mais tecnologia, mais humanidade.
Mas
todo avanço carrega ambivalências. Mustafa Suleyman, em A Próxima Onda, alerta
para os riscos de uma revolução sem freios: algoritmos concentrando poder,
decisões automatizadas que escapam ao escrutínio público, democracias e
sistemas de saúde moldados por códigos invisíveis. Sua pergunta é direta: quem
controla os dados? Quem escreve as regras que decidirão prioridades de vida?
Essa
tensão entre promessa e risco ecoa vozes ainda mais profundas. Michel Foucault,
ao analisar a história da medicina e da saúde pública, mostrou como o cuidado
sempre esteve entrelaçado ao poder — o que chamou de “biopoder”: a capacidade
de governar populações através do controle sobre corpos, normas e
comportamentos. A inteligência artificial, nesse sentido, pode se tornar o
instrumento mais sofisticado desse poder, naturalizado nos algoritmos que
calculam, vigiam e prescrevem, muitas vezes sem que o paciente ou o
profissional percebam.
Byung-Chul
Han amplia a reflexão. Em Sociedade da Transparência e Sociedade do Cansaço,
ele descreve um mundo em que a hiperexposição e a pressão permanente pelo
desempenho corroem a interioridade humana. Na saúde, a IA pode reforçar essa
lógica: transformar o paciente em um conjunto de métricas, o médico em mero
executor de protocolos, e a vida em um painel interminável de dados. O risco
não é apenas técnico, mas existencial: perdermos o silêncio, a opacidade e até
o mistério que fazem parte de sermos humanos.
E,
no entanto, seria um erro demonizar a tecnologia. A inteligência artificial
abre caminhos antes impensáveis: prever epidemias com base em sinais
invisíveis, organizar recursos escassos de forma mais justa, acelerar
diagnósticos em lugares onde há poucos especialistas. Num país como o Brasil,
marcado por desigualdades históricas, ela pode ser uma ponte para populações
que raramente chegam ao cuidado.
O
desafio é não ceder à ilusão de que eficiência é sinônimo de justiça. Entre o
otimismo de Topol, o alerta de Suleyman e as críticas de Foucault e Han, o
caminho que escolhermos dirá se a IA será máquina de vigilância ou instrumento
de solidariedade.
Instituições
de referência, como o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando
Figueira (IMIP), sabem disso. O IMIP, com sua tradição de inovação aliada ao
compromisso social, está atento às transformações digitais que já moldam a
saúde. Mais do que adotar tecnologias, é preciso situá-las em uma missão: o
cuidado integral, a prática humanizada, resistindo à tentação de transformar
pessoas em números.
A
inteligência artificial na saúde não é futuro distante. É presente. É
ultraveloz em seu desenvolvimento. E nos coloca diante de uma escolha coletiva:
permitir que se torne engrenagem de controle ou fazê-la servir como ferramenta
de cuidado. E isso muda tudo.
[Qual a sua opinião?]
Leia também: Tecnofeudalismo: o que é isso? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/abraao-sicsu-opina.html

Nenhum comentário:
Postar um comentário