26 novembro 2025

Ciência & ética

O humano, o algoritmo e o cuidado: dilemas da inteligência artificial em saúde
Jailson Correia
Médico e professor do IMIP, FPS, UPE e Professor Associado Honorário da University College London     

Talvez seja redundante afirmar que a inteligência artificial já é parte de nossas rotinas quotidianas, mesmo sem que percebamos, com o celular que sugere o caminho mais rápido, o aplicativo que traduz, em tempo real, o programa que reconhece um rosto em uma multidão. Quando se fala de IA na saúde, porém, o impacto não é apenas de conveniência ou eficiência — é de vida e morte, de cuidado e abandono, de promessas e riscos.

Eu costumava dizer que sonhava com um dia em que, como médico pediatra, poderia dedicar mais tempo ao paciente e sua família do que às tarefas burocráticas inerentes ao trabalho clínico. Sem saber, essa visão estava alinhada ao que nos ensina Eric Topol, em Medicina Profunda: a IA pode devolver humanidade à prática médica. Ao assumir tarefas repetitivas e burocráticas, ela liberta profissionais de saúde para o que nenhuma máquina é capaz de substituir: o encontro humano, a escuta atenta, a compaixão. Seria um paradoxo curioso — quanto mais tecnologia, mais humanidade.

Mas todo avanço carrega ambivalências. Mustafa Suleyman, em A Próxima Onda, alerta para os riscos de uma revolução sem freios: algoritmos concentrando poder, decisões automatizadas que escapam ao escrutínio público, democracias e sistemas de saúde moldados por códigos invisíveis. Sua pergunta é direta: quem controla os dados? Quem escreve as regras que decidirão prioridades de vida?

Essa tensão entre promessa e risco ecoa vozes ainda mais profundas. Michel Foucault, ao analisar a história da medicina e da saúde pública, mostrou como o cuidado sempre esteve entrelaçado ao poder — o que chamou de “biopoder”: a capacidade de governar populações através do controle sobre corpos, normas e comportamentos. A inteligência artificial, nesse sentido, pode se tornar o instrumento mais sofisticado desse poder, naturalizado nos algoritmos que calculam, vigiam e prescrevem, muitas vezes sem que o paciente ou o profissional percebam.

Byung-Chul Han amplia a reflexão. Em Sociedade da Transparência e Sociedade do Cansaço, ele descreve um mundo em que a hiperexposição e a pressão permanente pelo desempenho corroem a interioridade humana. Na saúde, a IA pode reforçar essa lógica: transformar o paciente em um conjunto de métricas, o médico em mero executor de protocolos, e a vida em um painel interminável de dados. O risco não é apenas técnico, mas existencial: perdermos o silêncio, a opacidade e até o mistério que fazem parte de sermos humanos.

E, no entanto, seria um erro demonizar a tecnologia. A inteligência artificial abre caminhos antes impensáveis: prever epidemias com base em sinais invisíveis, organizar recursos escassos de forma mais justa, acelerar diagnósticos em lugares onde há poucos especialistas. Num país como o Brasil, marcado por desigualdades históricas, ela pode ser uma ponte para populações que raramente chegam ao cuidado.

O desafio é não ceder à ilusão de que eficiência é sinônimo de justiça. Entre o otimismo de Topol, o alerta de Suleyman e as críticas de Foucault e Han, o caminho que escolhermos dirá se a IA será máquina de vigilância ou instrumento de solidariedade.

Instituições de referência, como o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), sabem disso. O IMIP, com sua tradição de inovação aliada ao compromisso social, está atento às transformações digitais que já moldam a saúde. Mais do que adotar tecnologias, é preciso situá-las em uma missão: o cuidado integral, a prática humanizada, resistindo à tentação de transformar pessoas em números.

A inteligência artificial na saúde não é futuro distante. É presente. É ultraveloz em seu desenvolvimento. E nos coloca diante de uma escolha coletiva: permitir que se torne engrenagem de controle ou fazê-la servir como ferramenta de cuidado. E isso muda tudo.

[Qual a sua opinião?]

Leia também: Tecnofeudalismo: o que é isso?  https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/abraao-sicsu-opina.html 

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