As vítimas das trevas do Estatuto da Família
Na ânsia de perseguir os homossexuais, legislação
ameaça os direitos de outros milhões de brasileiros
Carta Capital
Juliana Offenberker, Priscila Harder e as
gêmeas: legalmente uma família / Créditos: Carol Carquejeiro
Um casal apaixona-se, inicia o
namoro, engata no casamento e pouco depois decide ter filhos. O enredo é
corriqueiro, trivial demais até para as telenovelas. Mas dezenas de milhares de
brasileiros estão fadados a vivenciar a experiência de constituir uma família
ao longo de uma desgastante epopeia. O caso a seguir é emblemático. Após dois
anos de relacionamento, as atrizes Priscila Harder e Juliana Offenbecker
convidaram familiares e amigos para celebrar seu casamento. Bolo de noiva,
brinde de champanhe, tudo como manda o protocolo, exceto pela impossibilidade
de assinar um documento para formalizar a união.
Aos olhos do Estado, o casal não
existia, por não ser contemplado pela legislação vigente. O tempo passa e as
jovens decidem dar um novo passo. Recorrem a uma clínica de inseminação
artificial de São Paulo para realizar o sonho da maternidade. Priscila dá à luz
a duas meninas, gêmeas. A companheira procura um cartório para registrar as
filhas, mas se depara com a negativa do funcionário. Apenas a genitora poderia
figurar como mãe de Luna e Maia. Uma vez mais aquela família seria ignorada
pelo Estado.
Apenas quando o Supremo
Tribunal Federal (STF) reconheceu, em maio de 2011, a união estável homoafetiva,
Priscila e Juliana puderam oficializar o matrimônio. Naquele mesmo mês,
nasceram as filhas e iniciou-se outra longa batalha, até a Justiça atestar que
Luna e Maia, hoje com 4 anos, tinham duas mães e nenhum pai.
“Coincidentemente, a
sentença saiu em 12 de junho de 2013, no Dia dos Namorados. Somente então
pudemos corrigir a Certidão de Nascimento delas, além de tirar RG e Passaporte
com os dados corretos”, conta Priscila. “Para muita gente, é só um pedaço de
papel. Mas, sem documentação, minha esposa nem sequer podia viajar com nossas
filhas na minha ausência. Até para levá-las ao hospital era um constrangimento.
Perguntavam pela mãe, e ela estava lá. Mas o papel dizia outra coisa.”
Agora, o Estado não
pode mais ignorar a existência desta e de outras 60 mil famílias homoafetivas,
segundo o Censo do IBGE de 2010. A bancada fundamentalista da Câmara dos
Deputados esforça-se, porém, para condenar à invisibilidade Priscila, Juliana e
suas duas filhas. No fim de setembro, após uma sessão de mais de cinco horas
marcada por protestos e intensos bate-bocas, uma comissão especial da Casa
aprovou o PL 6.583/2013, conhecido como Estatuto da Família,
que restringe a definição de entidade familiar à “união entre um homem e uma
mulher”, ou ainda pela “comunidade formada por qualquer dos pais e seus
filhos”.
Proposto pelo deputado
Anderson Ferreira, do PR, o projeto é uma reação às recentes conquistas obtidas
no Judiciário pela comunidade LGBT, avalia o advogado Rodrigo da Cunha Pereira,
presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Além
de o STF reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo há quatro anos, o
Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução, em 2013, que obriga os
cartórios a celebrar o casamento civil ou converter a união estável homoafetiva
em casamento. As decisões ampliaram o acesso a quase uma centena de direitos
até então negados, como a adoção de crianças, a inclusão do cônjuge em
benefícios previdenciários ou planos de saúde, o direito à herança e a
possibilidade de somar rendimentos na análise de financiamentos.
“Na tentativa de excluir os
homossexuais no texto da lei, os parlamentares acabaram por ameaçar direitos de
milhões de outros brasileiros que não possuem famílias no formato tradicional,
homem e mulher. Falamos de cerca de 25% da população, segundo dados do IBGE”,
afirma Pereira. “Ficaram excluídas, por exemplo, as famílias de arranjos
anaparentais, quando não há relação direta de descendência. É o caso de tios
que cuidam de sobrinhos ou de irmãos que vivem no mesmo lar.”
Desembargadora aposentada
do Tribunal de Justiça gaúcho e presidente da Comissão de Diversidade Sexual da
OAB, Maria Berenice Dias alerta que o não reconhecimento da entidade familiar
pode trazer sérias implicações. “Os bens de família, como o imóvel onde ela
vive, não podem ser penhorados em razão de dívidas, por exemplo. Agora pense na
situação de uma família que não se encaixa nessa definição proposta. Uma
pessoa que cuida do irmão inválido e se endividou com o tratamento dele.
Percebe? Se não constituem uma família, podem perder o teto”, diz a advogada,
empenhada na articulação de um projeto de iniciativa popular para a criação do Estatuto da Diversidade
Sexual. “O Congresso jamais assegurou direitos aos casais
homoafetivos. Todas as conquistas deram-se no âmbito do Judiciário. Daí a
importância da mobilização da sociedade.”
As aberrações do PL
6583/2013 não param por aí. O projeto, patrocinado pelo presidente da Câmara,
Eduardo Cunha, fiel da Igreja Sara Nossa Terra, também prevê a inclusão de uma
disciplina de “Educação para a Família” no currículo das escolas. Mas qual
família? “Não é difícil imaginar o conteúdo moral e discriminatório dessa nova
matéria, a julgar pela excludente definição proposta no texto”, critica Paulo
Iotti, do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero.
Além disso, a bancada fundamentalista
pretende criar conselhos com o poder de expedir notificações e “encaminhar ao
Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou
penal contra os direitos da família”. Para militantes dos direitos LGBT, a
iniciativa tem caráter persecutório. “Dá arrepio imaginar que um desses
conselheiros possa algum dia bater à porta da minha casa e questionar a guarda
dos meus filhos, porque a minha família não se encaixa no padrão definido por
eles”, comenta o ativista Toni Reis, do Grupo Dignidade, de Curitiba.
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