23 fevereiro 2017

Carnaval e gênero

Claudyo Motta
MULHER CABOCLO-DE-LANÇA
Luciano Siqueira, no portal Vermelho

Vovó Neném, católica fervorosa e conservadora até a medula, incluía em suas orações, que fazia em voz alta para que todos pudessem ouvir, o pedido do perdão divino para as mulheres que vestiam calças compridas.

- É roupa de homem. Deus não deve gostar disso, ele fez a mulher para vestir saias.

Viva estivesse (faleceu no início dos anos 60), qual não seria a sua estranheza, e repulsa, ao saber que, rompendo uma tradição que vem desde o século XIX, a empregada doméstica Maria José Marques tornou-se a primeira mulher a desfilar fantasiada de caboclo-de-lança, no 5º Encontro dos Maracatus Rurais de Nazaré da Mata, a 65 km de Recife, realizado pouco antes do último carnaval.

Integrante do maracatu Leão Formoso, Maria José protagoniza mais uma conquista, dentre tantas, que a mulher brasileira vem alcançando na vida social, econômica, política e cultural nos últimos 30 anos.

O caboclo-de-lança tem papel destacado na encenação do maracatu rural. Representa o guerreiro. Rosto pintado, óculos escuros, flor entre os dentes, fisionomia carrancuda, agressiva até, estado de transe alimentado por quinze dias de abstinência sexual e pela ingestão de uma bebida cujo conteúdo mantém em segredo. Formidável que uma mulher seja aceita nesse papel.

Vovó Neném, sim, estaria estarrecida. E também rezaria muitas ave-marias assustada com a ousadia de inúmeras mulheres que reclamam igualdade de gênero também nas relações afetivas. Desejam tomar a iniciativa no ato sexual e só aceitam o prazer compartilhado. E estranharia a reação de um número crescente de parceiros masculinos, tomados de encanto e paixão pela mulher livre, altiva e senhora de si; e se sentiria solidária diante da maioria machista que, ao contrário, experimenta receio e insegurança.

Dificilmente entenderia, a piedosa senhora, se o seu neto querido – feminista consciente e militante – lhe dissesse que na relação a dois reside uma das trincheiras da luta pela emancipação da mulher.

Não, não compreenderia Vovó Neném, jamais, que a luta por uma sociedade progressista, solidária e justa implica também num sonho – o do amor verdadeiro, despido de egoísmo e de desconfiança, que permite a um homem olhar nos olhos de uma mulher e dizer: “Eu te amo, nós nos amamos, portanto tu és livre e eu também sou livre; tu não dependes de mim nem eu dependo de ti; somos iguais”.
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P. S. - Às voltas com uma agenda pesada a 24 horas da abertura do carnaval, tomei a liberdade de republicar essa crônica aqui de alguns anos atrás aqui no Vermelho.
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