05 fevereiro 2017

Solidariedade versus intolerância

Saudades e ruídos no adeus a Marisa Letícia
Haroldo Lima, no Blog do Renato

As circunstâncias que levaram Marisa Letícia a um AVC e acontecimentos ocorridos após sua internação no Hospital Sírio Libanês e depois de sua morte, leva-nos a constatar o caráter odiento de um tipo de cidadão que está se manifestando hoje no Brasil, um cidadão desumanizado.  
Marisa Letícia foi operária aos 13 anos de idade na fábrica Dulcora, em São Bernardo. Na militância sindical, fez curso de Política dado pela Pastoral Operária de seu município. Esteve na criação do PT. Casou-se com Lula e foi sua companheira por 43 anos. Era uma pessoa doce e afável, delicada e cortês, mãe de família pressurosa, e era também uma mulher de fibra, de opiniões e de luta. Por que sua agonia final, que a todos entristeceu, provocou grosseria e estupidez em alguns? Isto tem a ver com a forma grotesca com que se tem combatido vitórias sociais conquistadas há pouco em nosso país.   
A partir de 2003, com Lula na presidência, promoveu-se no Brasil a maior  inclusão social de sua história, com a retirada da extrema pobreza de cerca de 40 milhões de brasileiros.
Este fato despertou a ira de muitos privilegiados. Camadas médias da população também ficaram inconformadas por terem que conviver com ex-pobres em aviões e universidades.  Os muito ricos, como banqueiros e empresários da informação que, com a complacência do Lula, ficaram mais ricos, acharam necessário por fim a essa experiência de governos populares, que já estava demorando muito.
Uma onda contrária a esse tipo de governo se estruturou e cresceu no país. Usou como pretexto a luta contra corrupção, devidamente manipulada. Alguns corruptos são combatidos com virulência, outros acobertados.
Um Poder paralelo foi sendo constituído, com setores do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal. Uma base parlamentar reacionária dava-lhe apoio e a grande mídia incumbia-se de fazer explodir manchetes sensacionalistas.  Tudo que desprestigiasse o modelo de inclusão social do Lula deveria ser reprimido, legalmente ou não. Delações começaram a ser premiadas e informações de bandidos passaram a ter o estatuto de coisa séria. Abusos de autoridades proliferam. E o Poder paralelo foi se conformando no embrião de um Estado de exceção.
O Supremo Tribunal Federal foi sendo capturado. Exibe “sobriedade” e “erudição”, mas não contem o arbítrio que se alastra. Presidiu a sessão do Congresso que cassou o mandato de uma presidenta que não cometera crime de responsabilidade!! Empenhou-se em legitimar um governo que prima por ter em seu primeiro escalão alguns dos mais conhecidos corruptos do país.  
Toda essa movimentação visa um objetivo maior, simbólico, o de botar Lula na cadeia, para desmoralizar a política de inclusão que ele representa.    
Divulgar, durante anos, que Lula era o chefe de uma quadrilha  foi fácil para o Estado de exceção e sua mídia cativa. Difícil era mostrar as provas da corrupção de Lula, as propriedades  ou o dinheiro que o “chefe” amealhou. O Estado de exceção retorcia-se à cata dessas “provas”, e nada conseguiu.
Mas a frenética campanha de difamação contra Lula prosseguia, atingindo em cheio sua companheira Marisa Letícia. A certa altura, quiseram levar Lula à força para Curitiba. Conduziram-no preso para o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, onde pegaria um avião. Populares viram Lula preso e entraram no aeroporto. Houve tensão. A Aeronáutica resolveu a parada: nenhum avião com Lula a bordo decolaria.  
Apesar de tudo, a Lava Jato abriu cinco ações penais contra Lula, com Marisa Letícia  incluída em três delas. A D.  Marisa era submetida a um stress permanente, prolongado e agudo.  
E de repente o Estado de exceção encontra a “prova do crime”, a fortuna que o “chefe da quadrilha” angariou: um apartamento de inferior qualidade no Guarujá e um suposto envolvimento em um sítio em Atibaia.   Apesar dos documentos das propriedades não terem os nomes nem de Lula nem de Marisa, seus nomes foram repetidos à exaustão como prováveis donos do “triplex de Guarujá”.
A 18 de agosto de 2016, finalmente, a Polícia Federal conclui suas investigações sobre o apartamento e apresenta seu Relatório: nem Lula nem Marisa tinham nada com o tal triplex.
 O Jornal Nacional, a Veja e o resto da grande mídia que durante meses alardearam que Lula e Marisa eram os donos do apartamento, não deram nenhum destaque ao desmentido da Polícia Federal. Em 27 de janeiro último, um membro do Estado de exceção, o delegado da Polícia Federal Igor Romário de Paula, declarou à imprensa que “em um prazo de até dois meses” pode haver a prisão de Lula. Vê-se que o foco continua claro e a perseguição é grande.
O AVC de Marisa Letícia ocorreu nessas circunstâncias de enorme assédio moral, de esgarçamento emocional prolongado e cruel.  Não se pode dizer com segurança que foram esses os fatores que desencadearam o AVC da D. Marisa, mas não há dúvida que esta tensão elevada e demorada contribuiu significativamente para o AVC da D. Marisa.  
Interna-se então a D. Marisa no Sírio Libanês. Ocorrem numerosas manifestações de condolência, de apreensão, de solidariedade, como era de se esperar. Mas aparecem também algumas reações de inusitada estupidez, proclamações de alegria com a gravidade da doença da D. Marisa, compartilhadas nas redes sociais, expressando desejo de que ela não se recuperasse. Até uma médica do Hospital, criminosamente colocou nas redes, como boas notícias,  informações sigilosas sobre a gravidade da saúde de D. Marisa.
  Ocorrida  a morte, naturalmente o sentimento geral foi de tristeza. Mas apareceram manifestações de regozijo, agressivas, inteiramente estranhas a um comportamento civilizado.  
Pergunta-se: que tem levado parcelas de nossa população a terem atitudes tão desastradas?  
O velho Marx dizia que “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (A Ideologia Alemã).  O grande pensador nos ensinou que foi através do trabalho que o  homem se humanizou, distanciando-se de sua animalidade e desenvolvendo uma série de faculdades novas, chamadas humanas. Ele transforma sua natureza em natureza humanizada.
Entretanto, as circunstâncias do capitalismo – a busca desenfreada do lucro, a competição, a exploração do trabalho alheio – contribuem para desenvolver o espírito de competição, o individualismo que coloca como pressuposto da vitória a derrota do outro. Se uma situação deste tipo se conjuga com uma pregação de ódio, de vingança, de agressividade, de desrespeito ao próximo; se há um incentivo a métodos desleais de relações humanas, em que se define primeiro o “criminoso” a ser extirpado e depois vai-se atrás do “crime”; se humilhar é expediente necessário para se conseguir uma vitória política, se é assim que as coisas funcionam, então crescem bastante os fatores da desumanização, da incivilidade e da barbárie. Episódios canhestros que vieram à tona durante a agonia de D. Marisa mostram já estar presente entre nós gente desumanizada. 
A luta por superar o capitalismo, ou pelo menos, seus traços “selvagens”, relaciona-se com o objetivo da humanização do cidadão. Como essa luta é de longo prazo, faz-se necessário, para ir-se humanizando a pessoa, adotar e incentivar meios humanizadores entre os quais, para ficarmos em indicações do próprio Marx “comer, beber, comprar livros, ir ao teatro ou ao baile, ao bar, pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, poetar, etc.”.
A defesa de nossas opiniões e a luta por nossos objetivos demandam firmeza e inteligência, não estupidez e desumanidade. A cultura do ódio, esta sim deve ser repelida e extirpada de nosso meio.
Fica aqui a nossa mensagem de respeito, de admiração e de saudade pela morte de D. Marisa Letícia, que pagou em vida e na morte pela bestialidade da cultura do ódio.    
Haroldo Lima é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.    

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