É um açodamento dizer que Gabriel Jesus já é um sucesso
Tostão, na Folha de S. Paulo
A necessidade de o Brasil ser passado a limpo é defendida até
pelos corruptos, para diminuir o tempo de prisão. Bastou a seleção vencer
vários jogos, para a maioria esquecer que o futebol brasileiro e a CBF precisam
também ser passados a limpo.
Gabriel Jesus é excelente jogador, com chance de se tornar uma
estrela mundial. Mas, por causa de um jogo, em que o Manchester City ganhou com
enorme facilidade, em que todos os atacantes brilharam, é um
açodamento dizer que Gabriel Jesus já é um sucesso, um fenomenal craque
mundial. É a sociedade do espetáculo, exagerada e apressada.
Se Gabriel Jesus fizer um belo gol no próximo jogo, os apressados
vão dizer que ele é melhor que Neymar, que continua jogando muito bem
no Barcelona, apesar de ter diminuído o número de gols. Uma das
razões é que ele passou a ser, quando o time perde a bola, o quarto jogador da
linha do meio-campo, pela esquerda. Isso fortaleceu a marcação. Antes, Neymar
era o terceiro atacante pelo lado, sempre próximo à área. Dizer que ele está em
queda é mais um açodamento.
Não sei por qual razão lembrei-me, dias atrás, após chegar de
férias com minha família, dos cronistas Nelson Rodrigues e do mestre Armando
Nogueira, com quem trabalhei na TV Bandeirantes. Armando dizia que assistia aos
jogos no Maracanã, ao lado de Nelson Rodrigues. Após as partidas, Nelson
perguntava: "Como foi o jogo?" Ia para a redação do jornal e escrevia
as mais delirantes, deliciosas e politicamente incorretas crônicas da história
do futebol brasileiro.
Nelson Rodrigues não tinha nenhum compromisso com a realidade do
jogo. Estava interessado no teatro do futebol, da vida, com as virtudes,
pecados e contradições humanas.
Nelson Rodrigues, com ironia, chamava os comentaristas metidos a
saber de detalhes técnicos e táticos de "entendidos". Dizia: "Os
idiotas da objetividade e os entendidos não vão além dos fatos concretos. O
entendido só não se torna abominável porque o ridículo o salva. Não percebe que
o mistério pertence ao futebol. Até a mais sórdida pelada é de uma complexidade
shakespeariana. A alma é tudo. O resto é paisagem".
Armando Nogueira era mistura de poeta e de entendido, mais poeta
que entendido. Muitos jovens que acompanharam os últimos anos do trabalho de
Armando achavam seus textos parnasianos e chatos. Por outro lado, muitos,
geralmente os mais velhos, lamentam a ausência das crônicas líricas e
belíssimas do mestre.
Como sou metido a filósofo, a psicólogo de botequim e também a ser
um entendido, gosto das duas visões, a mais lírica e a mais técnica. Com
frequência, elas não se entendem. Uma quer ser mais importante que a outra.
Fico dividido. Além disso, como não tenho o talento literário de um Armando
Nogueira e de um Nelson Rodrigues, nunca escrevo do jeito que gostaria, pois
não consigo penetrar nos mistérios, no silêncio, na pausa de um jogo, momento
importante para compreender os detalhes técnicos, táticos e decisivos de uma
partida.
Gosto muito das análises literárias, desde que elas não falseiem a
realidade técnica de um jogo. No mesmo raciocínio, gosto dos aprofundados
comentários científicos, desde que eles não ignorem a importância da fantasia,
da improvisação, dos mistérios, da alma e dos acasos. Somos todos humanos.
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