05 fevereiro 2017

Gabriel segundo Tostão

É um açodamento dizer que Gabriel Jesus já é um sucesso

Tostão, na Folha de S. Paulo
A necessidade de o Brasil ser passado a limpo é defendida até pelos corruptos, para diminuir o tempo de prisão. Bastou a seleção vencer vários jogos, para a maioria esquecer que o futebol brasileiro e a CBF precisam também ser passados a limpo.
Gabriel Jesus é excelente jogador, com chance de se tornar uma estrela mundial. Mas, por causa de um jogo, em que o Manchester City ganhou com enorme facilidade, em que todos os atacantes brilharam, é um açodamento dizer que Gabriel Jesus já é um sucesso, um fenomenal craque mundial. É a sociedade do espetáculo, exagerada e apressada.
Se Gabriel Jesus fizer um belo gol no próximo jogo, os apressados vão dizer que ele é melhor que Neymar, que continua jogando muito bem no Barcelona, apesar de ter diminuído o número de gols. Uma das razões é que ele passou a ser, quando o time perde a bola, o quarto jogador da linha do meio-campo, pela esquerda. Isso fortaleceu a marcação. Antes, Neymar era o terceiro atacante pelo lado, sempre próximo à área. Dizer que ele está em queda é mais um açodamento.
Não sei por qual razão lembrei-me, dias atrás, após chegar de férias com minha família, dos cronistas Nelson Rodrigues e do mestre Armando Nogueira, com quem trabalhei na TV Bandeirantes. Armando dizia que assistia aos jogos no Maracanã, ao lado de Nelson Rodrigues. Após as partidas, Nelson perguntava: "Como foi o jogo?" Ia para a redação do jornal e escrevia as mais delirantes, deliciosas e politicamente incorretas crônicas da história do futebol brasileiro.
Nelson Rodrigues não tinha nenhum compromisso com a realidade do jogo. Estava interessado no teatro do futebol, da vida, com as virtudes, pecados e contradições humanas.
Nelson Rodrigues, com ironia, chamava os comentaristas metidos a saber de detalhes técnicos e táticos de "entendidos". Dizia: "Os idiotas da objetividade e os entendidos não vão além dos fatos concretos. O entendido só não se torna abominável porque o ridículo o salva. Não percebe que o mistério pertence ao futebol. Até a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. A alma é tudo. O resto é paisagem".
Armando Nogueira era mistura de poeta e de entendido, mais poeta que entendido. Muitos jovens que acompanharam os últimos anos do trabalho de Armando achavam seus textos parnasianos e chatos. Por outro lado, muitos, geralmente os mais velhos, lamentam a ausência das crônicas líricas e belíssimas do mestre.
Como sou metido a filósofo, a psicólogo de botequim e também a ser um entendido, gosto das duas visões, a mais lírica e a mais técnica. Com frequência, elas não se entendem. Uma quer ser mais importante que a outra. Fico dividido. Além disso, como não tenho o talento literário de um Armando Nogueira e de um Nelson Rodrigues, nunca escrevo do jeito que gostaria, pois não consigo penetrar nos mistérios, no silêncio, na pausa de um jogo, momento importante para compreender os detalhes técnicos, táticos e decisivos de uma partida.
Gosto muito das análises literárias, desde que elas não falseiem a realidade técnica de um jogo. No mesmo raciocínio, gosto dos aprofundados comentários científicos, desde que eles não ignorem a importância da fantasia, da improvisação, dos mistérios, da alma e dos acasos. Somos todos humanos.

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