Passarinho não se empresta
Rubem
Braga
Não é bom
que o homem esteja só; apesar disso hesitei muito em arranjar um passarinho,
pelo mesmo motivo que hesito em tomar uma mulher. Pede muita assistência,
requer muito cuidado, e sou um homem distraído que de vez em quando precisa
viajar.
Tenho uma
experiência triste no assunto. Não de mulher, mas de passarinho.
Uma vez
José Olympio, editor e amigo velho, me trouxe de São Paulo um bicudo, e outra
pessoa me deu um galo-de-campina. Este era muito espantado e não chegamos a nos
afeiçoar. Mas o bicudo ficou logo meu amigo — ou, mais precisamente, meu
inimigo cordial. Podia se assustar com outras pessoas, mas logo me reconhecia quando
eu me aproximava da gaiola. Sabia que estava na hora da briga. Eu o aborrecia
de toda maneira, metendo os dedos na gaiola, jogando-lhe água na cabeça,
assobiando alto. Ele se eriçava um pouco, fingia-se desentendido, e de repente
me dava uma bicada. Fiz verdadeiras chantagens sentimentais para conquistá-lo.
Privei-o dois dias de sua comida predileta, sementes de cânhamo. Ele não
reclamou, mas era visível que estava zangado.
No
terceiro dia ofereci-lhe as sementes — na mão. Ficou quieto, me olhando de
banda. Saltou para um lado e outro mais de uma vez, mas se deteve novamente
perto de minha mão, sempre olhando de lado as sementes. Mais de cinco minutos
ficou nesse conflito íntimo. Afinal pegou uma semente, mas logo a deixou cair
no fundo da gaiola — e bicou com toda a força o meu dedo. Era um caráter.
Eu tinha
de passar muitos meses no estrangeiro e levei dias ponderando as virtudes e
defeitos de meus amigos, para ver com quem podia deixar os passarinhos.
Excluí os
solteiros. São sujeitos desorganizados, que podem ser arrastados por algum
rabo-de-saia a passar um fim de semana em Petrópolis ou Cabo Frio e deixar um
bichinho morrer de fome ou de sede. A respeito dos casados pensei muito em”
suas esposas. Nada de senhoras que varam madrugada jogando biriba ou frequentam
boates. Isso é gente capaz de esquecer os próprios filhos, que dirá meu
bicudinho. Sondei em vários lares a existência de gatos ou de meninos pequenos.
Eliminei da lista uma das casas porque a cara da empregada não me agradou — e
acabei decidindo pela casa de um amigo nordestino, (o engenheiro Jucá), que me
pareceu o melhor lar para o cuidado e educação de meus pássaros. Viajei
saudoso, mas tranqüilo.
No dia
seguinte à minha volta peguei meu amigo no escritório, à tarde, com a intenção
de passar pela sua casa e apanhar meus passarinhos. Ele perguntou se eu queria
mesmo os bichos de volta; por que não os deixava mais algum tempo em sua casa?
Achei que ele estava desconversando; vai ver que algum passarinho tinha
morrido. Jurou que não. De toda maneira, relutou em vir para Ipanema comigo;
senti que não queria que eu fosse à sua casa. Quando insisti, ele disse com ar
misterioso: — Bem, se você puder levar… Quando cheguei à casa é que senti o
drama. A mulher de meu amigo não estava de maneira alguma disposta a me
devolver os passarinhos, e teve uma discussão com ele a esse respeito. Não me
meto em discussão de casais, e embora fosse a parte mais interessada, fiquei
quieto. Deixei passar o tempo. Depois do jantar com um bom vinho, entrei
jeitosamente na conversa com a senhora. Ela relutava, punha a culpa nas
crianças que iriam ficar muito tristes, uma empregada até chorara quando soube
que eu ia levar os passarinhos.
Fiz uma pergunta:
ficasse com o galo-de-campina; mas meu bicudo…
Percebendo
nossa conversa, o marido entrou no meio, disse que não ficava bem aquilo que
ela estava fazendo, que ele até sentia vergonha. Aí a discussão recomeçou, e eu
me limitei a declarar que, de toda maneira, ia levar para casa o meu bicudo.
– Você
tem certeza? — perguntou a senhora.
– Claro
que tenho certeza. O Jucá me deu a palavra!
Ela ficou
um momento quieta, me olhando. Pensei que estivesse conformada.
Mas
depois disse calmamente, com a voz lenta e firme.
– É? O
Jucá lhe deu a palavra? Então está bem. Você pegue o Jucá, ponha dentro de uma
gaiola e pendure na sua varanda. Ele faz muito menos falta nesta casa do que o
bicudo.
Passarinho
não se empresta a ninguém. Nem a quem não gosta de passarinho, nem, muito
menos, a quem gosta de passarinho.
Leia também: Quem é que diante
do espelho https://bit.ly/3acz1iV
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