A fabricação de um povo
A imersão em dois protestos em apoio ao ex-presidente e a pergunta — eles estão perdidos após a prisão de seu líder?
José Medeiros/Revista Piauí
Aprisão de Jair Messias Bolsonaro parecia até pouco tempo atrás impossível. Havia uma certeza de impunidade, alimentada pela tradição secular de intervenções militares, bem sucedidas ou tentativas, em nossa história política (de 1889 a 2022 e contando). Contudo, para quem estava acompanhando os processos policial e judicial protagonizados pela PF, a PGR e o STF, era bem evidente que a construção da inevitabilidade de sua prisão andava a passo largos, em grande parte devido à espetacular ação direta de profanação de Brasília em 8 de Janeiro de 2023, cuja visibilidade pública dificultava ocultar a conspiração golpista deflagrada nas semanas anteriores. Estamos hoje diante de um episódio inédito na história do Brasil: a responsabilização de militares e civis por seus atentados criminosos contra a d emocracia.
Desde meu artigo de março de 2024 para a piauí, diagnostiquei que a extrema direita tinha passado a viver um paradoxo da subversão: se buscasse retornar ao modus operandi de ações diretas disruptivas (como na campanha golpista de 2022, baseada em acampamentos, trancamentos, violência e terrorismo) para evitar a prisão de Bolsonaro, o resultado seria a aceleração de seu encarceramento – meios que corroeriam seus fins. Dito e feito. Flávio Bolsonaro convocou uma vigília para o sábado, dia 22 de novembro, e isto, junto com o surreal e patético episódio do ferro de solda na tornozeleira eletrônica, selou a antecipação do destino de Jair.
O campo reacionário buscou desesperadamente enquadrar a prisão preventiva como se fosse um caso de perseguição ou intolerância religiosa. Acontece que não se tratava de evento “puramente” religioso; a sociologia e a antropologia da religião ensinam que o religioso constitui o político e vice-versa (e não apenas no caso da extrema direita). Em 2022, observei e concluí que a tal da intervenção militar exigida pelos autointitulados “patriotas” também era percebida e desejada como uma intervenção divina. E tudo indica que a vigília organizada pelo filho 01 tinha uma dupla função. Em primeiro lugar, reunir uma multidão na frente do Condomínio Solar de Brasília, com a esperança de que a vigília pudesse virar um acampamento mais contínuo para dificultar a entrada da Polícia Federal para prende r o ex-presidente – tal qual a transformação do Sindicato dos Metalúrgicos em bunker de resistência quando do mandado de prisão de Lula que Sergio Moro emitiu em abril de 2018. E, em segundo lugar, criar uma manobra diversionista para permitir a fuga de Bolsonaro, seja via um aeródromo vizinho, seja via refúgio em uma embaixada de algum país governado pela extrema direita aliada.
A vigília efetivamente ocorreu. Depois de uma recepção de choque e devastação com a prisão de seu maior líder, políticos profissionais do campo reacionário, como Gustavo Gayer e Fernando Holiday, se apropriaram da convocação de Flávio nas redes sociais e clamaram que as pessoas se dirigissem para Brasília. Assim como no caso do bandeirão ianque que ressignificou o Sete de Setembro de Dia da Independência em elogio da dependência, o campo progressista se deleitou com a performance de Ismael Lopes, um evangélico progressista que se infiltrou no ato e conseguiu discursar no microfone denunciando os crimes cometidos pelo ex-presidente durante a pandemia de Covid. De modo geral, foi um ato esvaziado, com uma presença desproporcional de jornalistas em relaç ;ão a manifestantes, mas carregado de sentido religioso.
Desde aquele sábado, já circulavam outras tentativas de mobilizar a base bolsonarista para defender “seu capitão”. Uma única página de Facebook, chamada “Resistência Paulista”, convocava atos descentralizados já para o dia seguinte, mas não encontrei confirmação de respostas positivas em nenhuma cidade. E uma notícia solitária do perfil de Instagram da Band Minas repercutia a convocatória de uma manifestação para o dia 30 de novembro, em Brasília; os grupos envolvidos reuniriam “coletivos conservadores, lideranças locais e redes de mobilização estaduais”. Foi a ocasião para expandir minha etnografia dos protestos bolsonaristas para mais um estado da federação.
Entre o dia da prisão (22/11) e esta primeira manifestação (30/11), voltei a frequentar o perfil de Facebook que eu havia criado em 2022, primeiro para acompanhar a campanha eleitoral através de uma timeline puramente bolsonarizada e, em seguida, para realizar uma etnografia online da campanha golpista de contestação do resultado da eleição presidencial naquele ano. Desta vez, duas tendências me chamaram a atenção.
A primeira delas, responsável por suplantar rapidamente o clima emocional de devastação melancólica com a prisão, girava em torno de culpar alguma alteridade, algum outro agente político por sua inação, reclamando de sucessivas ausências ou indiferenças. Ao mesmo tempo, tais reclamações conviviam com algum fio de esperança de que um determinado ator pudesse surpreender e engrossar a resistência à prisão e à “ditadura de toga”, o atual “regime político” brasileiro.
Desde a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, a relação do campo reacionário com as Forças Armadas passou por uma inédita crise de confiança e legitimidade. A esperança messiânica de que uma intervenção militar pudesse salvar o país do comunismo se esvaiu de forma indelével. Quase três anos depois, a denúncia de que os generais são traidores “da pátria” (metonímia para “bolsonarismo”) se intensificou, com compartilhamentos de uma entrevista ao Estadão em que o General Tomás Ribeiro Paiva, atual Comandante Geral do Exército, diz ter uma relação “muito boa” com o Presidente Lula, por ele ser o Comandante Supremo das Forças Armadas. O vídeo, de um ano atrás, voltou a circular, com críticas dos bolsonaristas ao general, que seria um “melancia& rdquo; (verde por fora, vermelho por dentro).
Ao mesmo tempo, também circulavam outras narrativas. Sebastião Coelho, ex-desembargador e até então advogado de Filipe Martins no julgamento da conspiração golpista, clamava para que os generais quatro estrelas igualmentem acusados no processo fossem julgados pela justiça militar e não pelo STF; se Tomás Ribeiro Paiva nada fizesse, ele estaria sendo “submisso” a Alexandre de Moraes. Além disso, também surgiram postagens minoritárias que davam a entender que militares de baixa patente poderiam se insurgir a qualquer momento contra os generais omissos para sair em defesa de Bolsonaro e dos demais militares golpistas que foram condenados.
Não eram apenas as Forças Armadas que eram criticadas por sua ausência. Os políticos, em especial deputados e senadores das direitas, passaram a ser visados e atacados por sua inação. Era preciso “fazer algo”. Os clamores passavam por diferentes exigências. Em alguns momentos, tratava-se da política institucional: os congressistas precisariam urgentemente votar a anistia, a fim de restaurar a liberdade e a elegibilidade de Bolsonaro visando as eleições de 2026. Em outros momentos, a exigência era externa às instituições: se tais políticos eram realmente apoiadores de Bolsonaro, eles deveriam estar protagonizando atos de resistência nas ruas, por exemplo na frente da Polícia Federal para liderar um acampamento, ou então convocando manifestações massivas até que Bolsonaro fosse solto. O setor mais radicalizado da base bolsonarista parecia estar incrédulo com o abandono político que seu líder estava sofrendo de seus apoiadores no interior do sistema político. A reação à tal omissão por vezes passava por puni-los nas próximas eleições ao não lhes entregar votos, em outras vezes com o diagnóstico de que a necessária “revolução patriótica” não se daria por dentro das instituições democráticas.
Assim, o terceiro ator político que começou a aparecer em inúmeras postagens foi “o povo”, em geral caracterizado como “frouxo”. A incredulidade de que a prisão de Bolsonaro não estava gerando uma reação massificada de indignação e resistência levou a uma onda de ataques contra “o povo brasileiro”, que seria alienado, acomodado e “covarde”. Um setor minoritário e mais abertamente radical e autoritário do campo reacionário voltou a falar da necessidade urgente de “nepalização” do Brasil, o que significaria o recurso a ações diretas tendendo à violência política. Algumas postagens descartavam quaisquer manifestações de rua, pois não levariam a nada. Entendi como sintomático do caráter retórico da reivindicação da revolta popular do N epal o fato de que os maiores clamores para que “o povo” parasse de terceirizar suas esperanças para o Exército, os políticos ou mesmo os caminhoneiros e partisse para ações mais disruptivas e violentas vinham de bolsonaristas que não estão morando no Brasil. Eram em sua maioria influenciadores de extrema direita que residem nos Estados Unidos e estavam exigindo que pessoas distantes de si colocassem seus corpos em risco em nome de uma causa e da resistência patriótica.
Nem só de reclamar de ausências viveu o debate digital bolsonarista na semana entre a prisão de Bolsonaro em 22/11 e o protesto de 30/11. A segunda tendência que me chamou a atenção ao retornar para o Facebook foi o esforço considerável de perfis em fabricar presenças. Houve uma profusão de postagens noticiosas sobre uma greve de caminhoneiros. Com “noticiosas” quero dizer que as manchetes não afirmavam nem previam uma nova paralisação (o que constituiriam notícias baseadas em apurações jornalísticas), mas que algo estava sendo cogitado ou que não poderia ser descartada a sua ocorrência. Além disso, de forma minoritária, também voltaram a circular vídeos dos bloqueios de rodovias realizados entre o final de outubro e o começo de novembro de 2022, o intenso início da campa nha golpista dos “patriotas”, como se estivessem acontecendo no tempo presente. Ambas as formas de fabricar o apoio dos caminhoneiros eram meios para tentar alimentar – em vão – alguma movimentação real da categoria em prol da anistia e da libertação de Bolsonaro, reativando o imaginário de três anos atrás de uma greve geral que pudesse travar o país para alterar a correlação de forças no sistema político.
A outra forma de produzir presenças foi um fenômeno inédito, ao menos em comparação à minha etnografia virtual anterior das redes bolsonaristas há três anos atrás: a profusão de imagens feitas por Inteligência Artificial (IA). Para qualquer pessoa atenta ao cenário tecnológico hoje e com distanciamento político e afetivo, as imagens oscilam entre toscas e evidentemente falsas. De modo geral, a perspectiva é sempre frontal (sinal clássico de imagem produzida por IA), com milhares de pessoas ocupando as ruas, todas vestidas de verde e amarelo. Não são representações de manifestações de rua ordinárias, mas gigantescas, massivas e apoteóticas passeatas cívico-militares em largas avenidas; dependendo da imagem, vemos para além dos carros de som: caminhões, escavadeiras, helicópteros, balõe s e paraquedistas – símbolos que aludem ao desejo de que o agronegócio e as Forças Armadas se engajem na campanha por anistia.
Os cartazes e faixas nesses megaprotestos variavam (“Estaremos com Bolsonaro tente nos parar”, “Anistia Já – Libertem Bolsonaro”, “2026 Bolsonaro”) e, eventualmente, aparecem com erros de português (consequência da desinteligência artificial sem revisão humana). Destaque para uma imagem fake de três militares encapuzados na frente do Congresso segurando uma faixa branca com letras pretas e verdes simulando tinta de spray com o escrito “Por favor, libertem Bolsonaro”. O que chama a atenção aqui é a composição que coloca lado a lado o pedido polido e bem-educado e o fato de estarem ameaçadoramente armados e anônimos; o contraste seria cômico se não fosse trágico (e perigoso).
Por fim, a figura de Bolsonaro costumou aparecer mitificada: como um herói em cima de um cavalo branco; como um militar condecorado e vestindo um uniforme militar que claramente exagera seu posto de modo não condizente com sua patente de capitão reformado do exército; ou então como um bombeiro que carrega de uma só vez em seu colo uma criança sendo salva do fogo e um objeto que é uma bandeira brasileira na forma sólida do nosso território. A exceção à heroicização é um caso de vitimização: um Bolsonaro fake hospitalizado, ao lado de uma mulher loira genérica, que substitui a figura real de Michelle, e segurando um cartaz claramente deslocado da perspectiva da imagem, com o escrito “LUTEI O BOM CMBATE. NAO DEIXEM MEU PAUÍS AFUNDAR”.
Assim, o debate público nas redes sociais bolsonaristas tematizou múltiplas frustrações com aqueles agentes políticos que se engajaram na campanha golpista de 2022 (congressistas de extrema direita, Forças Armadas, caminhoneiros e empresários do agro e, por fim, “o povo brasileiro”) e, de forma mais fragmentada e menos intensa, a campanha por anistia entre 2023 e 2025. A conjunção entre as reclamações indignadas de suas ausências e a produção fake de suas presenças são indicativos da dificuldade do bolsonarismo em reorganizar as suas tropas diante da prisão de seu maior líder e da cautela de Silas Malafaia, que se profissionalizou a partir da virada de 2023 para 2024 na organização dos showmícios que compuseram a campanha por anistia – o único vídeo a que eu assisti do pastor em reação à prisão de Bolsonaro se limitou a denunciar que o timing de seu encarceramento seria uma forma de tirar o foco do verdadeiro escândalo do momento: o envolvimento de “poderosos” no caso do Banco Master. Nada de convocar um novo ato de rua, seja em Brasília, seja em São Paulo.
Toda manifestação de rua, por menor que seja, independentemente de ser de esquerda ou de direita, é tecida por uma relação complexa entre lideranças políticas e uma determinada base social.
Considerando as lideranças políticas que ocuparam o carreto de som, o ato de 30 de novembro em Brasília foi uma aliança entre políticos do bolsonarizado Partido Liberal (PL), líderes de movimentos conservadores e influenciadores de extrema direita. Entre os políticos profissionais, um deputado, um suplente de deputado, uma vereadora e diversos candidatos derrotados nas eleições de 2022 e 24, formando uma coalizão com protagonismo surpreendente da região Nordeste (Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Sergipe, até onde pude verificar), participação prevista do Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul e, claro, Brasília) e, por fim, como sócio minoritário, o Sudeste (Minas Gerais).
O microcosmo do partido digital bolsonarista não se esgota no sistema político, já que algumas das lideranças atuam na esfera pública de modo mais amplo, como um cineasta (Doriel Francisco da Silva, diretor do filme A Colisão dos Destinos, sobre a vida de Bolsonaro) e influencers, como o presidente nacional do Movimento Influenciadores do Brasil, Deusélis Filho. Considerar esse ecossistema em seus diferentes agentes também nos auxilia em acompanhar como a organização desse ato foi sofrendo alterações até chegar em sua configuração final.
Depois da notícia sobre o protesto na Band Minas, foi a vez do jornal mineiro O Tempo repercutir seu chamamento. Fui entender que isto se devia ao protagonismo inicial do movimento DireitaBH, em aliança com outros movimentos conservadores. A primeira convocatória previa uma passeata que partisse da Catedral Metropolitana de Brasília em direção à “região central da cidade”; interpretei este destino como uma referência cifrada à Praça dos Três Poderes. O 8 de Janeiro continua pairando como um fantasma para a extrema direita. Tanto no sentido de um desejo de constranger os poderes para atingir os seus fins (antes, a intervenção militar; agora, anistia para os golpistas militares) quanto da dificuldade em repetir a ação desejada, diante de uma previsível ação repressiva das forças de segurança e do Judiciár io, cuja legitimidade era frágil até a primeira semana de 2023.
No decorrer da última semana de novembro de 2025, surgiu uma segunda convocatória, desta vez emitida pelo movimento Influenciadores do Brasil. Foi proposta uma micropasseata, que provavelmente duraria meros cinco minutos: saindo do Museu Nacional da República e agora transformando a Catedral como sua destinação. Isso me soou já como resultado da pressão das autoridades e da delimitação do Congresso, do Palácio do Planalto e da sede do STF como uma fronteira cuja invasão não seria tolerada desta vez.
Quando finalmente cheguei ao ponto de concentração descobri que o protesto não seria uma passeata, ficando parado entre a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional da República. O fantasma do 8 de Janeiro tornou o protesto um acontecimento sedentário. Uma imobilidade que funciona bem como metáfora ou expressão do aprofundamento do paradoxo da subversão ao qual eu já me referi.
Além da espacialidade imóvel, o aspecto quantitativo do protesto também foi sintomático da incapacidade atual de mobilização da extrema direita. Nem sequer a acelerada substituição das nuvens carregadas que prenunciavam uma tempestade em Brasília pelo Sol escaldante do Cerrado foi capaz de permitir o crescimento do ato. Foi uma manifestação pequena: cerca de cem pessoas. Segundo Edu Cabral, “somos poucos”, mas “estamos aqui pois fomos escolhidos por Deus para recomeçar nossa luta”. Além disso, arrematou: “Jesus começou com poucos. Apenas com doze e um deles inclusive o traiu.” O contraste entre os corajosos que compareceram e os omissos e traidores que abandonaram “o capitão” foi recorrente entre os discursos. O esvaziamento e o fracasso quantitativo eram tão escancarados, que só restavam outras operaçõ es simbólicas, correndo o risco de pender mais para o apelo à justiça divina do que à ação política humana. Era preciso de alguma forma inverter o cenário de terra arrasada e instilar confiança e esperança entre a aguerrida base.
Em termos políticos, a campanha por anistia idealizada pelo clã Bolsonaro com apoio logístico fundamental de Silas Malafaia continuava sendo o horizonte estratégico do campo reacionário diante do golpe frustrado de 2022. Segundo o influenciador mineiro José Caldeira: “A anistia não é esmola, é um direito constitucional. Foi o fio de esperança que surgiu para nós”, ao mesmo tempo que ele diz não confiar na “justiça dos homens”, apenas na “justiça divina”. Como sempre, este quietismo religioso entra em choque com a ação política, seja dentro, seja fora das instituições.
Já o Capitão Davi Lima Sousa (PL-DF), suplente de deputado federal e presidente da Abemil (Associação Brasileira de Educação Cívico-Militar), elogiou o último presidente da ditadura militar, general João Figueiredo, que anistiou em agosto de 1979 “arruaceiros, sequestradores e assassinos”, além de elogiar e defender “os nossos generais” presos (como Heleno e Braga Netto). Ele arrematou que “precisamos orar”, mas também que “precisamos agir”, em uma tentativa de compatibilizar a justiça divina e a ação política. Contudo, nenhuma unidade entre tática e estratégia foi aventada, já que prevalece o negacionismo que repõe o “Volta Bolsonaro 2026” (segundo ele, “não existe nem Plano B, nem Plano C, apenas Plano A”).
No final das contas, foi um ato menor ainda do que os menores atos que eu já havia observado em novembro e dezembro de 2023 na capital paulista. Naquela ocasião, ainda era possível Nikolas Ferreira afirmar “não menosprezem os pequenos começos”, tecendo tanto um paralelo com o tímido início da campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff (no final de 2014) quanto um sequestro simbólico da palavra de ordem “Amanhã vai ser maior” do Movimento Passe Livre. Dessa vez, não havia condições nem sequer para essa operação retórica ser esboçada. Havia no ar uma difícil e incômoda contradição: Bolsonaro teria despertado e conscientizado milhões de brasileiros, mas naquele tempo e espaço apenas cem pessoas estavam indigna das o suficiente para sair de casa e ocupar as ruas em sua defesa.
O reconhecimento da distância histórica e da involução política na perspectiva da extrema direita foi explicitado por Flávio da Direita Sergipana, ao dizer que está “nesta batalha” desde 2014, tendo participado no ano seguinte do acampamento do impeachment de Dilma: “O povo conseguiu derrubar o PT. Mas naquela época era mais fácil do que hoje, não tínhamos perseguição, censura, encarceramento, exilados.”
Logo antes do fim do ato, uma senhora me abordou, pedindo para eu fotografá-la com seu celular e depois puxou assunto. Ela me contou estar participando das manifestações na frente da PF. Nem tanto para Bolsonaro “voltar ao poder”, e mais “contra a injustiça que ele está sofrendo”. Depois de ela afirmar que “os três poderes podres têm medo do povo na rua”, eu perguntei se ela esperava que o protesto estivesse tão vazio. Na sua visão, “vieram poucos hoje por causa do medo; aqui só vieram os corajosos”.
Resolvi perguntar então o que ela acredita que vai acontecer em 2026; minha intenção era averiguar se ela estava cogitando votar em algum outro nome das direitas ou se ela considerava que Bolsonaro poderia voltar à urna eletrônica no ano que vem. Sua resposta me deixou surpreso e sem reação: “Em 2026 não vai acontecer nada. Comunista não sai no voto. Só sai na bala”, metralhando seguidos xingamentos a Lula. Como eu não me engajei em seu ódio antipetista, o clima ficou estranho e nós dois decidimos silenciosamente encerrar a interação e acompanhar a distância a oração final do ato.
A alusão à violência política (de que Lula só sairia do poder com algum recurso armado) é sintomática do desconforto da extrema direita com a ressaca pós-8 de Janeiro. A primeira convocatória mineira do ato flertava com mais uma passeata em direção à Praça dos Três Poderes, mas a nova realidade policial e judicial falou mais alto e os organizadores efetivos precisaram se comprometer com uma manifestação tão “pacífica e ordeira” que nem sequer a micropasseata pôde ocorrer. Desde 2022 tenho tanto ouvido conversas informais nos protestos da extrema direita quanto lido nas redes sociais bolsonaristas o desejo de que as “domingadas” sejam substituídas por ações coletivas mais “eficientes” e disruptivas. No 8 de Janeiro, o paradigma foi o Sri Lanka, agora em 2025 se tornou a revolta nepalesa. Mas desde a depredação de Brasília, o engajamento com ações diretas se tornou bem mais custoso para o campo reacionário.
Oprotesto seguinte foi convocado para o domingo dia 7 de dezembro, em São Paulo capital, por Padre Kelmon, ex-candidato à presidência em 2022, e teve a sua concentração na frente do prédio da Gazeta, na Avenida Paulista. Vários fenômenos curiosos ocorreram aqui. O primeiro é que os “patriotas” perderam o monopólio do quarteirão do MASP e do Trianon para o ato chamado pelas feministas, “Mulheres Vivas”, contra os feminicídios. Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP e do Cebrap, as feministas reuniram 9,2 mil manifestantes, contra apenas 1,4 mil dos bolsonaristas.
Foi a segunda vez no ano que as esquerdas reuniram mais pessoas do que a extrema direita. E não foi a última: no domingo passado, dia 14/12, o protesto contra o PL da Dosimetria contou com 13,7 mil pessoas. Este número pode ser lido como um retrocesso, por ter um terço do tamanho do ato esquerdista de 21 de setembro contra a PEC da Blindagem (42,4 mil), mas ainda assim foi dez vezes maior do que a passeata bolsonarista.
A segunda curiosidade me parece ainda mais relevante do que a dimensão quantitativa. Ela se relaciona com a dinâmica e o formato da manifestação. Foi a primeira vez em dez anos de observação de protestos da direita que eu acompanhei um ato deixar de ser uma domingada sedentária para se tornar uma passeata nômade. Foi preciso uma certa curva de aprendizagem para aquele público se comportar de maneira inédita. Primeiro que uma passeata de mais de uma hora é um repertório de ação coletiva exigente e desgastante para as pessoas mais velhas. Presenciei um grupo de amigas idosas tendo a seguinte conversa informal: uma pergunta “Pra onde vai?”, ao passo que uma outra responde “Pra Sé!”; a primeira diz “Ah, eu não vou…”, enquanto a amiga confessa “Eu também não!”.
De qualquer forma, não houve grande debandada; a mobilização seguiu pela Paulista e a Brigadeiro até chegar na Catedral. Mas o carro de som precisou educar as pessoas com orientações precisas. No início, havia duas concentrações disformes, sem liderança e sem massividade suficiente ainda para fechar a rua e unificar os dois pontos de concentração, algo que só ocorreu com a ajuda prestativa da Polícia Militar. Além disso, um grupo de pessoas queimou a largada e começou a andar na frente do carro de som, sem esperá-lo, contra os pedidos do mestre de cerimônias, Claudio Luís Caivano, um dos advogados dos presos do 8 de Janeiro e candidato a deputado estadual pelo PTB-SP. Em pouco tempo o carro conseguiu ultrapassar e retomar a liderança.
Em termos qualitativos, também houve outros contrastes com os protestos organizados por Malafaia. Conforme a passeata começou, as lideranças religiosas (“padres, bispos, arcebispos, reverendos, apóstolos”, como disse alguém no microfone) desceram do carro de som e caminharam junto dos manifestantes, sendo que no caso dos showmícios de Malafaia, a operação fundamental era criar uma divisória vertical entre, de um lado, políticos e religiosos tornados celebridades ao caminhar da calçada da fama ao carro de som e, de outro, uma massa de fãs no chão do ato.
Houve algumas continuidades com relação à Brasília: o bolsonarismo continua desesperado para criar táticas que sejam capazes de fabricar artificialmente “o povo”. A diferença entre 30/11 e 07/12 foi que mesmo que o ato paulistano tenha sido pequeno, os organizadores tiveram condições para infundir mais confiança e esperança, gerindo racionalmente as emoções das pessoas para evitar que a não massividade levasse à melancolia e ao derrotismo. Foram criativamente inventados dois recursos para tentar produzir uma vez mais a unidade entre líder e povo, dado que o primeiro está preso e o segundo estava ausente.
O primeiro dos recursos foi o Bolsonaro de papelão, que já tem circulado nas redes sociais. O ex-deputado estadual Douglas Garcia ficou carregando durante a passeata o objeto, como se fosse uma imagem de Nossa Senhora em uma procissão religiosa. Já o segundo recurso foi uma reconfiguração estética do carro de som, que passou a ter três telões gigantes ao seu redor, que ficavam projetando um show gospel na concentração e, depois que a passeata começou, vídeos de manifestações anteriores, de caráter verdadeiramente massivo. Foi uma inovação inteligente pois descentraliza a economia da atenção com relação às lideranças e cria um looping de vídeos que permitiam aos manifestantes reais enxergar em imagens antigas a sua confiança no futuro, independentemente do ato no presente estar vazio. Um a das imagens dizia “o povo nas ruas” e, em seguida, “milhões unidos”. Esse espelho buscava então fabricar, projetar e amplificar a presença popular.
O líder-de-papelão e o povo-de-LED foram, portanto, gambiarras inteligentes boladas por subcelebridades do campo conservador-reacionário para contornar a crise atual do populismo de extrema direita diante da prisão de sua maior liderança política; mas não sinalizam nenhuma forma de superação consistente para refabricar alguma unidade entre lideranças político-partidárias e uma ocupação massiva das ruas que possa incidir diretamente na correlação de forças no interior do sistema político brasileiro.
Se ficou patente o contraste entre os showmícios organizados profissionalmente por Malafaia e o amadorismo mambembe de Kelmon e companhia, o clima emocional ao final do ato foi surpreendentemente positivo, sendo que o próximo protesto já foi marcado, para o último domingo de janeiro do ano que vem. Tanto no carro de som quanto no chão do ato, escutei uma surpreendente apropriação de um símbolo da esquerda. Um orador que foi apresentado como Diogão, abriu seu discurso afirmando que “a gente pode não saber o que vem pela frente, mas sabemos o que vem atrás de nós”. “Famílias inocentes estão sendo destruídas. Não há democracia onde a sua maior liderança está jogada dentro de uma sala. Querem matar o Bolsonaro, mas ele existe em cada um de nós. O Brasil está naquela sala! É uma questão de dignidade, nã o de política”. Mesmo com “o sistema” tirando “de nós a liberdade”, “nós ainda estamos aqui”. O filme dirigido por Walter Salles, Ainda Estou Aqui, uma denúncia e crítica à ditadura militar brasileira e suas práticas de tortura e assassinato, foi novamente citado ao final do protesto, quando uma moça gritou para alguém que a gravava com o celular: “Ainda estamos aqui!”
Diante da aparente dissolução atual da massividade do “povo” bolsonarista, fotos de IA e telões de LED no carro de som buscaram fabricar uma presença diante da ausência. Vislumbrando um futuro não muito distante, acredito que não podemos descartar a possibilidade de que, com o avanço da tecnologia e da sua apropriação humana para fins políticos, comecem a circular deep fakes de protestos (mais pacíficos ou mais desordeiros, dependendo do interesse do momento), que serão cada vez mais indistinguíveis de vídeos gravados em manifestações reais. O que ainda nos resta entender é como isso vai alterar a relação entre o online e o offline na ocupação dos espaços urbanos.
Contudo, ainda não foi desta vez: a fabricação digital do povo em protestos falsos ou a projeção de vídeos antigos em telões não se converteram magicamente em mobilização e presença física, o que enfraquece no curto prazo a comunhão “do povo” com seu líder, encarcerado e abandonado por alguns de seus aliados. Neste exato momento, estas imagens, falsas ou antigas, não passam de um sintoma do imobilismo e da derrota momentânea do bolsonarismo diante da inédita responsabilização pelo STF de seu golpismo. A dúvida que fica é como a política das ruas e o conservadorismo brasileiro vão se reconfigurar daqui em diante e se o Congresso terá força e legitimidade para impor um retrocesso escandaloso à história de nossa democracia, seja sob a forma de “anistia”, seja sob a forma da & ldquo;dosimetria”.
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Leia: A eficiência das fake news e os seus significados políticos e culturais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/enfrentamento-das-fake-news.html

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