O canto da sereia do isolacionismo esquerdista
A recusa a alianças amplas, em nome da pureza ideológica, fragiliza a defesa democrática e pode abrir caminho ao avanço da extrema-direita no Brasil.
Thiago Modenesi/Vermelho
Nos últimos anos, setores barulhentos da esquerda brasileira têm entoado um canto sedutor, porém perigoso: o isolacionismo político. Essa postura, que rejeita alianças com o centro e centro-esquerda em nome de uma suposta pureza ideológica, não apenas demonstra uma leitura equivocada da conjuntura política brasileira, mas ameaça minar os esforços para conter o avanço da extrema-direita e garantir a sobrevivência do Estado democrático de direito.
O primeiro equívoco dessa postura reside na incompreensão da natureza do momento político atual. Não vivemos um cenário revolucionário clássico, com condições objetivas para transformações estruturais profundas imediatas. Vivemos, sim, uma emergência democrática: o desafio imediato é impedir retrocessos autoritários, defender instituições básicas e conter forças que ativamente trabalham para desmontar direitos conquistados, minar a legitimidade eleitoral e atacar minorias.
Os que torcem o nariz ao escutar a ideia de se formar amplas frentes de defesa democrática sob o argumento de que essas alianças “diluem o programa” ou “fortalecem setores que mais adiante nos engolirão” ignora um princípio básico da política: a importância de distinguir entre lutas estratégicas de longo prazo e batalhas táticas imediatas. A história política mundial está repleta de exemplos onde a esquerda maximalista, ao recusar alianças necessárias, abriu caminho para a ascensão de forças reacionárias.
O século XX oferece lições amargas sobre os perigos do sectarismo de esquerda. Na Alemanha pré-nazista, comunistas consideravam os sociais-democratas como inimigos principais, facilitando a ascensão de Hitler. Na América Latina, divisões na esquerda frequentemente pavimentaram o caminho para vitórias da direita, a Bolívia é exemplo recente disso.
No Brasil contemporâneo, essa dinâmica se repete perigosamente. Enquanto a extrema-direita bolsonarista mantém coesão apesar de diferenças internas, setores da esquerda se fragmentam em debates sobre pureza ideológica, recusando pontes com forças democráticas centristas. Esse perfeccionismo político opera como um luxo que não podemos pagar quando direitos fundamentais estão sob ataque sistemático. Gosto muito da frase do camarada Luciano Siqueira, ex-vice-prefeito do Recife e ex-deputado estadual, dirigente do PCdoB quando afirma que nossas alianças juntam, mas não misturam, sendo como a água no óleo.
O isolacionismo do esquerdismo parte de uma compreensão mecanicista de como ocorrem transformações sociais. Ignora que, mesmo em cenários revolucionários clássicos, as amplas frentes foram fundamentais. A Revolução Russa de 1917 contou inicialmente com ampla coalizão contra o czarismo e a Frente Popular na Espanha (1936-1939) representou uma tentativa de unir forças democráticas contra o fascismo.
A ideia de que mudanças profundas podem ser realizadas por um grupo minoritário, sem construir hegemonia cultural e política ampla, é uma fantasia perigosa, revestida de ilusões com o processo eleitoral burguês que vivemos no Brasil, buscando nele posições e possibilidades que nem no cenário revolucionário seriam possíveis. Há claro desprezo pela correlação de forças em curso na sociedade brasileira e da importância de partidos sociais-democratas progressistas como o PT, que quando estão no poder reforçam mecanismos democráticos e ajudam a impedir o avanço de ideias e forças ultraconservadoras.
A política democrática é, por natureza, a arte da construção de consensos e maiorias. Recusar-se a essa dinâmica é condenar-se à irrelevância ou, pior, à condição de coadjuvante involuntário na ascensão daquilo que se pretende combater.
A construção de uma frente ampla democrática não significa abandono de princípios ou programa transformador. Significa, sim, reconhecer que há batalhas que precedem outras na ordem do tempo. A primeira batalha – a defesa da democracia mínima, do direito de existir da oposição, da integridade do processo eleitoral – é pré-condição para qualquer projeto de transformação social mais profunda.
Essa frente ampla deve ser entendida como espaço de convergência mínima, não de fusão programática. Trata-se de acordo sobre o que é inegociável: o respeito aos resultados eleitorais, a rejeição à violência política, a defesa do pluralismo, a proteção dos direitos humanos fundamentais. Sobre esse piso comum, as diferenças programáticas podem e devem continuar a ser debatidas.
O canto da sereia do isolacionismo esquerdista seduz com promessas de pureza política, mas conduz ao naufrágio coletivo. Os setores esquerdistas enfrentam hoje uma escolha histórica: insistir no maximalismo sectário que a mantém confortavelmente pura e irrelevante, ou assumir a responsabilidade de ajudar a construir amplas alianças para defender a democracia ameaçada.
A segunda opção exige maturidade política, capacidade de diálogo com diferentes e humildade para reconhecer que nenhum setor político detém monopólio da verdade ou da virtude. Exige, sobretudo, compreender que sem democracia não há espaço para nenhum projeto de esquerda, apenas a sombra autoritária que hoje ameaça não só progressistas, mas a própria ideia de sociedade plural.
A história julgará com severidade aqueles que, em nome da pureza ideológica, negligenciaram sua responsabilidade de defender o frágil espaço democrático que ainda nos resta. O momento exige menos cantos sedutores e mais ações concretas de união. O preço do isolamento pode ser a democracia brasileira.
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O lugar do PCdoB na cena política https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/partido-renovado-e-influente.html

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