Lumière – a aventura continua!
Comentário sobre o documentário dirigido por Thierry Frémaux, em exibição nos cinemas
FRANCISCO FOOT HARDMAN/A Terra é Redonda
1.
Este é um documentário verdadeiramente notável. Dirigido por Thierry Frémaux, grande pesquisador e conservador do Instituto Lumière, em Lyon, também sua cidade natal, “A aventura continua!” pretende, sim, dar continuidade ao filme anterior que ele dirigiu, Lumière! A Aventura Começa (2016), focado mais no início da descoberta e experimentos originais do cinematógrafo, pelo fotógrafo-fabricante Antoine e seus filhos Auguste e Louis.
Atenção: quem ainda não viu nenhum dos filmes, pode ir direto a esse segundo, sem susto, pois aqui, ao recuperar e projetar mais de 100 “vistas” que esses inventores geniais produziram, Thierry Frémaux foi fundo no resgate de uma memória em parte perdida ou danificada, e sua transformação – pelo trabalho incansável de seu pesquisador e narrador – em história presente.
Essas “vistas” de até 50 segundos, ao som cativante de Gabriel Fauré, captadas por uma equipe técnica de produtores e filmadores, aberta e disponível, não só na França, mas em tantos outros países da Ásia, África e Américas, são capazes de nos transportar, com luz, movimento e cenas reais de campos, cidades, ruas, montanhas, rios e mares, pessoas anônimas, ao que já se podia anunciar, com inteira propriedade, como a entrada nesse nosso sofrido mundo, com sua beleza e melancolia únicas, no que a passagem do século XIX para o XX anunciava e aqui, mais do que nunca, simplesmente mostrava, sem retoques teatrais nem truques circenses.
Sim, todas essas mais de 100 “vistas” foram captadas entre os anos de 1895 e 1905. Mas como são contemporâneas todas as emoções que nos ensejam, sem necessidade de legendas, nem diálogos! É seu próprio diretor e curador atual, Thierry Frémaux, o narrador entusiasta desse acervo maravilhoso e sem preço.
Talvez, por absurda que possa parecer essa possibilidade, quem sabe sua condição de judoca premiado o tenha auxiliado em saltar com destreza por entre tantos fragmentos do real, em se safar dos golpes de má-sorte, em abraçar a corrida do tempo sempre a favor de seu ritmo real e, sobretudo, em jamais minimizar os demais jogadores dessa partida ilusória a que chamamos “vida”.[i]
2.
Evitarei, aqui, a todo custo, qualquer spoiling desse belíssimo filme. Aos que ainda não conhecem a contribuição pioneira e única dos Lumière (se esse não é um nome predestinado, me digam outro), recomendamos que corram agora para tomar conhecimento, em seu nascedouro, da arte mais moderna que o mundo criou.
Como não se emocionar a cada tomada (houve, pelo menos, três) da saída de fábrica das usinas Lumière, naquele fatídico 19 de março de 1895? Como não se apaixonar pelas operárias tão bem-vestidas que assomam, em massa e anônimas, pela saída/entrada do armazém da fábrica? Sim, não haveria, certamente, hipótese mais cabível: a entrada em cena da modernidade, quando posta em movimento artístico-mecânico, tinha que ser pela passagem de quem e a quem devemos tudo – o que somos ou o que sonhamos ser: a classe operária.
Mas já que estamos aqui comentando as origens de uma arte que tenta capturar, sempre, as imagens em movimento, não há, naquele trânsito, nada mais expressivo do que a chegada de um trem, sempre poética e épica, seja de carga ou de passageiros, a uma plataforma já plantada por uma câmera. E sendo o cinema originalmente uma arte sem som, parece que seu ritmo original acaba se igualando à toada triste, promissora, porém, de uma locomotiva nos trilhos.
Mas seria algo injusto, também, não considerar aqui, como coadjuvantes de insubstituível valor, aqueles bondes rodando em trilhos retos e curvos, em pleno espaço urbano de cidades tão enigmáticas em suas novas velocidades. Como, também, há que lembrar-se de navios de vários portes, singrando mares revoltos ou estacionados em algum porto distante, esperando suas cargas, seus passageiros agitados, em algum anúncio de ir. Muitos para lá longe ficar. E muitos outros sempre na promessa incerta de uma volta.
3.
Há, também, cenas lindas de colheita no campo, de trabalhos agrícolas ritmados. E, ainda, de uma água oceânica agitada batendo em rochedos imóveis, harmonia de contrários, que se poderia estender por um plano-sequência muitíssimo superior aos 50 segundos que a técnica disponível facultava então à câmera.
E há, igualmente, muitíssimas crianças, a documentar a novíssima arte, a se anunciar, também, como signos de alguma esperança em nossa trôpega espécie. Como na famosa briga de bebês, pela posse de um talher, em que um perde e chora, e o outro parece afetado e disposto a uma trégua, a um consolo que jamais saberemos no que irá resultar.
E, já nos créditos finais dessa estranhamente bela película, reconhecemos o cineasta Francis Ford Coppola que, em 19 de março de 2019, vai a Lyon, à usina Lumière, e filma nova saída da fábrica, no que se convencionou uma justa celebração anual a esse invento revolucionário e a seus inventores. E, agora, não são mais operárias e operários a saírem daquele espaço mágico. São jovens alegres que transitam nessa cena, num desfile adequado a esse tempo, sem nenhum outro recurso além de seu irrequieto deslocamento.
Marcando, também, o mundo sinuoso da indústria cultural com a entrada na era do espetáculo, as câmeras dos Lumière registram a abertura da Exposição Universal de 1900 em Paris.
Igualmente, não deixam de revelar a presença naturalizada do colonialismo, nas cenas fortes filmadas em Argel e Saigon, entre outros espaços. Como também, na dança folclórica africana, filmada a partir de exposição colonial que compunha o quadro pretensamente “universal” da grande feira.
Tomados, que estamos, em nosso tempo, pela ditadura de imagens e cortes a serviço da publicidade, do consumismo e da fúria do capital sempre a serviço do fetichismo, vale voltar muito a esse início poético e verdadeiramente humanista das origens do cinematógrafo e do cinema moderno. Podemos nos aproximar disso tranquilamente, pois a narrativa de Thierry Frémaux é muito bem conduzida, não só pelas qualidades intrínsecas desse documentarista e narrador.
Mas, acima de tudo, pela excelência e originalidade de suas fontes. Os Lumière vieram para ficar. Iluminaram a cena do que já era e do que viria a ser. Cabe a nós cultivarmos a sua lição única de humor, harmonia, sabedoria e paz!
*Francisco Foot Hardmané professor titular em Literatura e Outras Produções Culturais da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Minha China tropical: crônicas de viagem (Unesp). [https://amzn.to/42nrjKN]
À memória de Victor Leonardi (1942-2025), historiador, escritor e roteirista de tantos filmes inspirados na melhor arte de Lumière, como O Atlântico Negro: na rota dos Orixás (1998), a série Brasil Migrante (2015-17) e Tesouro Natterer (2024).
Referência
Lumière: a aventura continua! [Lumière l’aventure continue]
França, 2025, documentário, 104 minutos.
Direção: Thierry Frémaux.
Nota
[i] Thierry Frémaux, Judoca, São Paulo, Fósforo, 2023 (ed. orig. 2021).
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