A desumana partilha do tempo*
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65
A essa altura da vida, empenhado em render o
máximo que posso porque miro o horizonte e vejo que já vivi muito e que não me
resta tanto assim, lidar com o tempo não é fácil. Distribuir bem o tempo útil,
nessa categoria incluindo o tempo para o amor, o lazer, a leitura e o simples
devaneio criativo. Uma peleja diária, que vou levando entretanto sem muito
estresse, pois assim perderia muito tempo...
Pois bem. Passada a noite festiva de Natal,
mergulho na habitual algazarra dos últimos dias do ano numa casa de praia, com
Luci, as meninas, genros, netos e agregados. Todos se divertem o tempo todo – e
eu mais ou menos, ao olhar dos demais, pois durmo um tanto e leio bastante:
para reparar o corpo da canseira acumulada e me deliciar sobretudo com contos,
romances, poesia. Há até quem, em desaviso, me critique por “aproveitar pouco”,
eu que acho que aproveito bem demais!
Imagine quem leva a vida comprimido entre a
rígida carga da jornada de trabalho e o tempo gasto para se locomover numa
cidade de trânsito complexo. Muitos ainda têm, de quebra, algumas horas de
curso noturno.
O fato é que as horas efetivamente destinadas ao
descanso ou ao lazer, aos assalariados de nossas médias e grandes cidades têm
sido encurtadas na razão direta da explosão urbana. Na Região Metropolitana do
Recife, por exemplo, há quem resida em Paulista, trabalhe no Cabo de Santo
Agostinho e estude, à noite, no Recife. E ainda faz bico no final de semana
para complementar a renda.
Assim saem pelo ralo conquistas históricas do
tempo da Revolução Industrial, quando após ingentes lutas operárias foi
possível superar as jornadas de trabalho superiores a 14 horas diárias e mais
de 80 horas semanais. Como observa Marcio Pochmann, estudioso do mundo do
trabalho, desde então, a conquista de férias regulares, do descanso semanal e
do teto máximo de oito horas diárias (48 horas semanais) proporcionou a redução
da relação do trabalho com o tempo real de vida de mais de dois terços a menos
da metade.
Na verdade, com o altíssimo nível de
desenvolvimento das forças produtivas atual, em que os progressos da ciência
permitem um extraordinário aporte de tecnologia aos sistemas produtivos, seria
possível – se a lógica do sistema capitalista não fosse, como é, o lucro máximo
via extorsão da mais-valia – reduzir drasticamente a jornada de trabalho de
modo a que milhões de excluídos pudessem ingressar na produção e os que
trabalham pudessem dedicar mais tempo de suas vidas ao espírito.
Pior com o advento da “uberização”, modo
de dizer da absurda precarização do trabalho, informal em toda linha, reforçada
pela pressão ideológica do “empreendedorismo individual”.
Mas aí caímos na natureza injusta do sistema e
na razão de ser da luta de muita gente (como o autor dessas linhas) por uma
sociedade justa e mais humana. Que justifica, pelo menos a meu juízo, o esforço
militante de bem aproveitar o tempo para melhor contribuir para o movimento
transformador.
*Texto da minha coluna desta
quinta-feira no Vermelho www.vermelho.org.br
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