03 novembro 2020

Mutações musicais

Entra um instrumento, sai outro

Ruy Castro, Folha de S. Paulo

 

Em coluna recente ("Gênio apesar da droga", 6/9), sobre o saxofonista Charlie Parker, comentei que um dos motivos para a aversão a ele pelos jazzófilos conservadores nos anos 40 e 50 era o fato de seu instrumento, o sax-alto, ter alijado de cena o clarinete, até então onipresente no jazz. De fato, depois dele nunca mais surgiram clarinetistas como Sidney Bechet e Benny Goodman. As revoluções futuras seriam comandadas por saxofonistas como Sonny Rollins, John Coltrane, Ornette Coleman.

Mas isso sempre aconteceu — a superação de um instrumento pela erupção de um gênio num instrumento similar. A pré-história do jazz, por exemplo, foi escrita pelo cornet, e um de seus virtuoses era King Oliver, mentor de Louis Armstrong. Pois foi o trompete de Louis, cortante e cristalino, que, em 1925, aposentou o cornet e o próprio King Oliver.

A seção rítmica dos grupos de New Orleans se baseava na tuba, até que, em 1926, um praticante do instrumento, Wellman Braud, músico de Duke Ellington, trocou-o pelo contrabaixo, e só restaram à tuba as bandas militares. Outro sustentáculo daqueles grupos era o banjo, substituído a partir de 1927 pelo violão de Eddie Lang. E, com Lionel Hampton, em 1935, o vibrafone enterrou o xilofone.

Com os cantores foi a mesma coisa. A chegada do microfone, em 1926, não veio para salvar os cantores sem voz, como se pensa, mas para valorizar os que tinham voz e aprenderam a usá-lo, como Bing Crosby e Ethel Waters. Em 1930, eles já tinham feito os altissonantes Al Jolson e Bessie Smith parecerem antediluvianos.

Durante todo o século 20, a música popular se beneficiou dessa dinâmica. Os instrumentos iam sendo superados, mas o processo não parava. Isso acabou. Há 30 anos a instrumentação reduziu-se a guitarra, teclados e percussão e estacionou por aí. O resto é figuração e pode ser gerado em chocadeira elétrica, digo, computador.

Múltiplos são os caminhos da resistência https://bit.ly/3lg3rl8  

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