Os deuses que Nietzsche não matou
Cláudio Carraly*
"Quem é
ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar"
— Caetano Veloso, Milagres do Povo
Cresci em uma família kardecista,
uma das mais antigas a professar essa fé em Pernambuco. Fui criado também pela
mão firme e doce de uma incrível mulher da umbanda. Essas presenças não eram
ornamentos da infância, eram universos. Eram modos de sentir, de intuir, de
perceber que existe algo além do que as estruturas materiais conseguem me
explicar. Não contra elas. Mas além. Um pouco além. Muito mais além.
"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar". Eles brotavam na mesa de passes, nos pontos cantados, nas histórias que formaram meu imaginário. Inúmeros deuses que Nietzsche não matou, que o materialismo não apagou. Divindades que insistiam em existir porque eram do povo, nascidos da necessidade humana de beleza, sentido e transcendência, porque a vida não basta em si mesma.
Marx tinha razão sobre muita coisa. Sobre como as condições materiais moldam a consciência, sobre como a religião pode funcionar como ópio e funciona, em inúmeros contextos históricos, sobre a necessidade urgente de transformar o mundo em vez de apenas interpretá-lo ou consolá-lo.
Mas Marx operava com uma antropologia incompleta. Ele partiu da premissa de que as contradições da humanidade eram causadas apenas pelas questões materiais, sociais e de classe. Seu prognóstico era claro: com a transformação das condições materiais, a necessidade da religião desapareceria. A consciência religiosa era, na sua visão, superestrutura, reflexo ideológico de misérias concretas. Resolvidas essas misérias, a religião definharia naturalmente.
O que Marx não viu, ou não quis
ver, é que a necessidade de transcendência não é privilégio dos oprimidos nem
compensação exclusiva dos miseráveis. Ela atravessa todas as classes. O
direito, a capacidade, a necessidade de crer ou não crer é uma negociação
interna de cada ser humano no planeta. É algo interno, não externo. Não se
dissolve com a redistribuição dos meios de produção.
A angústia metafísica não é falsa
consciência. O espanto diante do mistério da existência por que há algo em vez
de nada? Não é ideologia de classe. A experiência do sagrado não desaparece
quando o estômago está cheio e a jornada de trabalho é justa.
Marx confundiu a forma histórica
que a religião assume (e que pode, de fato, ser alienante, opressora,
legitimadora da injustiça) com a dimensão antropológica da religiosidade, essa
abertura humana ao que está além do calculável, do mensurável, do puramente
material.
E aí reside minha divergência com
o materialismo ortodoxo: posso aceitar toda a crítica estrutural marxista, toda
a análise das relações de produção, toda a denúncia da exploração de classe, e
ainda assim reconhecer que o ser humano não se esgota na dimensão
histórico-econômica. Há algo no humano que continua perguntando "e agora? Para
que tudo isso?" Mesmo quando as necessidades materiais estão atendidas. Essas
perguntas não são alienação. São sinais de que somos mais complexos do que
qualquer materialismo consegue capturar.
Veio então a curiosidade, aquela
fome de quem quer compreender tudo, a busca pelo que passava pela alma da
humanidade, o que tocava cada um que habitava esse plano como eu. Então li:
hinduísmo, islamismo, confucionismo, budismo, zoroastrismo, xamanismo. Eu
devorava religiões como quem tenta montar um quebra-cabeça impossível,
procurando as bordas do mistério, os pontos de confluência e os de separação,
buscava onde estava a centelha compartilhada em cada filosofia, o que animava
nossa existência.
Mas havia um lugar para onde eu
sempre voltava, um ponto de gravidade, podemos dizer que meu marco zero nos
estudos: o judaísmo. De lá normalmente minhas jornadas partiam e para onde
retornavam. E não estava sozinho nessa viagem.
Walter Benjamin entrelaçou
materialismo histórico e messianismo judaico numa filosofia da história que via
na redenção a interrupção revolucionária do tempo capitalista. Ernst Bloch
escreveu sobre a esperança como princípio tanto da utopia marxista quanto da
profecia religiosa. Erich Fromm mostrou que a ética judaica e o humanismo
socialista bebem da mesma fonte: a dignidade radical de cada ser humano.
Não eram homens que abandonaram
Marx para encontrar Deus, nem que traíram a fé para abraçar a revolução. Eram
homens que perceberam que justiça social e profecia, luta de classes e
reparação do mundo, crítica e transcendência podiam, talvez precisassem,
caminhar juntas.
O judaísmo sempre denunciou a
opressão, sempre gritou contra a injustiça, sempre exigiu cuidado com o
estrangeiro, a viúva, o órfão. Não é coincidência que tantos revolucionários
tenham vindo de famílias judaicas: há nessa tradição um imperativo ético de
responsabilidade coletiva.
E é isso que respondo ao Marx
ortodoxo que me acusaria de consolação burguesa: o judaísmo que pratico não é o
que anestesia, não é o que promete céu em troca de resignação terrena. É o
judaísmo profético, o que empurra para dentro da história, não para fora dela.
É a fé que exige justiça agora, que não aceita exploração como vontade divina,
que vê no tikun olam – reparação do mundo – não uma promessa para depois
da morte, mas um imperativo para hoje.
Essa espiritualidade não compete
com o marxismo. Ela o alimenta com combustível moral, com memória dos
oprimidos, com recusa ética que vem de mais fundo que a análise econômica.
E então o destino me fez me
reencontrar com ela, minha futura rabina, e hoje meu amor.
Foi como se todas as versões de
mim, o militante, o buscador espiritual, o menino criado entre passes e guias,
o homem que lia "O Estado e a Revolução", finalmente se encontrassem
e reconhecessem que sempre foram partes de um mesmo ser. Complexo, sim.
Contraditório, também. Mas pela primeira vez, inteiro.
Ela me ajudou a ver que eu podia
ser tudo isso. Aliás, que eu sempre fui isso. Que a contradição não era um
problema a ser resolvido, mas um território a ser ainda mais explorado. Minha
visão multilateral também a ajudou a melhor compreender a maravilha da
diversidade humana.
Me ensina que pertencer não
significa fechar portas. Que encontrar novas moradas não exige negar o que nos
moldou, seja os orixás que me encantam ou Gramsci que ajudou a libertar minha
alma.
Construímos juntos uma forma de
viver onde marxismo e judaísmo não competem, mas dialogam. Onde ela, como
rabina, traz a profundidade da tradição que carrega milênios de sabedoria sobre
justiça e compaixão. E onde eu trago a urgência revolucionária, a análise das
estruturas, a recusa em aceitar que pobreza e opressão sejam naturais ou
inevitáveis.
Nossas conversas são tessituras.
Ela me lembra que transformação social sem dignidade humana vira autoritarismo.
Eu a lembro que dignidade sem justiça material é privilégio de quem pode pagar
por ela. Juntos, tentamos construir um pensamento que não mutile nenhuma dimensão
do humano.
"E o coração — soberano e
senhor — não cabe na escravidão, não cabe no seu não."
Não cabe em nenhuma ortodoxia que
me obrigue a ser menos do que sou. O coração soberano insiste em ser inteiro.
Acende velas no Shabat sem rasgar minha carteirinha do partido. Estuda Torá sem
esquecer a mais-valia. Frequenta a sinagoga sabendo que religião pode ser ópio,
mas também pode ser profecia, resistência, memória subversiva de quem nunca
aceitou a escravidão e opressão.
Não abandonei nada. Integrei
tudo. Corpo, mente e alma reunidos em uma só pessoa.
Posso ser comunista sem perder o
assombro diante do mistério. Posso ser religioso sem ignorar as estruturas
materiais de dominação. Justiça social e vida espiritual não são inimigas, são
aliadas na caminhada rumo a um mundo reparado.
Somos felizes. Plenos. Nossa vida
tem espaço para tudo: para a crítica social e para as bênçãos, para a análise
materialista e para o transcendente. Tem espaço para a complexidade, para a
contradição criativa, para a tensão que não precisa virar síntese muito menos
uma antítese forçada.
Há uma sabedoria que só vem de
quem já tentou caber em caixas estreitas e desistiu. De quem viveu o suficiente
para saber que a realidade é mais vasta que qualquer ortodoxia. De quem amou o
suficiente para entender que a verdade não é propriedade privada, é algo que se
compartilha, que circula, que se revela de modos diferentes em tradições diversas.
O kardecismo me ensinou
continuidade. A umbanda me mostrou força ancestral e que os orixás são reais
para quem deles precisa. O marxismo me deu ferramentas para enxergar dominação
e combatê-la. O judaísmo me ofereceu comunidade, memória, esperança.
E minha trajetória me ensinou que
eu não precisava escolher entre esses tesouros. Que eu podia, que eu devia
carregá-los todos comigo.
"Os deuses sem Deus não
cessam de brotar, nem cansam de esperar."
Esperam que entendamos que não é
preciso matar a transcendência para fazer a revolução. Que não é preciso negar
a matéria para acessar o espírito. Que podemos ser inteiros, complexos,
contraditórios e, por isso mesmo, mais sábios.
Estamos em casa, minha rabina e
eu. Uma casa com lugar para todas as minhas contradições, para todos os meus
mundos, para todas minhas fés. Uma casa onde um militante comunista e uma judia
acendem velas no Chanucá em perfeita comunhão. Onde o materialismo
dialético e a crença no sagrado conversam, discutem, dançam, bebem, celebram.
Uma casa onde não peço desculpas por ter visto milagres. Onde não nego que os
deuses brotam, teimosos e necessários, do coração de cada um de nós.
Onde a luta de classes e a
reparação do mundo são faces da mesma esperança e lados da mesma moeda.
Somos matéria e espírito.
Estrutura e desejo. História e transcendência. Marx e Moisés. A crítica que
desmascara ilusões e a fé que insiste que o mundo pode ser mais mágico, mais
justo, e muito mais humano.
Sim somos muito complexos,
bastante complicados, mas enfim agora, só um pouquinho mais sábios. E estamos
em casa!
* Advogado, ex-Secretário Executivo
de Direitos Humanos de Pernambuco

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