Carnaval:
rebeldia e prazer*
Luciano
Siqueira
Tudo se relaciona, aprendemos com a visão materialista dialética do mundo. Daí o cruzamento entre folguedos populares e luta política; alegria imediata e tradição.
E também a implacável reprodução do capital. Acontece
com o carnaval, cá onde vivo, luto e me divirto e alhures.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima
um faturamento de R$ 12,03 bilhões este
ano.
Entre os segmentos mais beneficiados,
bares e restaurantes, com projeção de faturar R$ 5,4 bilhões, seguidos pelo “transporte
de passageiros” (R$ 3,31 bilhões) e “hospedagem” (R$ 1,28 bilhão). Juntos,
esses segmentos responderão por 83% da receita gerada pelo turismo durante a
folia.
Aguarda-se a presença 868,4 mil
visitantes vindos de fora do país, superando o recorde de 2018 e maior do que o
registrado em 2024, quando recebemos 833,3 mil turistas – ainda segundo
a CNC.
Pela ordem, as cidades de
maior afluência de turistas este ano devem ser Rio de Janeiro, São Paulo,
Salvador e Recife.
Mais: a oportunidade de 32,6
mil empregos temporários no conjunto do país, sem contar com o
imenso contingente de trabalhadores informais.
Cá em Pernambuco, a
expectativa é de que o Carnaval de 2025 injete R$ 348,71 milhões na economia do
estado, aumento de 1,4% em relação a 2024.
Alegria é o que importa
Tirante os aspectos
econômicos, o carnaval é sobretudo um instante de alegria e de extravasamento do
sonho e dos ideais humanos. Como se tem registrado, ao longo do tempo, na
literatura brasileira.
Autores os mais diversos
mencionam o carnaval em suas obras ou mesmo o tratam como tema central. Sempre um
misto de expressão libertária bem humorada e até transgressão.
Na obra do baiano Jorge
Amado, presença marcante, a partir do seu primeiro romance, ‘O País do Carnaval’,
escrito em 1931. Mas igualmente no conjunto da sua criação, sob diversos aspectos
e intensidade.
Machado de Assis nos brindou
com saborosos contos e crônicas sobre o tema, como “Ano sem carnaval”: "Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras
brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, e várias graças
que foram concedidas por outras, não sei melhores se se se piores...”.
Na verdade,
dos primórdios do século 20 e aos dias que correm, tema sempre recorrente e rico,
como expressão do modo de ser, lutra e amar de nossa gente.
Que seriamos sem o carnaval?
O próprio Machado responde: “Quando eu li que este ano não pode haver carnaval
na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo
for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de
l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e
grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira deuses de
Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.” (Folha de S. Paulo, 12/fev/2010).
No
artigo “A
Literatura Brasileira e a Arte do Carnaval” (Terceira Margem, UFFR), Fred Góes
cita Olavo Bilac: “O Carnavalesco legítimo não tem cansaço nem aposentadoria:
envelhece carnavalesco, e morre carnavalesco; morre no seu posto, extenuado
pelo Carnaval, entisicado pelo Carnaval, devorado pelo Carnaval. O Carnaval é
para ele, ao mesmo tempo, uma paixão absorvente e arruinadora, um vício
indomável, uma religião fanática. Para ele, o Carnaval é o único oásis fresco e
perfumado, que se antolha no adusto deserto da vida!”
Também Lima Barreto (“...é a
maior expressão da alma brasileira, uma explosão de alegria, sensualidade e
liberdade”) e Oswald de Andrade (...é a revolução das formas, a explosão da
alegria, a liberdade sem programa”) abordaram o tema.
Os mestres de nossa crônica moderna,
idem. Para Rubem Braga, “o único momento em que o brasileiro se sente
completamente livre para ser o que não é”. Fernando Sabino o percebia como “uma
explosão de alegria, um momento em que o brasileiro se esquece de suas tristezas
e se entrega à festa”. Já Luis Fernando Veríssimo o considera “a única época em
que o brasileiro não se sente culpado por estar feliz.”
Expressão de rebeldia
Modestíssimo escrevinhador, em algumas
oportunidades registrei na minha coluna semanal no Portal Vermelho www.vermelho.org.br , traços a um só
tempo lúdicos e guerreiros do carnaval pernambucano.
A própria expressão frevo, derivada de
"frever" (a massa popular, ainda oficialmente proibida de participar
do festejo, fim do século 19, início do século 20, “frevendo” nas ruas e enfrentando
corajosamente a repressão policial.
A sombrinha do frevo, símbolo do
carnaval pernambucano, derivada do guarda-chuva tradicional cuja haste metálica
servia como arma para capoeiristas à frente do cortejo darem conta da
resistência à polícia.
A denominação de dezenas de agremiações
carnavalescas associada às categorias profissionais às quais pertenciam seus
fundadores, várias relacionadas com as caixas beneficentes que antecederam os
sindicatos: Clube das Pás Douradas, Vassourinhas e tantos outros.
A polêmica contra a suposta injustiça
de uma eventual comissão julgadora contida na obra prima do compositor Capiba,
no frevo de bloco da agremiação Madeira do Rosarinho, "Madeira que cupim
não rói": “E se aqui estamos, cantando esta canção/Viemos defender a nossa
tradição/E dizer bem alto que a injustiça dói/Nós somos madeira de lei que
cupim não rói."
E a própria experiência militante no
final dos anos 70, em plena ditadura militar quando no Recife e em Olinda blocos
recém-criados expressavam a luta pela liberdade.
Vários improvisados e momentâneos.
Outros, como o "Grêmio Lítero Recreativo Cultural Misto Carnavalesco
Eu Acho é pouco”, com seu estandarte vermelho-amarelo, que há precisos 29
anos arrasta multidões pelas ladeiras de Olinda.
Aliás, a cor vermelha sempre marcante
nos estandartes e nos adereços e fantasias de blocos e foliões. Como assinala o
poeta Carlos Pena Filho no "Soneto principalmente do carnaval”: "De
pirata da Espanha disfarçado/adormeci panteras e medusas./Mas, quando me
lembrei das andaluzas,/pulei do azul, sentei-me no encarnado."
Dever militante? Nem tanto
Como anotei anos atrás na minha citada
coluna no portal Vermelho, carnaval é antes de tudo prazer. Dever apenas para
os que, por ofício ou necessidade, atravessam os dias de Momo envoltos em
obrigações profissionais.
Óbvio? Nem tanto. Eu mesmo já brinquei o
carnaval muitos anos. Desde criança, quando meu pai ornamentava um caminhão e
enchia de amigos e vizinhos para o corso, em Natal, em meados dos anos 50.
Ocorre que a militância política já em
Pernambuco, que em 1982 me proporcionou a primeira eleição para deputado
estadual, introduziu (para meu desgosto) uma tentativa, da parte de
companheiros de Partido, de me transformar em folião” por dever”. Ou seja: ao
invés de por um tênis, uma bermuda e uma camiseta e saí por aí atrás de blocos
pelas ladeiras de Olinda e ruas do Recife, e o que mais desse na telha, a
obrigação de cumprir um roteiro tido como “politicamente necessário”:
– Você tem que ir à prévia do “Lili nem
sempre toca flauta”, pra começo de conversa.
– Veja lá, não deixe de ir à inauguração da
barraca do “Sai na Marra”, nem ao desfile do domingo!
- Já anotou o horário da “Pitombeira dos
Quatros Cantos”? E do “Elefante”?
Ora, quem luta por toda a vida e põe sempre
os interesses do povo em primeiro lugar, tem todo o direito de se orientar pela
máxima “o dever é público, o lazer é privado”.
Mais: se possível, em se tratando de festa,
nunca misturar dever com lazer. Até porque ninguém jamais ganhou ou perdeu
eleição por ter comparecido, ou não, a esta ou àquela agremiação carnavalesca.
Como o Estatuto partidário não estabelece
como dever militante fazer política eleitoral no carnaval, jamais me curvei às
pressões. E fui trilhando minha trajetória de folião discreto, porém
assíduo.
Foi assim que numa radiosa manhã de domingo,
mal pude me levantar da cama, tamanha a dor que sentia no cóccix. Havia me
esparramado no chão ao cair de uma mesa de bar, onde fazia inimagináveis (para
um cara tímido como eu) evoluções com o estandarte do bloco “Sai na Marra”.
Muita cachaça na cuca...
E hoje? Bom, agora o tempo é outro. Nos dezesseis
anos em que fui vice-prefeito do Recife, como não podia ir às ruas como simples
folião, livre de segurança e cerimonial, ficava o prefeito na fuzarca e eu me
retirava para a praia. Na volta, ele se afastava para uns dias de descanso e eu
tocava o governo.
Mas o uso do cachimbo terminou entortando o
lábio, como se diz. Desde que retornei à condição de cidadão comum, preferi a
praia ou uma viagem de lazer pelo interior.
Todo ano a coisa se repete. Sem nenhum
sentimento de culpa: prazer por prazer, tanto faz a praia como as ladeiras de
Olinda. Depende da vontade, livre de qualquer obrigação político-partidária.
E viva o povo brasileiro! Evoé!
*Publicado no Portal Grabois com o título "Carnaval: rebeldia, prazer e inspiração de grandes escritores"
[Ilustração: Bajado]
Leia: Os clarins de Momo se aproximam https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_24.html
Um comentário:
Excelente o descrição dos vários aspectos do nosso Carnaval, com seu olhar de humanista generoso. bjs
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