22 fevereiro 2025

Minha coluna no Portal Grabois (4)

Carnaval: rebeldia e prazer*
Luciano Siqueira 

Tudo se relaciona, aprendemos com a visão materialista dialética do mundo. Daí o cruzamento entre folguedos populares e luta política; alegria imediata e tradição.

E também a implacável reprodução do capital. Acontece com o carnaval, cá onde vivo, luto e me divirto e alhures.

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima um faturamento de R$ 12,03 bilhões este ano.

Entre os segmentos mais beneficiados, bares e restaurantes, com projeção de faturar R$ 5,4 bilhões, seguidos pelo “transporte de passageiros” (R$ 3,31 bilhões) e “hospedagem” (R$ 1,28 bilhão). Juntos, esses segmentos responderão por 83% da receita gerada pelo turismo durante a folia.

Aguarda-se a presença 868,4 mil visitantes vindos de fora do país, superando o recorde de 2018 e maior do que o registrado em 2024, quando recebemos 833,3 mil turistas – ainda segundo a CNC.

Pela ordem, as cidades de maior afluência de turistas este ano devem ser Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife.

Mais: a oportunidade de 32,6 mil empregos temporários no conjunto do país, sem contar com o imenso contingente de trabalhadores informais.

Cá em Pernambuco, a expectativa é de que o Carnaval de 2025 injete R$ 348,71 milhões na economia do estado, aumento de 1,4% em relação a 2024.

Alegria é o que importa

Tirante os aspectos econômicos, o carnaval é sobretudo um instante de alegria e de extravasamento do sonho e dos ideais humanos. Como se tem registrado, ao longo do tempo, na literatura brasileira.

Autores os mais diversos mencionam o carnaval em suas obras ou mesmo o tratam como tema central. Sempre um misto de expressão libertária bem humorada e até transgressão.

Na obra do baiano Jorge Amado, presença marcante, a partir do seu primeiro romance, ‘O País do Carnaval’, escrito em 1931. Mas igualmente no conjunto da sua criação, sob diversos aspectos e intensidade.

Machado de Assis nos brindou com saborosos contos e crônicas sobre o tema, como “Ano sem carnaval”: "Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, e várias graças que foram concedidas por outras, não sei melhores se se se piores...”.

Na verdade, dos primórdios do século 20 e aos dias que correm, tema sempre recorrente e rico, como expressão do modo de ser, lutra e amar de nossa gente.

Que seriamos sem o carnaval? O próprio Machado responde: “Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.” (Folha de S. Paulo, 12/fev/2010).

No artigo “A Literatura Brasileira e a Arte do Carnaval” (Terceira Margem, UFFR), Fred Góes cita Olavo Bilac: “O Carnavalesco legítimo não tem cansaço nem aposentadoria: envelhece carnavalesco, e morre carnavalesco; morre no seu posto, extenuado pelo Carnaval, entisicado pelo Carnaval, devorado pelo Carnaval. O Carnaval é para ele, ao mesmo tempo, uma paixão absorvente e arruinadora, um vício indomável, uma religião fanática. Para ele, o Carnaval é o único oásis fresco e perfumado, que se antolha no adusto deserto da vida!”

Também Lima Barreto (“...é a maior expressão da alma brasileira, uma explosão de alegria, sensualidade e liberdade”) e Oswald de Andrade (...é a revolução das formas, a explosão da alegria, a liberdade sem programa”) abordaram o tema.

Os mestres de nossa crônica moderna, idem. Para Rubem Braga, “o único momento em que o brasileiro se sente completamente livre para ser o que não é”. Fernando Sabino o percebia como “uma explosão de alegria, um momento em que o brasileiro se esquece de suas tristezas e se entrega à festa”. Já Luis Fernando Veríssimo o considera “a única época em que o brasileiro não se sente culpado por estar feliz.”

Expressão de rebeldia

Modestíssimo escrevinhador, em algumas oportunidades registrei na minha coluna semanal no Portal Vermelho www.vermelho.org.br , traços a um só tempo lúdicos e guerreiros do carnaval pernambucano. 

A própria expressão frevo, derivada de "frever" (a massa popular, ainda oficialmente proibida de participar do festejo, fim do século 19, início do século 20, “frevendo” nas ruas e enfrentando corajosamente a repressão policial. 

A sombrinha do frevo, símbolo do carnaval pernambucano, derivada do guarda-chuva tradicional cuja haste metálica servia como arma para capoeiristas à frente do cortejo darem conta da resistência à polícia. 

A denominação de dezenas de agremiações carnavalescas associada às categorias profissionais às quais pertenciam seus fundadores, várias relacionadas com as caixas beneficentes que antecederam os sindicatos: Clube das Pás Douradas, Vassourinhas e tantos outros.

A polêmica contra a suposta injustiça de uma eventual comissão julgadora contida na obra prima do compositor Capiba, no frevo de bloco da agremiação Madeira do Rosarinho, "Madeira que cupim não rói": “E se aqui estamos, cantando esta canção/Viemos defender a nossa tradição/E dizer bem alto que a injustiça dói/Nós somos madeira de lei que cupim não rói."

E a própria experiência militante no final dos anos 70, em plena ditadura militar quando no Recife e em Olinda blocos recém-criados expressavam a luta pela liberdade.

Vários improvisados e momentâneos. Outros, como o "Grêmio Lítero Recreativo Cultural Misto Carnavalesco Eu Acho é pouco”, com seu estandarte vermelho-amarelo, que há precisos 29 anos arrasta multidões pelas ladeiras de Olinda.

Aliás, a cor vermelha sempre marcante nos estandartes e nos adereços e fantasias de blocos e foliões. Como assinala o poeta Carlos Pena Filho no "Soneto principalmente do carnaval”: "De pirata da Espanha disfarçado/adormeci panteras e medusas./Mas, quando me lembrei das andaluzas,/pulei do azul, sentei-me no encarnado."

Dever militante? Nem tanto

Como anotei anos atrás na minha citada coluna no portal Vermelho, carnaval é antes de tudo prazer. Dever apenas para os que, por ofício ou necessidade, atravessam os dias de Momo envoltos em obrigações profissionais.

Óbvio? Nem tanto. Eu mesmo já brinquei o carnaval muitos anos. Desde criança, quando meu pai ornamentava um caminhão e enchia de amigos e vizinhos para o corso, em Natal, em meados dos anos 50.

Ocorre que a militância política já em Pernambuco, que em 1982 me proporcionou a primeira eleição para deputado estadual, introduziu (para meu desgosto) uma tentativa, da parte de companheiros de Partido, de me transformar em folião” por dever”. Ou seja: ao invés de por um tênis, uma bermuda e uma camiseta e saí por aí atrás de blocos pelas ladeiras de Olinda e ruas do Recife, e o que mais desse na telha, a obrigação de cumprir um roteiro tido como “politicamente necessário”:

– Você tem que ir à prévia do “Lili nem sempre toca flauta”, pra começo de conversa.

– Veja lá, não deixe de ir à inauguração da barraca do “Sai na Marra”, nem ao desfile do domingo!

- Já anotou o horário da “Pitombeira dos Quatros Cantos”? E do “Elefante”?

Ora, quem luta por toda a vida e põe sempre os interesses do povo em primeiro lugar, tem todo o direito de se orientar pela máxima “o dever é público, o lazer é privado”.

Mais: se possível, em se tratando de festa, nunca misturar dever com lazer. Até porque ninguém jamais ganhou ou perdeu eleição por ter comparecido, ou não, a esta ou àquela agremiação carnavalesca.

Como o Estatuto partidário não estabelece como dever militante fazer política eleitoral no carnaval, jamais me curvei às pressões. E fui trilhando minha trajetória de folião discreto, porém assíduo.

Foi assim que numa radiosa manhã de domingo, mal pude me levantar da cama, tamanha a dor que sentia no cóccix. Havia me esparramado no chão ao cair de uma mesa de bar, onde fazia inimagináveis (para um cara tímido como eu) evoluções com o estandarte do bloco “Sai na Marra”. Muita cachaça na cuca...

E hoje? Bom, agora o tempo é outro. Nos dezesseis anos em que fui vice-prefeito do Recife, como não podia ir às ruas como simples folião, livre de segurança e cerimonial, ficava o prefeito na fuzarca e eu me retirava para a praia. Na volta, ele se afastava para uns dias de descanso e eu tocava o governo.

Mas o uso do cachimbo terminou entortando o lábio, como se diz. Desde que retornei à condição de cidadão comum, preferi a praia ou uma viagem de lazer pelo interior.

Todo ano a coisa se repete. Sem nenhum sentimento de culpa: prazer por prazer, tanto faz a praia como as ladeiras de Olinda. Depende da vontade, livre de qualquer obrigação político-partidária.

E viva o povo brasileiro! Evoé!

*Publicado no Portal Grabois com o título "Carnaval: rebeldia, prazer e inspiração de grandes escritores"

[Ilustração: Bajado]

Leia: Os clarins de Momo se aproximam https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_24.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente o descrição dos vários aspectos do nosso Carnaval, com seu olhar de humanista generoso. bjs