11 julho 2024

TCU e o Estado disfucional

SUPERBALCÃO DO TCU ENTREGA AO GOVERNO LULA ACORDOS BILIONÁRIOS
Secretaria criada pelo presidente do tribunal, Bruno Dantas, vem intermediando benefícios a empresas em dívida com a União
Breno Pires/Piauí  

No palco, Carlinhos Brown e seu grupo entraram tocando a versão modernizada da música de abertura do noticiário oficial A Voz do Brasil. Em ritmo acelerado, os atabaques, agogôs e guitarras tocavam o tãããã, TÃÃÃÃ, tã-tã-tã, TÃÃÃÃ, tã-tã-tã, que o país ouve há décadas no rádio. No resort do litoral paulista, em evento promovido pela Esfera Brasil, o grupo de lobby mais influente da atualidade, a plateia se dividia entre os que prestavam atenção na apresentação do artista baiano e os que conversavam entre si. Na diagonal oposta ao palco, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, batia papo com seu sogro João Camargo, fundador da Esfera e também presidente da CNN Brasil, e o banqueiro André Esteves, do BTG Pactual. Na mesma mesa, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, conversava com Rubens Menin, fundador da construtora MRV e da CNN local.

O evento estava próximo do fim. Wesley Batista, dono da JBS e grande parceiro da Esfera, já tinha partido, assim como Rubens Ometto, proprietário da Cosan e maior doador de campanhas nas eleições de 2022. Quatro ministros – Renan Filho, dos Transportes, Alexandre Silveira, de Minas e Energia, Ricardo Lewandowski, da Justiça, e Miriam Belchior, a ministra em exercício da Casa Civil – também já tinham deixado o local, a exemplo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Depois de dois dias de debates públicos e conversas ao pé do ouvido, havia uma atmosfera de dever cumprido. Era sábado, 8 de junho de 2024. Hotel Jequitimar Resort & SPA, no Guarujá, 15 horas.

O encontro – a 1 mil km de Brasília – era mais uma extensão festiva do congraçamento entre o poder público e o PIB, mas reunia algumas das figuras centrais de um fenômeno muito peculiar e pouco visível: a onda de renegociações de contratos e concessões que vem sendo promovida pelo TCU, sob as diretrizes do governo Lula. São repactuações nos setores de aeroportos, rodovias, ferrovias, telefonia e energia. O palco onde essas negociações acontecem é uma nova unidade do tribunal, criada em dezembro de 2022 por iniciativa de Bruno Dantas. A secretaria – cujo nome oficial é Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) – fica no quarto andar do Anexo 3 do TCU, mas as reuniões acontecem no Instituto Serzedello Corrêa, uma espécie de universidade do tribunal. Al i, representantes de empresários, governo e agências reguladoras discutem, alteram e selam acordos bilionários sob as bênçãos do TCU.

Na SecexConsenso, a Oi, gigante claudicante da telefonia que está em sua segunda recuperação judicial, negocia um acordo, já em fase adiantada, para encerrar parte de suas disputas com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), um litígio de dezenas de bilhões de reais. A Rumo, a empresa de Rubens Ometto que detém a concessão de mais de 2 mil km da ferrovia Malha Paulista da Rede Ferroviária Federal, também conseguiu um acordo para evitar que o descumprimento de suas obrigações de investimento resultasse na cassação da concessão.

Na área de energia, as coisas estão bem azeitadas. Como a maioria dos contratos para fornecimento de energia de reserva, assinados em 2021 num contexto de risco de crise hídrica, acabou não sendo cumprida dentro do prazo, abriu-se a negociação. Dois grupos empresariais já fecharam acordo: o Karpowership, da Turquia, e o BTG Pactual, maior banco de investimento do Brasil. Um terceiro grupo prestes a fechar sua renegociação é a J&F, holding dos irmãos Joesley e Wesley Batista, cuja empresa Âmbar Energia, além do prazo, descumpriu outras cláusulas essenciais do acordo. Os contratos dos três grupos – do turco, do BTG de Esteves e dos irmãos Batista – somam mais de 34 bilhões de reais.

As soluções consensuais podem ser uma boa alternativa para resolver entraves em contratos públicos – poupam tempo, eliminam etapas burocráticas e otimizam o uso do dinheiro público, além de evitar intermináveis brigas na Justiça. Nos últimos quatro meses, a piauí investigou o assunto. E as complicações começam com a própria existência da SecexConsenso, criada para fazer mediação em um tribunal cuja função é a fiscalização. São funções aparentemente conflitantes. Afinal, o órgão que fiscaliza, aplica multa, zela pelos cofres públicos e pela boa política da administração pública talvez não deva servir simultaneamente como a mão amiga a unir interesses públicos e privados.

“Não tem nenhuma norma legal ou constitucional que preveja essa função para o Tribunal de Contas”, afirma o professor André Rosilho, da Fundação Getulio Vargas (FGV), que lidera talvez o único grupo de pesquisa no país sobre o TCU. “Essa função foi autoatribuída por meio de uma instrução normativa que o próprio tribunal editou.” O pesquisador prossegue: “O pulo do gato é que o tribunal funciona não só como mediador, mas como um avalizador da solução construída por consenso, entre aspas.” Por que entre aspas? “Tenho dúvidas se dá para falar em ‘consenso’ no Tribunal de Contas da União, porque as partes têm interesse em que o acordo saia, mas estão dentro de um órgão de controle com poder impositivo e sancionatório sobre ambos, o pú ;blico e o privado”, diz.

Entre os próprios auditores do TCU, há críticas veladas quanto à atuação do tribunal em negociações consensuais. O tribunal, dizem eles, incorre no risco de inadvertidamente assumir o papel do Poder Executivo, em aparente afronta ao princípio de que “quem controla não executa e quem executa não controla”. A expansão de poderes ameaça a fiscalização, a eficácia do controle externo e cria um terreno fértil para conflitos. Diz um auditor, que pediu para não ser identificado com receio de represálias internas: “O TCU deveria manter-se afastado da gestão executiva pública para garantir que a fiscalização de atos administrativos seja realizada de forma imparcial e efetiva.”

No mês passado, o tribunal promoveu um evento sobre o assunto, destinado a reforçar a prática, mas a professora Juliana Palma, da FGV Direito SP, estragou a festa. “Na esfera civil, costumamos falar que o consenso é um jogo de ‘ganha-ganha’. Eu ganho, você ganha, nós estamos felizes porque ganhamos os dois”, disse ela, para arrematar em seguida: “Mas, na esfera administrativa, meus caros, se eu ganho e você ganha, eu dou outro nome a isso. Eu acho que é um baita de um conluio, certo? Pelo menos.” Procurado pela piauí para comentar o que a professora Palma chamou de “conluio”, entre outros aspectos, Bruno Dantas, criador da SecexConsenso, não quis dar entrevista.

A primeira autoridade pública a criticar a entrada do TCU na área do consenso foi o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). “Onde está escrito que o TCU virou órgão conciliador?”, disse, em conversa com jornalistas, em novembro passado. Lira tocou em um nervo exposto, ainda que seu interesse não fosse propriamente uma preocupação republicana com a saúde das instituições nacionais. O deputado estava irritado porque queria que a renovação de concessões de distribuidoras de energia fosse discutida na Câmara, e não no TCU. Sua irritação aumentou quando soube que o TCU também faria a conciliação na área de rodovias. E o Ministério dos Transportes, que cuida do assunto, é ocupado por Renan Filho, primogênito do senador Renan Calheiros (MDB-AL), arquirrival de Lira.

O outro aspecto delicado é que as renegociações, todas elas patrocinadas pelo governo, estão fazendo bem mais do que simplesmente reajustar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Há acordos em negociação que reabilitam concessionárias que haviam desistido do negócio – como é o caso das concessionárias dos aeroportos de Viracopos, em Campinas, e do Galeão, no Rio de Janeiro. Há acordos com empresas que descumpriram obrigações contratuais, acumularam dívidas com a União e seguem inadimplentes, como a ViaBahia, a concessionária de duas rodovias que já deu tanto problema que o então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, definiu-a como “a pior do Brasil”.

Por fim, há acordos em que o governo renova vínculos com empresas envolvidas em corrupção, inclusive no âmbito da Operação Lava Jato, como a CCR, que enfrentou acusações de corrupção, suborno e doações ilegais de campanha, e hoje controla as concessionárias de trechos da rodovia BR-163, em Mato Grosso do Sul. Outra é a ECO101, que pertence à EcoRodovias e foi flagrada em esquemas de corrupção que envolviam justamente a concessão de rodovias. Superfaturava os pedágios usando orçamentos falsos, segundo as investigações policiais. O mesmo acontece em outros setores, como o aeroportuário. A concessionária de Viracopos, que não paga suas outorgas desde 2016, é formada por três empresas, e duas delas, a Triunfo e a UTC, também enfrentaram acusações de corrupção envolvendo concessões rodoviárias e aeroportuárias.

Ninguém defende que essas empresas, depois de responderem pelos erros que cometeram, tenham de ser banidas do mundo dos negócios. A maioria delas fez acordos de leniência e pagou multas, regularizando sua situação e habilitando-se a negociar com o governo. No entanto, o tratamento camarada que recebem em contratos públicos no âmbito dos “acordos de consenso” reacende o receio de escândalos de corrupção, sobretudo num cenário em que a Lava Jato acabou sendo enterrada com ajuda do Congresso e do Supremo.

Em parceria com o TCU, o governo Lula tem papel fundamental no assunto, já que os pedidos de solução consensual são numerosos na Esplanada dos Ministérios e são, todos eles, supervisionados pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, auxiliado pela secretária executiva Miriam Belchior. Renan Filho está revendo concessões de ferrovias e rodovias. Silvio Costa Filho, ministro de Portos e Aeroportos, negocia ajustar e prorrogar concessões de Guarulhos, Viracopos e Galeão. Juscelino Filho, das Comunicações, torce para assinar seu primeiro acordo – sobre a Oi –, antes que seu indiciamento por corrupção e desvio de dinheiro do orçamento secreto no Maranhão lhe derrube do cargo. Alexandre Silveira, de Minas e Energia, saltou à frente e já pôde comemorar acordos na sua área. 

Obalcão em que se transformou o TCU é uma distorção de uma boa ideia que começou a nascer em 2022. Lula, então em campanha presidencial, preocupado com as inúmeras concessões que estavam paradas, atoladas em conflitos e burocracia, queria encontrar um meio de intensificar os investimentos em obras públicas. Um mês antes do primeiro turno, Miriam Belchior, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, foi clara quanto à necessidade de revisar as concessões. “Se for vantajoso, vamos repactuar. Se não for, vamos relicitar, não tem jeito. Só dá para saber analisando cada contrato”, disse ela, que virou a coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Infraestrutura na transição de governo.

Com Lula eleito, durante a transição, várias concessionárias já haviam solicitado uma das alternativas sugeridas por Belchior: a relicitação, novidade que fora regulamentada por um decreto de Jair Bolsonaro, de 2019. Aos poucos, o novo governo foi ficando mais interessado em repactuações do que em relicitações. É uma forma mais rápida de viabilizar os investimentos, tão importantes naquele cenário de restrição orçamentária de início de mandato. Em dezembro de 2022, ainda antes da posse de Lula, Belchior voltou ao assunto: “O tema da infraestrutura está no topo da agenda de prioridades do presidente Lula. […] Está atrás apenas do combate à fome, que infelizmente voltou a se abater no nosso país.”

De fato, a relicitação tinha desvantagens. Além de demorar mais tempo, o governo precisa indenizar o concessionário que está saindo. Embora possa esbarrar em dificuldades legais, a repactuação, ao contrário da relicitação, otimiza contratos, antecipa investimentos, melhora a prestação de serviços, soluciona litígios. Apesar das vantagens, a repactuação acionava a memória das malsucedidas concessões feitas pelos governos do PT, como demonstram os casos dos aeroportos Galeão e Viracopos e de algumas rodovias. Era preciso encontrar uma saída que mitigasse essa dificuldade.

E então apareceu Bruno Dantas, o presidente do TCU. 

Nascido em Salvador e criado em Feira de Santana, Bruno Dantas, 46 anos, formou-se em direito no Distrito Federal e tornou-se consultor legislativo concursado no Senado em 2003. Abriu seu espaço ao lado do grupo político do MDB no Senado, que orbitava em torno de nomes como José Sarney, Renan Calheiros e Eunício Oliveira. Em 2009, foi nomeado para o Conselho Nacional do Ministério Público. Em 2011, para o Conselho Nacional de Justiça. Em 2014, indicado pelo grupo do MDB à presidente Dilma Rousseff, chegou ao TCU. Ali, tornou-se um personagem típico dos bastidores de Brasília: o superburocrata poderoso que, fora dos círculos de poder, ninguém conhece.

Em fevereiro, casou-se com Camila Funaro Camargo, filha de João Camargo, o dono da Esfera Brasil, o grupo que promoveu o repasto no litoral paulista. A festa de casamento aconteceu no Clube Hípico de Santo Amaro e reuniu a maior densidade demográfica de PIB e togas do país. “Foi uma festa como há tempos não se via em São Paulo”, escreveu a colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo. A comemoração reuniu doze ministros do governo Lula (incluindo o vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é ministro) e uma elite de empresários, muitos deles associados à Esfera e, por acaso, com interesses em matérias em curso no TCU. A quem perguntasse sobre a coincidência, Dantas tinha a resposta na ponta da língua: eram os convidados do pai da noiva.

No fim de novembro de 2022, Dantas ofereceu um jantar em sua casa. Entre os convidados, estavam Lula, já eleito presidente, e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Com método e tato, Dantas foi ganhando a confiança de Lula. Não esqueceu que o presidente eleito era um crítico da atuação do TCU, sobretudo depois que, em 2009, o tribunal suspendeu obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) por suspeitas de irregularidades – algumas das quais, descobriu-se mais tarde, estavam de fato atoladas em corrupção, como as refinarias Abreu e Lima e Presidente Getúlio Vargas.

Lula alegava que o TCU paralisava obras sem justificativas plausíveis. Dizia que nem sempre se podia confiar nas avaliações do tribunal e apontava casos em que uma obra era embargada para, quatro meses depois, ser liberada por falta de provas de ilícitos. “Os entraves são demais”, afirmou Lula, naquele ano de 2009. “Se parte do pressuposto que todo mundo é desonesto até que se prove o contrário.” Por tudo isso, havia muito tempo Lula defendia uma revisão do ponto de vista administrativo sobre o trabalho de fiscalização do tribunal.

Com Dantas, a oportunidade chegou. Ainda no período de transição do governo, ele levou ao Grupo de Trabalho sobre Infraestrutura um relatório do TCU falando, entre outros pontos, das inúmeras obras paradas – e apresentou a ideia da criação de um órgão mediador dentro do próprio tribunal. A ideia foi bem recebida. Já no dia 22 de dezembro, Dantas baixou uma instrução normativa criando a SecexConsenso, que foi aprovada pelo plenário. Num evento sobre infraestrutura, realizado em Brasília naquele mesmo mês, explicou sua intenção. “O que vimos nos últimos tempos foi o crescimento da necessidade de um fórum institucional para discutir com abertura, com franqueza, com sinceridade as soluções do ponto de vista negocial. Isso, de certa forma, é fruto dos anos pesados que tivemos aí de Lava Jato, em que se crimina lizou a conversa.” Também disse que a unidade seria vinculada à presidência do tribunal.

Criada a SecexConsenso, o governo suspendeu os primeiros processos de relicitação e despachou pedidos de renegociação para a nova unidade do TCU. Segundo Rui Costa, da Casa Civil, as concessionárias estavam querendo renegociar em razão da “virada de página” ocorrida com a posse do governo Lula, empenhado em retomar os investimentos. Em paralelo, Dantas mergulhou numa missão dupla: estruturar a nova secretaria, atraindo para si a discussão sobre projetos bilionários de infraestrutura, e, ao mesmo tempo, acumular capital político para correr atrás do sonho de ser ministro do STF. (Seu nome foi cotado para ocupar a vaga da ex-ministra Rosa Weber, aberta em setembro do ano passado, mas Lula acabou escolhendo Flávio Dino.) Dantas entregou a direção da secretaria para Nicola Khoury, engenheiro, advogado e auditor do TCU.

Em sua missão, Dantas foi bater nas portas da Esplanada dos Ministérios, apresentando sua criação e tentando atrair casos para mediação. “Ele fez um roadshow, demonstrando as vantagens do modelo, e foi aos ministérios ou mandou representantes”, relembra um ministro que pediu para não ser identificado. Nicola Khoury fez o mesmo nas agências reguladoras, informando sobre a secretaria e oferecendo sua mediação. Deu certo. “Quando idealizamos a secretaria, imaginávamos que ela começaria devagar para ir se estabelecendo, e com o tempo os governos iriam percebendo que essa é uma boa ferramenta”, disse Dantas, em uma entrevista ao SBT, e completou com ar de satisfação: “O que aconteceu foi que essa secretaria virou uma coqueluche, e todos os ministros do governo têm demandas para essa nova secretaria.”

Com apenas um ano e meio de criação, a coqueluche já recebeu 28 solicitações de solução consensual. Cinco já foram aprovadas, três terminaram sem acordo e quatro não foram aceitas por não preencherem os requisitos mínimos. Restam dezesseis pedidos na mesa. É um balcão, com muitos bilhões de reais em jogo. No início deste ano, o jornal Valor Econômico publicou uma entrevista com Bruno Dantas cujo título informava: TCU prevê análise de casos que somam R$ 220 bi neste ano. No corpo da entrevista, Dantas comparou: “Em volume de recursos, essas otimizações contratuais envolvem até mais do que está no PAC para novas concessões.” Mais que isso: supera o orçamento de quase todos os ministérios, incluindo pastas fundamentais como Educação.

Em um dos grandes casos que analisou, a SecexConsenso mostrou-se eficaz. Deu-se o seguinte. Em 2020, a Rumo, concessionária da Malha Paulista, recebeu um presente de pai para filho do governo Bolsonaro. Tarcísio de Freitas, então ministro, fez a renovação antecipada da concessão da Rumo, com aprovação unânime do TCU. A Rumo, no entanto, não demorou a descumprir os prazos de investimento. Assim, com a troca de governo, começou-se uma tentativa de reparar o prejuízo. Na SecexConsenso, chegou-se a um acordo segundo o qual a Rumo terá de pagar quase 1,2 bilhão de reais pela renovação da concessão e poderá adiar parte de seus investimentos para 2028. O plenário do tribunal aprovou o acordo, por 7 votos contra 2, sob protestos do ministro Augusto Nardes. “Qual a credibilidade que passa o tribunal para ter investimentos nesse país se muda o acor do e se privilegia uma empresa em detrimento da sociedade?” Embora positivo para os cofres públicos, o acordo demonstra como o TCU pode ser servil ao governo da hora. Em 2020, a área técnica foi contra a renovação automática da concessão, mas o tribunal aprovou-a, atendendo ao governo Bolsonaro. Agora, adotou posição contrária à de quatro anos atrás, atendendo ao governo Lula.

Por insistência dos ministros Nardes e Jorge Oliveira, ficou claro que os termos do acordo, ainda que vantajosos para o erário, não deveriam ser automaticamente aplicados a outras negociações pelo governo. O ministro Renan Filho, no entanto, encontrou um jeitinho para contornar o assunto. Com base nos apontamentos do TCU sobre o caso da Rumo, baixou novas normas internas para amparar as “otimizações” com outras concessionárias de ferrovias, como a Vale e a MRS Logística. Sob o argumento de que a renovação das concessões em 2020 desvalorizara os ativos públicos, conseguiu fechar um acordo em fevereiro passado segundo o qual a MRS  pagará 2,6 bilhões de reais aos cofres públicos. Agora, o ministro espera obter 20 bilhões de reais da Vale, sob o mesmo argumento. “Em todos os acordos, esperamos levantar até 30 bilhões de reais&rdquo ;, disse o ministro à piauí, durante o evento da Esfera, no Guarujá. “Esses recursos serão usados no nosso Plano Nacional de Ferrovias.”

Acontece que a SecexConsenso não demorou a mudar seu conceito de “consenso”. 

Em 2021, o então ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque, temendo que a crise hídrica afetasse o fornecimento de energia, fez um leilão emergencial para comprar energia de reserva. As empresas que vencessem o leilão deveriam operar com usinas termelétricas que não faziam parte do sistema nacional. Ou seja: tinham que construir as usinas do zero. Era uma forma de ampliar o quadro energético do país. O prazo era apertado: o leilão aconteceu em outubro de 2021 e as empresas teriam que começar a gerar energia em maio do ano seguinte. Havia uma tolerância para atrasos até agosto. Mais do que isso, o contrato seria rescindido. A Karpowership levou um naco. O BTG levou outro.

A Âmbar Energia fez um caminho diferente. Comprou por 344 milhões de reais o direito de gerar energia de outra empresa, a Evolution Power Partners (EPP), que ganhara um contrato de 17 bilhões de reais no leilão com o compromisso de construir quatro usinas térmicas. Ao comprar o direito da EPP, a Âmbar, em vez de construir as termelétricas como constava no contrato, resolveu arrendá-las de uma terceira empresa. Mesmo assim, não conseguiu entrar em operação a tempo. Passou a ser multada, não pagou e, em agosto, no fim do prazo máximo, sua credencial para operar foi cassada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Começou então a clássica sequência de pedidos, ofícios, recursos para lá e para cá, mas os irmãos Batista nunca levaram o caso à Justiça. Queriam resolver tudo pelas vias ad ministrativas.

A janela se abriu com a chegada do governo Lula, quando Alexandre Silveira assumiu a pasta de Minas e Energia e nomeou Efrain Cruz como seu secretário executivo. (Cruz havia sido diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica e, no exercício do cargo, tomara uma decisão polêmica favorável à Âmbar, que acabou sendo revista no colegiado da Aneel.) O ministro e o secretário resolveram mandar todos os casos envolvendo o leilão emergencial para a SecexConsenso, atropelando a Aneel, que estava demorando para concluir sua análise dos contratos. A decisão gerou protestos das entidades que representam consumidores de energia. “A Aneel não está cumprindo o seu papel de órgão regulador, e o TCU, indevidamente, entrou nessa discussão, fechando acordos que são desvantajosos para os consumidores de energia”, afirmou Luiz Eduardo Barata, presidente da Fre nte Nacional dos Consumidores de Energia.

Os casos da Karpowership e do BTG foram julgados e aprovados em 2023, mas o da Âmbar, mais complexo, ficou para depois. Dois auditores – o da unidade especializada em energia e o da própria SecexConsenso – foram contra o acordo com a Âmbar. O principal motivo: os testes não conseguiram comprovar que as usinas da Âmbar estavam prontas para operar. Os auditores, que constataram a “insuficiência” do esforço da empresa, propuseram então o arquivamento. O representante do Ministério Público no TCU, em seu parecer, disse que o resultado do teste fora “um evidente fracasso”.

Portanto, como não havia consenso, o acordo não poderia ser feito, segundo as regras criadas pelo próprio TCU. Começou então a mágica. O secretário da SecexConsenso, Nicola Khoury, mudou o conceito de consenso. Entendeu que um acordo não dependia da concordância dos auditores. O novo entendimento foi rapidamente introduzido na instrução normativa que criou a secretaria, deixando claro que a opinião dos auditores era apenas isso: uma opinião. E os processos na SecexConsenso deixaram de exigir consenso para seguir em frente.

O casuísmo orwelliano era tão evidente que o relator Benjamin Zymler, embora quisesse aprovar o acordo com a Âmbar, ficou constrangido de fazê-lo. Alegou que a mudança da instrução normativa, segundo a qual consenso agora era outra coisa, só valeria para casos futuros, mas não para aquele, que já estava em curso quando a alteração foi feita. Além disso, o TCU estava acuado pelo deputado Arthur Lira que, com a cartucheira habitualmente carregada, ameaçava abrir uma CPI sobre o caso. Zymler chamou a atenção para o “risco moral” – conceito que, na economia, refere-se ao risco de devedores obterem vantagens em relação a bons pagadores – e equilibrou-se numa solução salomônica. Votou pelo arquivamento, mas disse que tinha “simpatia” pelo acordo.

Era a senha para mostrar que o entendimento com a Âmbar, sabe-se lá por que razão, tinha que ser feito a qualquer custo – mesmo que um segundo teste nas usinas da empresa, realizado pela Aneel, tivesse dado errado. As usinas tinham que fornecer energia por 96 horas ininterruptas, com mínima variação de potência, mas não aguentaram o tranco. Durante o teste, a potência variou mais que o permitido. Em seu relatório, a Aneel não disse com todas as letras que a Âmbar não passara no teste. Antes de votar pelo arquivamento, o ministro Zymler ainda tentou uma saída para selar o acordo e consultou a Aneel para ouvir, quem sabe, que a empresa fora aprovada.

A resposta é uma pérola do burocratês malandro que facilitou a vida da Âmbar e provocou a “simpatia” oficial. Segundo a Aneel, as usinas passaram no teste, sim, mas mediante “flexibilizações” da norma, aprovada pela diretoria colegiada da agência. Ou seja: como o aluno não respondeu a pergunta corretamente, mudou-se um pouquinho a pergunta. Com isso, os ministros do TCU formaram uma súbita convicção de que a Âmbar usaria o parecer da Aneel para recorrer à Justiça. Era melhor selar então um acordo do que abrir uma briga judicial. Claro que a Âmbar tinha poucas chances de obter uma vitória na Justiça, mas agora pelo menos contava com um pedaço de papel no qual poderia apoiar sua causa. Foi o que bastou para o TCU dizer que o acordo era a melhor saída.

“Se você me perguntar se eu tenho uma simpatia por essa proposta, sim, eu tenho uma simpatia por essa proposta”, disse Zymler, durante o julgamento. Os demais ministros também votaram pelo arquivamento e também fizeram questão de elogiar os termos do acordo. O ministro Antonio Anastasia, ex-senador por Minas Gerais, ao expressar sua “adesão à simpatia”, disse: “Lembrando também aquela frase muito comum em meu estado: mais vale o mau acordo do que a boa demanda”. (A exceção foi o voto do ministro Walton Alencar Rodrigues, que viu “problemas insuperáveis quanto ao mérito” do contrato.)

Assim, o caso da Âmbar acabou indo mesmo para o arquivo, mas logo ficou claro o significado da simpatia geral: apesar do arquivamento, os ministros do TCU resolveram dizer ao governo que nada o impedia de seguir em frente com aquele acordo, mesmo sem o aval formal do tribunal. Criou-se então a esdrúxula situação em que um tribunal de fiscalização arquiva um acordo, mas sugere que uma das partes celebre esse mesmo acordo. “Realmente, todo esse processo é surpreendente”, espantou-
se Barata, da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, em entrevista à piauí. “E, além de surpreendente, é altamente lesivo aos consumidores brasileiros de energia.” Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais e de Consumidores Livres, observou: “É oportuno refletir se os consumidores, que pagam a conta final e são a parte mais interessada nos processos, não deveriam ter voz ativa na construção dos consensos.” E acrescentou: “Também é oportuno refletir se o TCU não deveria ser deslocado desses consensos, ficando como a instância que os fiscalizaria.”

Com a sugestão do TCU de que o governo poderia ir em frente com o acordo, o ministro Alexandre Silveira não perdeu tempo. Notificado da decisão do tribunal, fechou o arranjo com a Âmbar sem aguardar manifestação prévia da Aneel, responsável por analisar as medidas tomadas diante de descumprimento de contratos. A notificação chegou no dia 15 de abril ao Ministério de Minas e Energia. Dois dias depois, às 17h36, o texto do acordo chegou à Consultoria Jurídica da Advocacia-Geral da União e, 56 minutos mais tarde, estava aprovado pelo consultor José Affonso de Albuquerque Netto. Na manhã do dia seguinte, o ministro assinou o despacho. Um mês depois, a Aneel carimbou o acordo. O ministério e a agência, então, enviaram a papelada ao TCU. Se o tribunal concordar, ou simplesmente não se manifestar, o acordo entra em vigor no dia 22 de julho .

Pelo acordo, em vez de operar as quatro termelétricas, a Âmbar poderá optar por uma antiga usina em Cuiabá – o que, por ironia, era a solução que Efrain Cruz, então secretário de Minas e Energia, havia proposto tempos antes e que acabara sendo rejeitada pelo colegiado da Aneel. Além disso, a Âmbar receberá multa de 1,1 bilhão por atraso, seu contrato será ampliado de 44 para 88 meses e o valor será reduzido de 18,7 para 9,4 bilhões de reais, porque a empresa deixará de ser obrigada a gerar energia ininterruptamente, passando a fazê-lo apenas sob demanda.

Em nota à piauí, a Âmbar defendeu a lisura do acordo e afirmou: “As vantagens de um acordo são tão significativas que o próprio TCU recomendou, em plenário, que as partes buscassem o consenso direto para evitar a judicialização”. No fim, tudo saiu bem para a empresa: descumpriu o contrato, pagou multas de menos de 6% sobre o valor do contrato, não ergueu nenhuma usina termelétrica e garantiu uma bolada de 9,4 bilhões de reais – e, o melhor: com a garantia de que nenhum tribunal de contas vai complicar sua vida.

(Por “mera coincidência”, nas palavras do ministro Alexandre Silveira, a Âmbar ganhou outro presentaço do governo. No início de junho, dois dias depois que a Âmbar aceitou pagar 4,7 bilhões de reais por treze usinas termelétricas no Amazonas, negócio considerado um mico pelo mercado, o governo editou uma medida provisória que mudou tudo. A MP flexibilizou certas regras e transferiu alguns custos para a conta de luz dos consumidores – e assim, numa canetada, o negócio que era um mico transformou-se num prêmio.) 

Amecânica da SecexConsenso, embora já tenha sido alterada na largada, é simples e pode ser resumida assim: todo o poder ao presidente do TCU.

Só o governo ou uma agência reguladora têm a prerrogativa de pedir uma solução consensual para um determinado caso. A empresa envolvida não pode fazer a solicitação, mas sempre terá a liberdade de levar seu pleito ao governo ou à agência reguladora, que, se concordarem, encaminham o caso ao tribunal. Ao receber os pedidos, a SecexConsenso faz uma análise prévia e envia a solicitação ao presidente do tribunal. E aí surge a primeira estranheza: quem decide se o caso será admitido ou recusado é o presidente do TCU – Bruno Dantas, no caso. A norma interna, em seu artigo 5º, diz que, caso o presidente recuse o pedido, “o processo será arquivado”. Isso significa que o presidente, sozinho, escolhe o que pode ser objeto de consenso no TCU. E, como tudo é sigiloso, os demais ministros podem até desconhecer que chegou um pedid o à corte.

Quando um pedido é aceito, instala-se a comissão de solução consensual, que tem prazo de noventa dias para atuar, prorrogáveis por mais trinta. A comissão sempre inclui um representante do governo, outro da agência reguladora e um da empresa em questão. Além disso, há dois auditores do TCU, um da própria SecexConsenso e outro oriundo da unidade técnica da área em discussão – energia, telefonia, transporte etc. Os dois auditores, porém, desde que o consenso ganhou outro nome, apenas emitem uma opinião. O que vale, mesmo, é a decisão de seus chefes.

A segunda estranheza é sobre o momento de definição do relator. No TCU, normalmente, os relatores são sorteados na fase inicial dos processos. Na SecexConsenso, é diferente. Só quando seus trabalhos estão concluídos – com proposta de acordo ou de arquivamento – é que se faz o sorteio de um relator entre os ministros da corte. Com isso, o relator ganhou um papel figurativo. Ele só entra em cena depois que os pontos mais relevantes foram solucionados, e sua missão está restrita a analisar o resultado final. O relator tem trinta dias para levar o caso a julgamento, que pode ser aprovado por maioria simples.

O sorteio do relator, porém, comporta sutilezas. Se um ministro estiver analisando um caso relacionado a um processo da SecexConsenso, o presidente pode evitar o sorteio e nomear esse ministro como relator – ou não. Quando a secretaria recebeu o caso da Rumo, da Malha Paulista, havia dois ministros com casos correlatos: Augusto Nardes e Jhonatan de Jesus, nenhum dos quais é exatamente próximo do presidente. Dantas, então, em vez de escolher um deles, promoveu um sorteio com todos os ministros. Deu certo: o caso caiu nas mãos do seu aliado Vital do Rêgo.

Quando o caso da Oi chegou à corte, deu-se o contrário. Havia quatro ministros lidando com diversos processos que tratam de telefonia – e estão em tramitação há anos. Em vez de fazer um sorteio entre os quatro, Dantas preferiu entregar o assunto nas mãos do ministro Jorge Oliveira, seu aliado. Justificou sua decisão com aquele tipo de palavreado que pode justificar qualquer decisão: “Ao analisar o grau de conexão de cada um dos processos, bem como a relevância e potencial impacto de cada um deles no deslinde dos presentes autos, considero pertinente a atribuição da relatoria deste processo ao ministro Jorge Oliveira.” Até o fechamento desta edição, havia doze processos na SecexConsenso com relatores definidos. Em quatro, os relatores foram sorteados. Nos outros oito, foram escolhidos por Dantas.

Com tantos poderes, o presidente do TCU controla a pauta dos consensos e, em alguns casos, aparentemente, o próprio consenso. Durante a análise do caso da Oi, por exemplo, que vinha enfrentando resistência da área técnica do tribunal, Dantas convocou os auditores para sua sala e quis saber a razão do entrave. Os auditores, segundo a piauí ouviu de técnicos informados sobre a reunião, sentiram-se intimidados com a conversa. (A revista pediu esclarecimento sobre o encontro com os auditores, mas Dantas não quis falar.)

Outra prerrogativa de Dantas está no controle do fluxo das soluções consensuais. Ele tem condições de acelerar ou retardar a tramitação de casos – não muito diferente do que acontece com presidentes de outros poderes, como o Senado, a Câmara, a Presidência da República. Há casos, como o da Oi, que demoraram quatro meses até chegar à comissão consensual, mesmo tempo que levaram processos já julgados para obter uma solução definitiva. Em nota enviada à piauí, a assessoria de imprensa do TCU diz que o único poder atribuído ao presidente do tribunal é o de aceitar ou não um pedido de solução consensual. “O presidente não é relator de processos nem vota, salvo em caso de empate”, diz a nota.

Nos bastidores do tribunal, ouve-se com frequência que a irrelevância dos auditores, agora relegados a meros comentaristas, já tem feito diferença na agilidade com que avançam alguns casos complexos. O da Oi, sob todos os aspectos, é um exemplo extraordinário. 

Criada com a privatização do sistema de telefonia no governo Fernando Henrique Cardoso, a Oi, antiga Telemar, tem uma trajetória singular: já pediu recuperação judicial duas vezes, conseguiu duas reduções bilionárias de dívida no governo Bolsonaro (somando tudo, o perdão supera os 18 bilhões de reais) e continua capengando. Agora, depois de passar por infindáveis negociações e ações judiciais, o caso da Oi chegou a um acordo na SecexConsenso. Examinando-se os detalhes das discussões, constata-se que a secretaria está virando o túmulo de posições históricas do Tribunal de Contas da União.

Antes da onda do consensualismo, o TCU tinha uma posição clara: ao final de uma concessão, a concessionária precisava devolver à União aqueles bens que recebeu para prestar o serviço – prédios, veículos, infraestrutura – ou o valor correspondente. Por isso, o tribunal sempre insistiu que a Anatel mantivesse um controle rigoroso sobre os bens, coisa que a agência nunca fez de modo satisfatório. O resultado é que, no caso da Oi, ninguém sabe quanto vale esse patrimônio – chamado, no jargão regulatório, de “bens reversíveis”.

O rigor do TCU sobre o assunto era tanto que o tribunal chegou a abrir um processo para discutir a responsabilização dos gestores da Anatel por falhas no controle dos bens reversíveis da Oi e outras concessionárias de telefonia fixa. Em 2016, com sua postura criteriosa em alta, o ministro Bruno Dantas até suspendeu um acordo da Anatel com a Oi, no qual a operadora trocaria multas por investimentos. O problema durou anos a fio, com a Anatel jamais atendendo as exigências do TCU. Até que a SecexConsenso entrou em cena – e o rigor ficou no passado.

A minuta do acordo com a Oi – cujos termos estão sob sigilo – já passou pela aprovação do ministro Juscelino Filho, das Comunicações, e da Anatel, faltando agora apenas o julgamento no TCU, o que está prestes a acontecer. O valor dos “bens reversíveis”, no entanto, nunca foi claramente definido. Em 2019, uma avaliação do patrimônio reversível de todas as teles, não só da Oi, chegou a 121 bilhões de reais. Em outra avaliação, realizada no ano passado, a Anatel calculou quanto as teles deveriam desembolsar – incluindo o valor dos bens reversíveis. Chegou a apenas 33 bilhões de reais. Ainda assim, é um número mais robusto do que os valores em discussão no TCU, que mal passam de 10 bilhões de reais, somando-se os casos da Oi e da Vivo, as duas maiores concessionárias de telefonia fixa.

Os detalhes da solução consensual são desconhecidos, mas um aspecto veio à tona: segundo o acordo, que deveria encerrar todos os litígios entre as partes, a Oi continuará movendo uma ação judicial em que cobra 60 bilhões de reais da União. Sobre essa disputa em particular, as partes – Oi, Anatel, TCU e governo – não chegaram a um consenso.

A Coalizão Direitos nas Redes, que reúne entidades defensoras de direitos digitais, já entrou na Justiça para barrar o acordo até que seja feita uma avaliação criteriosa do valor dos bens reversíveis da Oi. Uma das razões para a ação judicial está na justificativa do acordo, apresentada por um conselheiro da Anatel, Alexandre Freire, numa sessão da agência: “A solução consensual pode apresentar desfecho diverso do que ocorreria no estado de normalidade institucional, uma vez que haverá suspensão episódica da legislação de regência e dos precedentes da agência, formando uma necessária jurisprudência de crise.”

“Traduzindo” – escreveu Flávia Lefevre, representante da Coalizão, na ação contra o arranjo em curso na SecexConsenso – “está prestes a ocorrer um acordo envolvendo a concessionária Oi, que responde por redes públicas e bens reversíveis em 95% do país, feito à margem da lei, pois ‘haverá suspensão episódica da legislação de regência’, e sob sigilo”. Em conversa com a piauí, Lefevre disse que o acordo é “uma tunga, um roubo.” A Oi não quis se manifestar. 

Aideia de priorizar repactuações de contratos, em detrimento das relicitações, tem uma implicância relevante: a falta de transparência. Na SecexConsenso do TCU, tudo corre em sigilo. Não é ilegal, pois a lei de mediação permite que as negociações não sejam tornadas públicas. Mas é um contraste grande em relação às licitações, muito mais dadas ao escrutínio público, por meio de editais para consulta e audiências de portas abertas.

Durante a apuração desta reportagem, a piauí tentou – sem sucesso – acesso aos processos em tramitação. O presidente Bruno Dantas também mandou tirar os vídeos das sessões da página do TCU no YouTube. Em um café da manhã com jornalistas, Dantas foi cobrado para que voltasse a disponibilizar o material. “Eu entendo esse pleito”, disse ele. Mas, em seguida, falou que quem quer gravar as sessões pode fazê-lo. Do contrário, pode pedir à Secretaria de Comunicação do tribunal. “A nossa Secom te informa em menos de meia hora os dados e o vídeo”, disse. Em abril, a piauí pediu à Secom os vídeos de treze sessões. O pedido foi negado. A revista recorreu à Lei de Acesso à Informação e refez o pedido à Ouvidoria, que ma ndou apenas trechos das sessões. A piauí recorreu mais uma vez, esclarecendo que queria as íntegras, e finalmente as obteve. Isso tudo levou 66 dias.

O assunto incomodou até o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, que mantém uma boa relação com Dantas. Furtado pediu ao tribunal que os vídeos voltassem para o YouTube. Entendia que a instituição tinha que preservar seu compromisso com a transparência. A área técnica do TCU concordou. O relator do caso, ministro Anastasia, no entanto, não autorizou a volta dos vídeos, argumentando que a lei não obriga o tribunal a mantê-los disponíveis na internet. Depois do julgamento, Furtado disse à piauí: “Só falta revogar a lei da gravidade.”

Em nota à revista, o TCU disse que “preza pela transparência”, informou que os vídeos das sessões estão no servidor do tribunal para quem quiser pedir acesso e acrescentou que o armazenamento no YouTube foi uma medida excepcional, adotada durante a pandemia porque o prédio do tribunal estava fechado.

Todos os nove ministros do TCU foram procurados pela piauí, mas apenas um, Vital do Rêgo, o próximo a ocupar a cadeira de presidente do tribunal, concordou em dar entrevista. Para ele, a atuação do tribunal nas soluções consensuais é algo “revolucionário”, que vem maturando com o tempo. “Eu acho que a gente ainda não conseguiu chegar, digamos assim, a um modelo absolutamente perfeito”, disse. “Não estamos absolutamente fechados a mudanças que sejam importantes para dar cada vez mais transparência, mais governança à nossa atividade, à nossa função.” Sobre riscos de o tribunal chancelar algum acordo que tenha tido algum tipo de vício ou ilegalidade, disse: “Se houver irregularidade, nós não entramos nessa. Mas a gente não pode fazer a antevisão do processo”.

De fato, o tempo pode amadurecer a experiência, sobretudo porque há indicações de que a SecexConsenso saiu do papel às pressas. A instrução normativa que a criou nem previu a necessidade de que a Advocacia Geral da União aprovasse os acordos, como manda a lei. Além disso, ganha corpo no TCU a discussão sobre uma forma de submeter as repactuações a algum tipo de concorrência, talvez promovendo um leilão do acordo – aberto a todos, inclusive à concessionária que deu origem à repactuação. A solução, porém, pode esbarrar na lei que rege as licitações.

No dia seguinte à entrevista do ministro Vital do Rêgo, em 15 de março, Bruno Dantas me ligou. Disse que a apuração da revista estava disseminando “fofocas” que chegaram aos seus ouvidos, porque “Brasília é uma terra de muro baixo” e advertiu que “isso não é bom jornalismo”. Em seguida, deixou uma frase no ar: “Jornalismo, assim como a vida da gente, é uma maratona, não é 100 metros rasos, entendeu?”

Na maratona da vida, Dantas construiu uma fama que inspira dois sentimentos: admiração ou temor. Às vezes, os dois juntos. Da meia centena de pessoas do TCU, do governo e das agências reguladoras com as quais a piauí entrou em contato na apuração desta reportagem, a maioria relutou em falar sobre ele, mesmo de forma anônima, por receio de represálias. “Ele é uma águia política”, diz um alto funcionário do governo. “Fica olhando ali, sondando onde pode entrar para capitalizar.” Outro fez um apelo: “Me preserve. Não posso ter confusão com esse cara. Nem em sonho ele pode pensar que falei com você.”

Dantas é temido no TCU, mas também sabe agradar. Abriu o cofre para que os colegas fizessem viagens internacionais. Só nos primeiros cinco meses do ano, ministros e assessores gastaram 3,5 milhões de reais com idas ao exterior, segundo noticiou o blog do jornalista Lúcio Vaz, do jornal Gazeta do Povo. Até o fim de maio, o próprio Dantas havia viajado para seis países – incluindo a Arábia Saudita, onde participou da celebração do centenário de uma instituição de controle do país. Um ex-ministro do TCU, ouvido anonimamente, disse que nunca viu tamanha liberalidade. Outro ex-integrante do tribunal divertiu-se: “Já tem até ministro falando com sotaque.”

Apesar disso, quando o jornalista Guilherme Amado, do portal de notícias Metrópoles, criticou o TCU por ter retirado os vídeos do YouTube, Dantas alegou economia e nem mencionou o fato de que os vídeos teriam ido para a plataforma apenas em razão da pandemia. Em sua conta no X, na qual tem 29 mil seguidores, escreveu: “Edifício do @tcuoficial está aberto a quem se interessar pelos julgamentos. Quem quiser comodidade, pode assistir ao vivo de casa ou gravar por conta própria para assistir quando quiser. Mas para o @Metropoles só há transparência se o próprio TCU pagar para armazenar e manusear.” Recebeu uma saraivada de críticas entre os mais de setecentos comentários, e os usuários do X fixaram um disclaimer na postagem, dizendo: “O YouTube não cobra por armazenamento.” Dantas não comentou. 

Em artigo publicado no Blog do Fausto Macedo, no Estadão, o procurador do Ministério Público junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira, elogiou a ideia do consensualismo, mas apontou que colocar o TCU no papel de “cogestor” pode afetar sua eficácia como fiscal. “Isso gera um conflito até mesmo psicológico na forma de atuação dos auditores integrantes da comissão [do consenso]. É difícil olhar uma questão como controlador e, ao mesmo tempo, atuar como mediador isento. Um papel tende a comprometer, em alguma medida, o outro”, escreveu. Afinal, para o mediador, o sucesso é a solução. Para o fiscal, é o interesse público. Por isso, o procurador defende que os acordos consensuais deveriam ser baseados em critérios objetivos, evitando decisões baseadas em conveniências.

Como não há critérios objetivos, há risco de que o consensualismo venha navegando ao sabor das conveniências. Naquele mesmo evento realizado pelo TCU para legitimar as soluções consensuais, em junho, Flávio Amaral Garcia, procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor de direito da FGV, tocou nessa questão: “Eu queria fazer uma provocação. Talvez a pergunta mais correta não seja ‘quais são os limites?’, mas ‘quais são as causas da renegociação?’. Acho que esse é um ponto bem relevante”, disse ele. E fez três perguntas: “A causa da renegociação foi a partir de uma ineficiência do concessionário? A causa da renegociação foi a partir da maldição do vencedor, ou seja, ele foi excessivamente otimista no leilão? A causa da renegociaç& atilde;o foi um comportamento oportunista?”

O risco de que as tentativas de consenso, tal como estão, sejam uma carta branca para os negociadores – e uma porta aberta para interesses obscuros – é latente. “Até agora, não parece haver um arranjo e governança institucionalizada que favoreçam decisões consensuais vantajosas para o interesse público”, analisa um auditor do TCU, especializado em infraestrutura, que pediu para não ser identificado. Uma especialista em setor elétrico, da Advocacia-Geral da União, alerta que considerar apenas o custo financeiro dos contratos públicos é uma visão limitada. “Em um ambiente de mercado com muitos players, quando você faz avaliações sem enxergar o todo, limitadas às vantagens de curto prazo, acaba dando sinais econômicos e regulatórios distorcidos”, disse ela.

Em um debate interno no TCU, que por algum motivo não foi apagado do YouTube, um auditor questiona o ministro Anastasia sobre a “segurança jurídica bilateral”. Disse que se fala muito sobre segurança jurídica para as empresas privadas que são contratadas pela administração pública, mas pouco se fala da insegurança jurídica gerada pelas quebras de contrato promovidas pela própria iniciativa privada. Em sua resposta, Anastasia jogou o problema no colo do poder público, que se omite “em penalizar o privado” e, com isso, acaba permitindo que as irregularidades se perpetuem, “a não ser que haja um acordo”.

Tal como está desenhado, o consenso arbitrado pelo TCU também já produziu um efeito notável entre os advogados. Boa parte dos profissionais, sobretudo os que atuam nos tribunais superiores, já percebeu o potencial da SecexConsenso – mesmo aqueles que não são especialistas nos temas correntes na corte de contas. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, que já presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), passou a representar o BTG no TCU. Coêlho doou dinheiro para a campanha do ministro Alexandre Silveira ao Senado em 2022, é amigo de Bruno Dantas e frequentador da Esfera Brasil, o grupo de lobby. Outro advogado de expressão, Rodrigo Mudrovitsch, bastante próximo do ministro Gilmar Mendes, defende a Vivo no processo de conciliação com a Anatel no âmbito do TCU.

Fabiano Silveira é um dos poucos advogados que estão atuando em mais de um processo na SecexConsenso – os casos da Âmbar e do Aeroporto de Viracopos. Mas ele fez uma trajetória diferente. É um amigo muito próximo de Bruno Dantas. Foram colegas na Consultoria Legislativa do Senado, onde entraram vinte anos atrás, e desde então Fabiano Silveira virou uma espécie de sombra de Dantas. Sucedeu-o no Conselho Nacional do Ministério Público e, depois, acabou também integrando o Conselho Nacional de Justiça. Até que, nomeado para cuidar da área de transparência no governo Michel Temer, foi atropelado pelo vazamento de uma conversa com o senador Renan Calheiros na qual criticava a Lava Jato, então no auge.

Fora do governo, Fabiano Silveira decidiu abraçar a advocacia. Montou um escritório chique em Brasília e elegeu o TCU como um bom lugar de atuação. Mas, em 9 de setembro de 2020, teve outro problema, quando veio a público o esquema de desvio de 151 milhões de reais do Sistema S, na delação de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio, a federação do comércio do Rio de Janeiro. Diniz implicou advogados – como Eduardo Martins e Cristiano Zanin, hoje ministro do Supremo – e oito dos nove ministros do TCU, incluindo Dantas. Conforme reportagem divulgada pela CNN Brasil, Silveira foi apontado como a ponte entre Diniz e Dantas. Desta vez, Silveira – bem como todos os demais – saiu ileso. A delação de Diniz foi anulada em abril de 2022. Oito meses depois, no dia 14 de dezembro de 2022, quando Dantas tomou posse como presidente do TCU, Silveira ofereceu um almo ço de comemoração em seu casarão no Lago Sul, a área mais rica de Brasília.

Além do amigo Silveira, Dantas tem outra sombra: Carlos Eduardo Guimarães Araújo, o Cadu, seu amigo dos tempos de Feira de Santana. Cadu está em todas: estava na posse de Dantas na presidência do TCU, no fórum da Esfera no Guarujá, está em viagens internacionais oficiais de Dantas, como uma visita a Nova York, no início de maio. Tem um modesto escritório de advocacia – sem sócios, conforme o cadastro nacional da OAB –, mas atua na SecexConsenso. Opera em nome da ViaBahia, cuja concessão o ex-ministro Tarcísio de Freitas ameaçou até cassar, coisa que não fez. A atuação de Cadu, no entanto, é tão discreta que seu nome nem aparece nos autos do processo da ViaBahia no TCU. (No entanto, conforme a piauí confirmou, ele estava presente numa reunião da comissão consensual no dia 14 de junho. R epresentava a ViaBahia.) 

Como não existe vácuo de poder em Brasília, quando uma instituição se enfraquece outra se fortalece. É o que pode estar acontecendo agora, quando o TCU expande seus poderes – e as agências reguladoras se fragilizam cada vez mais. Além de restrições orçamentárias e postos em aberto em razão da lentidão na aprovação dos indicados pelo Senado, as agências enfrentam uma discussão sobre a duração máxima dos mandatos dos seus dirigentes. O debate se arrasta há dois anos e meio no TCU, cujo poder de jurisdição inclui as agências. A possibilidade de que tenham seus mandatos encurtados não deixa os presidentes das agências numa posição muito confortável para desafiar decisões do tribunal.

A porta giratória, que ex-servidores públicos atravessam para atuar no setor privado em que tinham influência quando ocupavam cargo público, é outro complicador para as agências representadas na SecexConsenso, especialmente no setor de aeroportos. Como diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Marcelo Guaranys foi responsável pela assinatura do contrato de concessão do Aeroporto de Guarulhos. Agora, trabalha para a concessionária de Guarulhos. Adalberto Vasconcelos, servidor licenciado do TCU, atualmente presta serviço para a concessionária do Aeroporto de Viracopos, que tem um litígio contra a Anac, a agência sob jurisdição do tribunal onde Vasconcelos trabalhava. É possível que Vasconcelos e Guaranys trabalhem com toda a integridade, mas a existência de uma desconfiança já não é bom sinal.

Também acontece nos altos escalões do governo. Quando o BTG Pactual adquiriu uma unidade de infraestrutura de fibra óptica da Oi e, aos poucos, tornou-se credor da dívida da empresa, seu dono, o banqueiro André Esteves, participou de reuniões em Brasília para negociar o futuro da tele. Nas negociações que reduziram a dívida da empresa com o governo em mais de 18 bilhões, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, teve participação central. Hoje, ele trabalha no BTG. Outro que atuou no caso foi o então advogado-geral da União, Bruno Bianco. Ele deixou a AGU de Bolsonaro em dezembro de 2022 e empregou-
se no BTG no mês seguinte.

No setor aeroportuário, a situação é particularmente delicada porque o governo Lula tem pressionado para que as concessionárias de dois aeroportos – Viracopos e Galeão – sejam mantidas onde estão. Para o governo, a permanência delas pode agilizar investimentos. Ocorre que, em meio a negociações bizantinas, há um festival quase infinito de aditivos contratuais. Conhecer esse universo por dentro, como é o caso de servidores que trabalharam no tema, é uma vantagem notável. Além disso, a expressão “aditivos contratuais” habitualmente acende um sinal vermelho para negociações obscuras.

Viracopos é um caso em que a postura leniente veio de todos os lados: do TCU, do governo e da agência reguladora. Quando arrematou a concessão em 2012 por mais de 3,8 bilhões de reais, pagando um agressivo ágio de quase 160%, a Aeroportos Brasil Viracopos (ABV) teria que preparar o aeroporto para a Copa do Mundo de 2014. Foi uma dor de cabeça. Nos seis anos seguintes, a ABV não fez parte das obras contratadas, recebeu multas que não saldou, deixou de pagar as outorgas, sofreu processo de cancelamento da concessão e entrou em recuperação judicial.

Diante disso, a ABV não tinha mais condições de manter a concessão. A melhor cena do litígio aconteceu numa tarde de janeiro de 2020, quando a Anac se reuniu para decidir sobre a cassação da concessão. O ambiente era tenso e a expectativa era uma só: a agência expulsaria a concessionária do aeroporto. A ABV precisava impedir que a sessão terminasse com resultado tão adverso. O relator Ricardo Bezerra, diretor da Anac nomeado por Lula em 2010, começou então a ler seu voto.

Depois de trinta minutos, tudo indicava que o relator cassaria a concessão, mas ele ainda lia as preliminares do voto. Uma hora depois, os ouvintes começaram a respirar fundo porque a leitura entrara no voto em si, mas se alongava. Quando bateu uma hora e meia, a impaciência tomava conta do plenário e o relator seguia impávido. Bateu duas horas, e começaram os rumores de que a ABV estava tentando suspender a sessão judicialmente. Quando a leitura chegou a duas horas e vinte minutos, um oficial de Justiça bateu à porta da Anac para entregar uma liminar recém-saída da mesa do ministro João Otávio de Noronha, então presidente do Superior Tribunal de Justiça. A liminar suspendia o julgamento. O relator nunca concluiu seu voto.

Uma semana depois, já em recuperação judicial, a ABV pediu uma relicitação. A discussão sobre cassação dentro da Anac foi então definitivamente suspensa, e o TCU entrou no jogo. Em 2022, com toda a burocracia da relicitação finalmente pronta, a Anac mandou a papelada ao TCU, que precisava apenas dar seu aval para que a data do novo leilão fosse marcada. No entanto, o relator do caso no tribunal, ministro Vital do Rêgo, tal como aquele voto que nunca terminou, jamais se manifestou, nem a favor, nem contra. Em 2023, com a posse de Lula e a SecexConsenso já instalada, o novo governo achou que o melhor caminho era evitar a relicitação e manter a concessão nas mãos da ABV, apesar do seu fabuloso histórico de devedora contumaz. (Só com a suspensão do pagamento das outorgas, o calote já bate em 2 bilhões de reais.)

Acionada por uma consulta dos ministros Renan Filho, dos Transportes, e Marcio França, então na pasta de Portos e Aeroportos, a área técnica do TCU entendeu que as concessionárias não podiam voltar atrás nas relicitações e continuar com a concessão, como se nada tivesse acontecido. No plenário, os ministros do tribunal, no entanto, entenderam o contrário. Se era a vontade do governo, então era possível fazer a “desrelicitação”, o que desobstruiu o caminho para a ABV e outras concessionárias. Desde dezembro do ano passado, a SecexConsenso negocia uma repactuação do contrato. A ABV, num caso único entre as concessionárias, não tem nem apólice de seguro para Viracopos. Qualquer prejuízo adicional que dê ao governo não será coberto pelo mercado.

Em nota à piauí, a ABV atribuiu seu desequilíbrio financeiro à União, que não cumpriu sua parte no contrato original. Entre outras faltas, o governo não entregou “nem 20% dos 17 km² que deveriam ser desapropriados”, o que frustrou o projeto inicial de construção de um complexo com galpões logísticos, hotéis e centro de convenção – que, se fosse construído, teria gerado receitas imobiliárias à empresa. “É como você pagar o aluguel de um apartamento de cinco quartos por dez anos e só poder utilizar dois deles.” Mesmo assim, a ABV ressaltou que o serviço do aeroporto é reconhecido em premiações como um dos melhores do país. E concluiu: “A atual concessão é viável econômica e financeiramente.”

Consultados pela piauí, três dos ministérios mais ativos nas repactuações enviaram notas em defesa dos acordos. O Ministério de Portos e Aeroportos disse que “tanto em Viracopos quanto em Guarulhos, as concessionárias devem cumprir as diretrizes estabelecidas pelo TCU para sanar o passivo e apresentar alternativas de investimentos para ampliação da infraestrutura aeroportuária”. O Ministério das Comunicações afirmou que a mediação do TCU “dá mais segurança jurídica aos acordos” e elogiou a forma como as negociações são conduzidas, mas não comentou nenhum caso específico em razão da confidencialidade. Por fim, o Ministério das Minas e Energia defendeu o acordo firmado com a Âmbar Energia e fez questão de lembrar que incluiu pagamento de multas e teve ap rovação da Aneel. 

No início de maio, uma comitiva do Ministério dos Transportes viajou para Nova York. No escritório do grupo Baker McKenzie, a maior banca de advocacia dos Estados Unidos e uma das maiores do mundo, a comitiva reuniu-se com um “grupo seleto de investidores estrangeiros formado por quarenta empresários”, segundo uma nota do ministério. O objetivo era mostrar que o Brasil é um bom lugar para investir. O ministro Renan Filho não pôde integrar a comitiva, em razão da tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, mas o grupo não levou apenas autoridades do governo. Bruno Dantas e o secretário da SecexConsenso, Nicola Khoury, estavam lá.

Depois, em Brasília, o Ministério dos Transportes organizou um evento para anunciar o acordo com a Rumo, da Malha Paulista, celebrado no âmbito da SecexConsenso. Desta vez, o ministro Renan Filho estava presente, bem como Bruno Dantas. Os dois também compareceram ao evento da Esfera em 8 de junho, no litoral paulista. Na ocasião, em seu discurso, Camila Camargo Dantas, dirigente do grupo de lobby e já casada com Dantas, mencionou dados econômicos de 2023, destacou os acordos patrocinados pelo TCU e citou o “trabalho admirável” de Renan Filho. Os acordos talvez sejam mesmo um trabalho admirável, mas o público não tem condições de avaliar porque os documentos das negociações costumam ficar em sigilo.

A parceria entre Dantas e os ministros tem sido criticada – quase sempre apenas nos bastidores – por diluir a linha divisória entre fiscal e fiscalizado, mas o presidente do TCU tem-se empenhado em defendê-la. Em evento recente na Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), fez um discurso em favor da atuação conjunta entre governo, agências e o tribunal, e criticou os opositores e a imprensa. “Alguns contratam jornalistas para ficarem acampados no Tribunal de Contas da União, tentando sabotar essa iniciativa, mas nós, felizmente, não temos medo de latido forte. Os cães ladram, a caravana passa. Nós acreditamos com muita firmeza no que estamos fazendo. Nós estruturamos uma governança muito sólida para permitir que essas negociações se deem num fórum republicano. Num fórum em que a impessoalidade seja o bservada.”

Meses antes, em outubro do ano passado, aconteceu a primeira edição do Fórum Esfera Internacional, no Pavilhão Vendôme, em Paris. Entre os presentes, estavam os irmãos Batista, donos da J&F, e o ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia. Numa ocasião, o ministro e um dos irmãos deixaram o encontro e caminharam em direção à Place de la Concorde. Não se sabe o que conversaram, mas, por coincidência, naquele momento, a SecexConsenso em Brasília avaliava o caso da Âmbar, o braço de energia da J&F.

À noite, a Esfera encerrou seu evento com um jantar pomposo na Biblioteca Nacional da França. Os convivas assistiram a uma apresentação da Orquestra de Paris e saborearam um menu exclusivo preparado pelo chef Alain Ducasse. No centro da biblioteca, o empresário João Camargo, dono da Esfera, fez um discurso de agradecimento e chamou sua família para ficar ao seu lado. O senador David Alcolumbre (União Brasil-AP) achou que Bruno Dantas também deveria juntar-se a Camargo, já que, pouco mais tarde, estaria casado com a filha do empresário. Animado, Alcolumbre gritou:

– Vai, Bruno!

Bruno foi. Seis meses depois, o caso da Âmbar estava arquivado, os ministros do TCU recomendaram ao governo que selasse um acordo com a empresa e o ministro Alexandre Silveira apressou-se em fazê-lo.

Em Brasília – ou em Paris – isso se chama consenso.

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