25 junho 2024

Impasses latino-americanos

A crise da democracia na América Latina

ANDRÉS TZEIMAN & DANILO ENRICO MARTUSCELLI

Introdução dos organizadores do livro recém-lançado “La crisis de la democracia en América Latina”

1.

No início da terceira década do século XXI, a conjuntura latino-americana defronta-se com as coordenadas estabelecidas por três fenômenos que se desenvolvem simultaneamente e de forma justaposta. Esses fenômenos servem como um marco geral da crise democrática atualmente em curso em nossa região, que será analisada nas páginas deste livro coletivo.

A primeira delas, sem dúvida, refere-se ao contexto global. Três décadas após o surgimento de um mundo unipolar (após a queda do Muro de Berlim em 1989), a ordem internacional enfrenta hoje uma situação de descontinuidade hegemônica. A liderança unipolar dos Estados Unidos está em claro declínio, fenômeno que tem se expressado de forma contundente nos últimos anos em dois momentos políticos.

Primeiro, durante o governo de Donald Trump, quando, sob o slogan America first e como resultado da guerra comercial com a China, a ideologia da globalização que predominava na ordem internacional desde a década de 1990 (precisamente quando os Estados Unidos passaram a deter inequivocamente sua liderança em âmbito global) foi questionada.

Depois, em segundo lugar, em janeiro de 2021, quando a tomada do Capitólio expôs aos olhos do mundo as inconsistências e fraquezas do sistema democrático dentro das fronteiras dos próprios Estados Unidos. Da mesma forma, esse declínio da hegemonia estadunidense convive com o avanço de duas potências, como China e Rússia, que, no entanto, ainda não consolidaram definitivamente os contornos de uma ordem global multipolar e alternativa.

A guerra na Ucrânia, desencadeada em 2022, é um capítulo importante desse processo de transição. Levando em conta esse panorama, está se configurando um cenário que o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, chamou de “tempo histórico liminar”. Ou seja, uma situação marcada pela suspensão do tempo histórico, na qual os horizontes do futuro não são claros e, portanto, tende a predominar a incerteza do porvir como modo de vida e de organização política e social.

Vale ressaltar, nesse sentido, que a pandemia da COVID- 19, iniciada no começo do ano de 2020, exacerbou os traços de incerteza que marcam esse cenário. Como consequência, particularmente no que diz respeito à nossa região, as elites e as classes dominantes locais demonstram um alto nível de perplexidade diante dessa vacância hegemônica global, colocando assim uma grande dúvida sobre o projeto econômico, político e social a ser desenvolvido na e para a América Latina.

O segundo fenômeno que marca a situação regional é a reação conservadora à implantação de governos progressistas nos primeiros quinze anos do século XXI na América Latina. A harmonia continental alcançada pelos movimentos e lideranças políticas progressistas nessa década e meia, em que ocorreram processos de democratização da vida social e de ampliação dos direitos das grandes maiorias populares, teve como resposta uma contestação de forças conservadoras e antidemocráticas, tanto em cada um dos países em questão quanto em âmbito continental.

Embora nos últimos cinco anos tenha havido mutações e radicalizações nas características e perspectivas desse giro conservador (que esta obra coletiva pretende explorar mais detalhadamente), o rastro “antiprogressista” continua sendo um marco de época, entendido como a necessidade percebida pelas classes dominantes de extirpar a possibilidade de ressurgimento de processos de democratização e ampliação de direitos em benefício dos setores populares.

Finalmente, o terceiro fenômeno que organiza nossa conjuntura está diretamente ligado aos dois anteriores. No contexto da vacância hegemônica global e dos processos de revanche social na América Latina, a crescente contradição entre neoliberalismo e democracia está se manifestando em nossa região com toda sua força. Se nos Estados Unidos e na Europa, após a crise de 2008, o mal-estar social diante do neoliberalismo recarregado se expressou com o surgimento de novas direitas radicalizadas, na América Latina esse processo não se esgotou nesse aspecto, mas tem fortes repercussões no desenvolvimento dos próprios sistemas democráticos.

2.

Aqui identificamos e procuramos analisar três derivas nessa direção na atual situação latino-americana:

(i) O neogolpismo. Diante da adoção de políticas por governos democráticos que desobedecem aos ditames impostos pelas classes dominantes, surgem novas formas de produzir rupturas para alterar a dinâmica institucional. Esse fenômeno tem uma dimensão histórica notória. No século XX, as rupturas institucionais na América Latina ocorreram fundamentalmente por meio da irrupção de regimes militares que se autoproclamavam e se apresentavam explicitamente como uma ruptura com a rotina das instituições democráticas, mas, no contexto atual, as novas formas de golpes de Estado são realizadas por meios alternativos.

A ingerência do Legislativo sobre o Executivo, juntamente com a perseguição de lideranças políticas pelo Judiciário em conluio com a grande mídia e grupos econômicos concentrados (conhecida como lawfare), constituem no século XXI as novas modalidades de quebra das regras dos sistemas democrático-institucionais.

Com relação à deriva do neogolpismo, é importante destacar que os golpes de Estado contra governos progressistas que foram efetivamente consumados, foram acompanhados do aprofundamento das políticas neoliberais. Esse é um aspecto que os diferencia dos golpes das décadas de 1960 e 1970, que foram marcados pela implementação variável de políticas desenvolvimentistas e neoliberais, a depender dos diferentes casos nacionais.

(ii) A constituição de regimes políticos híbridos. Se o neogolpismo nos remete a rupturas institucionais por meio das quais são provocadas rupturas ou mudanças forçadas de governos, uma nova ameaça paira ao mesmo tempo sobre o desenvolvimento das democracias latino-americanas, mesmo dentro dos mandatos eleitos pelo voto popular: a constituição de regimes políticos híbridos.

O deslocamento forçado de faculdades políticas do Executivo para setores do Legislativo ou do Judiciário estabelece sérias limitações à possibilidade de deliberação dos representantes que foram eleitos/as de acordo com o princípio da soberania popular. Portanto, a ruptura da ordem não é consumada exclusivamente por meio de um golpe (duro ou brando, estilo antigo ou novo), mas é imposta diariamente por meio de um crescente deslocamento das competências políticas para fora dos poderes executivos. Isso se produz em conjunto com forças fora do sistema político no sentido estrito do termo (estamos falando essencialmente de poder econômico e de poder midiático concentrado).

Assim, com o surgimento de lideranças e/ou forças políticas cuja eleição democrática se baseia na promessa de produzir transformações em benefício das grandes maiorias sociais, a margem de decisão desses governos se reduz consideravelmente (a ponto de se tornar praticamente nula em alguns casos) como consequência de um aumento das competências atribuídas a outros poderes em nome do próprio sistema democrático.

(iii) A radicalização autoritária e o surgimento e a ascensão das forças de extrema direita. A contradição entre neoliberalismo e democracia se expressa na irrupção de forças políticas de extrema-direita que buscam modificar drasticamente os limites do sistema democrático com o objetivo de transformar a violência em uma característica permanente da organização da vida social, tornando-a uma característica inerente a esse sistema.

Dessa forma, podemos assinalar que, se o pacto democrático forjado (explícita ou implicitamente) na década de 1980 na região (após o disciplinamento popular imposto pelas ditaduras militares da década de 1970) impunha uma harmonia entre o modelo econômico neoliberal e as instituições democrático-representativas, isso ocorria sob o pretexto de pôr fim ao exercício permanente da violência como organizadora da convivência social.

Ao contrário, hoje, quatro décadas após o início desse pacto, emergem forças políticas com crescente inserção e capacidade de irradiação nas massas populares e, principalmente, nas classes médias, que proclamam e expressam na esfera pública o exercício da violência física e simbólica (cujas fronteiras, aliás, estão cada vez mais tênues). Nesse contexto, o racismo, o classismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e a transfobia se tornaram uma característica permanente e inerente da vida política da região.

É claro que essas características tornam a existência de um sistema democrático indistinguível de um sistema autoritário, apesar do funcionamento do sistema eleitoral e da dinâmica estritamente formal, embora já bastante prejudicada, das instituições representativas. A negação e até mesmo a aniquilação do outro se tornaram uma paisagem cotidiana de nossa cultura política. Por essa razão, os conceitos de fascismo, neofascismo ou pós-fascismo estão ressurgindo na situação atual como parte do vocabulário usado para caracterizar os processos sociopolíticos e as forças políticas da extrema-direita em muitos dos países da região.

3.

Dessa forma, esta obra coletiva pretende refletir sobre as três dimensões mencionadas da crise democrática que afeta atualmente a América Latina. Nesse sentido, além desta breve introdução que serve como apresentação de suas chaves gerais de leitura, o volume será dividido em três seções, nas quais serão realizadas abordagens teóricas e estudos de casos nacionais.

Na primeira seção, os artigos buscarão realizar uma abordagem teórica, tanto para o contexto político geral em que a América Latina se encontra quanto para as diferentes formas de conceituar a crise democrática. Para isso, serão exploradas categorias clássicas da teoria política, juntamente com outros conceitos mais inovadores, forjados no calor do último ciclo político da região. Em particular, os três artigos que compõem esta primeira parte se concentrarão, respectivamente, na conceituação dos regimes políticos contemporâneos, na caracterização do neogolpismo e na articulação singular entre o neoliberalismo e a moralidade familiarista que existe nas direitas nativas no contexto atual.

A segunda seção, por sua vez, trata de processos sociopolíticos nos quais são analisados conflitos que mostram, em diferentes casos nacionais, o confronto de forças que levou à crise atual. Descartando como ponto de partida uma perspectiva determinista que poderia pensar a crise democrática como resultado da ação de um contexto externo ou de forças exógenas, os diferentes trabalhos tentarão pensar as disputas entre classes, frações de classes e grupos sociais que dão origem à crise e que, fundamentalmente, explicam por que a crise assume determinadas formas e se processa sob modalidades específicas no campo político.

Precisamente, as diferenças entre as histórias de luta, as relações de forças e os sujeitos sociais e políticos, de acordo com os diferentes casos nacionais, permitirão aos/às leitores/as observar nos diferentes artigos desta seção a diversidade com que um ciclo comum (como a atual crise democrática) se expressa politicamente em nossa região.

Por fim, a terceira seção se concentra na abordagem da radicalização autoritária e no fenômeno do surgimento e ascensão das forças de extrema-direita nos últimos anos em nossa região. Mais uma vez, os diferentes artigos examinarão distintos casos nacionais a fim de mostrar a diversidade desse fenômeno de acordo com a heterogeneidade das tradições político-ideológicas na história das direitas nativas e  com o desenvolvimento mais recente dos conflitos políticos.

Nesta seção, os trabalhos também serão abordados a partir de diferentes perspectivas, com o objetivo de enriquecer o exame das novas formações da extrema direita. A sociologia histórica, a crítica ideológica e a ciência política são os diferentes veículos disciplinares usados nos diversos textos para abordar um fenômeno que irrompeu na região nos últimos tempos e que, portanto, merece ser estudado de diferentes ângulos para compreender a complexidade que o caracteriza. Assim, serão analisadas as experiências políticas, os imaginários e as representações que fazem parte da radicalização autoritária atualmente em pleno andamento em nossa região.

Certamente, devemos reconhecer que esse trabalho coletivo deixou algumas tarefas pendentes. Mesmo que este volume abranja uma gama bastante ampla de casos nacionais (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru), ele não cobre todos os países da região. Embora saibamos que tal objetivo implicaria em um trabalho de dimensões muito difíceis de serem abarcadas, é necessário admitir ausências substanciais, como são os casos de Uruguai, Paraguai e Venezuela, este último extremamente importante no cenário geopolítico das duas últimas décadas.

Também não conseguimos abordar as sub-regiões da América Central e do Caribe, tão ignorada pelos intelectuais do Cone Sul (ao qual, aliás, nós, os organizadores deste livro, pertencemos). Isso merece não apenas o reconhecimento e a autocrítica como a que estamos tentando expressar aqui, mas também uma observação crítica tanto das assimetrias que persistem no sistema acadêmico entre os diferentes países quanto da inadequação dos vasos comunicantes entre as instituições universitárias das diferentes sub-regiões da América Latina.

Não temos dúvidas: ainda há muito trabalho a ser feito nesse sentido. De todo modo, acreditamos que essas lacunas não invalidam a riqueza deste trabalho e, muito menos, o potencial crítico concentrado em suas páginas.

Para concluir esta breve introdução e deixar os/as leitores/as em contato com os/as autores/as de cada um dos capítulos, resta dizer que esta obra coletiva pretende dar conta das múltiplas dimensões que se evidenciam na atual conjuntura latino-americana. Reconhecendo a centralidade do contexto global para pensar a realidade da América Latina, este volume busca refletir sobre a inscrição da região nesse quadro.

Mas o faz considerando o papel fundamental desempenhado pela longa história das classes sociais e suas tradições políticas, as disputas do passado recente, bem como a especificidade que os conflitos sociopolíticos assumem nessas latitudes. Sem perder de vista, nesse último aspecto, o fato de que tanto as irrupções plebeias quanto as respostas autoritárias das classes dominantes a elas, adquirem um lugar primordial quando se trata de encontrar formas de resolver a crise atual.

Não devemos nos esquecer, como René Zavaleta Mercado costumava nos lembrar constantemente, que as crises contêm um enorme potencial como forma de visibilidade e conhecimento. Em meio ao caos global, assumir a presença da crise e tentar entendê-la, como propomos neste livro, não parece pouca coisa.

*Andrés Tzeiman é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Buenos Aires (UBA).

*Danilo Enrico Martuscelli é professor de ciência política na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Referência


Andrés Tzeiman & Danilo Enrico Martuscelli (orgs). La crisis de la democracia en América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2024, 386 págs.

O livro pode ser acessado na íntegra e gratuitamente no link: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/249627/1/La-crisis-Tzeiman.pdf

Imagem: Lin Barrie

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/07/o-temor-da-china.html

Estado na economia

Lula tem razão
Ladislau Dowbor argumenta que a financeirização supera a acumulação produtiva, tornando a intervenção estatal essencial para enfrentar desafios econômicos e sociais no Brasil.
Abraham Sicsú/Vermelho

Ladislau Dowbor, em interessante artigo, “Rentismo, o novo modo de produção”, no site Outras Palavras, apresenta uma tese muito instigante.

Não seria mais Capitalismo, “trata-se de outro modo de produção em construção, em que a financeirização supera a acumulação produtiva de capital, a exploração por meio do rentismo supera a exploração por meio de baixos salários.”

Com isso o conceito de emprego se desloca, a mais valia é apropriada através de algoritmos e o próprio dinheiro eletrônico. Diz, “enquanto o capitalismo industrial gerava ao mesmo tempo a apropriação e geração de mais capacidades produtivas, o rentismo se apropria do excedente sem a contribuição produtiva correspondente.“ Em outras palavras, não gera emprego suficiente e é altamente excludente.

Isso eleva a escala de apropriação, enquanto 1,2% da população adulta detêm 47,8% da riqueza acumulada, 53,2% vivem em condições precárias e, eu diria, não são mais necessários para a reprodução ampliada do capital.

Não significa que o setor produtivo, indústria, agricultura, entre outros,  desaparecerão, ao contrário, mas o que se observa é que mesmo esses segmentos se submetem à lógica do setor imaterial, a valorização de seu capital se dará pelos algoritmos e esquemas que a financeirização engendrou. Em outras palavras, o real terá que se submeter á lógica de valorização dos papeis e sinais digitais.

Nesse mundo, o conhecimento passa a ser a força produtiva que provoca as mudanças, que define a lógica da nova economia. Mas, um conhecimento específico, do digitalizado, do valorizar o imaterial.

Traz uma contradição. Se o valor das mercadorias, materiais ou imateriais, é definido pelo conhecimento, o trabalho social passa a ter um papel secundário, o intangível, os sinais magnéticos, prescindem à territorialidade, exige uma nova forma de organização social.

A busca do monopólio desse conhecimento, do cerceamento da participação coletiva, faz com que se aproximem rentismo e grandes corporações, faz com que o domínio dos algoritmos e o impedimento de sua difusão para uso comum dêem poder e riqueza aos seus detentores e desenvolvedores, uma parcela insignificante da população mundial.

A economia mundial está na era digital, no entanto, regulamentada por normas e procedimentos da era do capitalismo produtivo, o que gera uma impotência institucional, e há uma total desarticulação do sistema, com alta concentração de renda e poder nas Big Techs e nos poucos que dominam esse conhecimento específico e sua infraestrutura tecnológica. 

Desafios ambientais, desigualdade, pobreza, sofrimento humano, são notados como sinais de nossos tempos, notados como resultados de um mundo em que não há regulação adequada, nem propósitos sociais. A anarquia da produção em que interesses de grupos, individualizados e contraditórios entre si, se opõe aos da coletividade, em que a visão social é desqualificada, faz com que a sociedade se mostre à deriva.

Neste quadro, apenas um agente pode resgatar a visão humanitária, o Estado. Ele é o último guardião para regular e defender os interesses da sociedade, do cidadão comum, é preciso intervir, inclusive para garantir empregos de melhor qualidade.

A que vem essa conversa? Estamos num momento de crise mundial, de crise de investimentos, a nível mundial. Nota-se um decréscimo de investimento externo direto geral, e é função dos governos garantirem condições para que haja maior inserção social, mais dignidade, atraindo esses investimentos.

Um país como o Brasil vem de época difícil, anos em que se refluiu, em que o desemprego chegou a níveis alarmantes. Infelizmente a busca de recuperar a dignidade social e diminuir os níveis de concentração de renda e de exclusão, não é fácil. Enfrentar um Congresso conservador e ideologizado que pouco pensa nesse processo de recuperação é difícil. Mais, ter ainda estruturas partidarizadas que se posicionam contra um projeto desenvolvimentista, pior ainda.

Pior, contar com um Banco Central que não colabora, que tem em sua presidência cidadão que veste em eleição camisa vede amarela, panfletariamente à época, simbolizando ser de extrema direita, que vai a jantar em sua homenagem com governador nitidamente candidato ao Planalto, jantar em que ele próprio se declara candidato a um ministério num improvável governo de oposição ao atual, não pode ser considerado técnico.

Vejo com muita desconfiança as alegações da mídia e dos artigos de economistas ortodoxos de que há razões técnicas para manter a taxa de juros em nível escorchante.

Falso, vendo pelo lado da teoria econômica mais tradicional, aquela que eles seguem, observa-se que a inflação está controlada, o nível de demanda agregada não explodiu, as contas externas apresentam bom resultado, o emprego melhorou, o país recuperou a credibilidade internacional. Não há nenhuma justificativa técnica plausível, a não ser a visão ideológica e partidária assumida contrária ao projeto desenvolvimentista. Atitude que baseia o posicionamento para manter os lucros exacerbados que só interessam aos setores rentistas.

Vejam, por exemplo, os investimentos externos diretos, mesmo em época de forte retração internacional. No ano passado, o Brasil, se manteve em terceiro lugar de atração, logo depois de Estados Unidos e China.

Não foi fácil, mais difícil ainda manter com as taxas de juros que estão sendo sustentadas. Há uma disputa internacional e isso nos desfavorece muito. Com essas taxas de juros se perdem investimentos produtivos, isso significa menos empregos qualificados, manutenção de uma base produtiva com produtividade e competitividade menores. Será que isso não passa pela cabeça dos senhores do BC?

Com certeza, a incerteza econômica e as taxas de juros altas afetam o investimento global, diminuem nossa atratividade.

Lula fez muito bem em criticar essa sandice, de mostrar que o que estão fazendo é jogar contra os interesses da população brasileira.

Não se submeter aos interesses dos rentistas e da direita raivosa que parecem ser os motores das decisões tresloucadas daqueles que não têm compromisso com a melhoria de vida da maioria no Brasil é uma forma objetiva de deixar claros os interesses envolvidos. Colocar panos mornos para evitar conflitos em nada ajuda neste momento. Sendo ideológico, deve ser enfrentado de frente, mostrando claramente as repercussões das atitudes equivocadas que têm sido assumidas.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/10/dialogo-lulaempresarios.html

Arte é vida: Aldemir Martins

 

Aldemir Martins

No X (ex-Twitter) @lucianoPCdoB

A suposta pressão de aliados sobre o presidente Lula para que faça uma reforma no ministério agora não tem o menor sentido. Fazer ajustes táticos é uma coisa, trocar o time é outra coisa muito diferente. Pra quê?

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/minha-opiniaotrincheira-da-comunicacao.html 

Nivaldo Santana opina

Precarização do trabalho enfraquece os sindicatos

Pesquisa do IBGE mostra queda de 6 milhões de sindicalizados em 11 anos, acentuada pela reforma trabalhista de 2017, desindustrialização e informalidade
Nivaldo Santana*/Vermelho


A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) realizada pelo IBGE aponta que o número de trabalhadores sindicalizados no Brasil caiu para 8,4 milhões, 8,4% dos 100,7 milhões de ocupados no país.

A pesquisa, divulgada no último dia 21 de junho, mostra que em onze anos, de 2012 até 2023, diminuiu em 6 milhões o número de sindicalizados. Entre 2022 e 2023, a queda foi de 713 mil.

O movimento sindical tem a responsabilidade política de analisar as causas deste fenômeno de regressão no número de sindicalizados – e consequente enfraquecimento sindical – e buscar saídas para reverter este quadro.

Os pesquisadores do IBGE contribuem para o debate levantando hipóteses explicativas para essa queda acentuada no número de trabalhadores associados às suas entidades de classe.

Uma causa importante, sem dúvida, foi a contrarreforma trabalhista de 2017, que deu status legal à precarização do trabalho e, de quebra, acabou com a contribuição sindical, uma fonte importante do financiamento dos sindicatos.

A dita reforma legalizou o trabalho intermitente e parcial, regulamentou a terceirização irrestrita, flexibilizou a demissão, o descanso semanal, as férias, a jornada de trabalho, restringiu o papel de negociação dos sindicatos, etc.

Como consequência, avançou a informalidade e os contratos flexíveis, situação que praticamente inviabiliza o contato dos sindicatos com esses segmentos de trabalhadores.

Outro ponto importante é a desindustrialização no Brasil. Tradicionalmente, os sindicatos de trabalhadores da indústria eram os mais fortes e mobilizados. Neste segmento, a sindicalização caiu de 21,3% para 10,3%.

No setor público, com tradição de grandes mobilizações, também houve recuo na sindicalização. Uma razão importante foi o aumento dos contratos temporários, principalmente na área da Educação.

O setor público de transportes, também impactado pelo recuo na sindicalização, passou a sofrer com o avanço do trabalho por aplicativos e a consequente diminuição de passageiros e dos profissionais do setor.

Paralelamente, cresce o número de trabalhadores por conta própria, sem carteira assinada e o emprego doméstico. Trabalho intermitente, parcial, sem regulação trabalhista e assemelhados são categorias de difícil trabalho sindical.

Esses fatores são relevantes, mas não podem elidir debilidades do sindicalismo. O insuficiente trabalho de base e de formação classista dos trabalhadores, o cupulismo e o espírito de rotina também limitam a sindicalização.

Superar todos esses desafios exigem também mudanças estruturais no país, dentre as quais se destacam a luta por um projeto de desenvolvimento ancorado na retomada da indústria como fator essencial para gerar empregos de qualidade.

Desenvolvimento com valorização do trabalho só é possível com a revogação de reformas que atacaram os direitos trabalhistas, previdenciários e sindicais dos trabalhadores. A luta por trabalho regulado é essencial para isso.

Acabar com as diferentes modalidades de trabalho precário, retomar o papel de representação e negociação dos sindicatos, assegurar o crescimento econômico são fatores essenciais para reverter a diminuição da sindicalização no país.

*Ex-deputado estadual pelo PCdoB-SP, secretário de relações internacionais da CTB

Arte é vida: Bruce Wolfe

 

Bruce Wolfe

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/search?q=Raul+C%C3%B3rdula

Conselho Federal de Medicina & lei do estupro

Como Conselho Federal de Medicina se tornou pivô dos embates sobre aborto legal no Brasil

Mariana Schreiber/BBC

 

A nova onda de debates sobre o direito ao aborto legal no Brasil tem um poderoso protagonista, o Conselho Federal de Medicina (CFM), uma entidade com orçamento milionário e poder para cassar registros profissionais que sofre acusações de ter alinhamento político.

Foi uma resolução do CFM restringindo o aborto após 22 semanas, emitida em março e logo depois neutralizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que catapultou a mobilização pela criação de um projeto de lei no Congresso sobre o tema.

O texto em tramitação na Câmara prevê penas de até 20 anos de prisão para quem fizer um aborto após 22 semanas de gestação, até mesmo em casos de estupro, situação em que a interrupção da gravidez é permitida em lei no país.

O tema voltou a jogar luz sobre a atuação do CFM, provocando divisão na classe médica e acusações de alinhamento a grupos políticos de direita, como ocorreu durante a pandemia do coronavírus.

Naquela ocasião, o CFM defendeu o direito de médicos prescreverem medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, ecoando bandeira do então presidente Jair Bolsonaro.

Dessa vez, o conselho recebeu fortes críticas após aprovar, em março deste ano, uma resolução que impedia o uso da assistolia fetal em abortos em idade gestacional avançada.

A técnica, recomendada pela Organização Mundial de Saúde para esses casos de interrupção da gravidez, consiste em usar medicamentos para interromper os batimentos do feto, garantido que ele não seja retirado do útero com sinais vitais. 

Críticos do procedimento dizem que ele consiste num "assassinato de bebês" e que deveria ser protegida a vida do feto. Já seus defensores dizem que a técnica é um procedimento ético para realizar abortos após 22 semanas de gestação e que é uma violência obrigar a gestante a manter uma gravidez decorrente de estupro.

A resolução sobre aborto, porém, foi rapidamente suspensa por uma decisão liminar do ministro STF Alexandre de Moraes, em uma ação movida pelo PSOL. Ele entendeu que o CFM extrapolou sua competência ao fixar limites para o aborto legal, que não estão previstos na lei brasileira.

Mas quais são as competências legais do Conselho Federal de Medicina?

O CFM não é uma associação de profissionais privada. A entidade é uma autarquia criada por lei em 1957 para regular e fiscalizar a atuação da categoria no país.

Entenda abaixo as prerrogativas do conselho, as críticas dentro e fora da classe médica e a reação no Congresso provocada pela resolução sobre aborto suspensa pelo Supremo.

O que diz o CFM e seus críticos sobre a resolução

A resolução do CFM foi alvo de críticas de associações médicas e da área da saúde, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), e a Sociedade Brasileira de Bioética.

Já a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em inglês) publicou uma manifestação na segunda-feira (17/6) em que "expressa profunda preocupação com a recente resolução emitida pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil que proíbe a indução de assistolia para abortos induzidos legalmente".

"Essa proibição no Brasil é antiética e contradiz as evidências médicas", continuou a federação internacional, da qual faz parte a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Em manifestação por escrito enviada à BBC News Brasil, o presidente do CFM, o obstetra José Hiran, negou que o Conselho esteja alinhado ao campo político da direita.

"Trata-se de um órgão de Estado, que, como tal, não serve a Governos. Em 68 anos de funcionamento, o CFM tem sido instrumento para oferecer à população brasileira acesso a serviços e atendimento de qualidade. O compromisso do CFM é com a medicina, a saúde e a vida, trabalhando sempre atento aos limites e possibilidades colocados pela legislação, a ciência e a ética", afirmou.

Questionado sobre o posicionamento do CFM sobre o projeto de lei que criminaliza o aborto acima de 22 semanas com penas de até 20 anos de prisão, Hiran respondeu que "o Conselho Federal de Medicina não contribui com a elaboração desse PL" e que "o tema ainda está sendo analisado internamente".

"De qualquer modo, entendemos que este é um assunto que deve ser discutido no âmbito do Congresso Nacional, que deve ouvir todos os segmentos envolvidos, promovendo um amplo debate com a sociedade sobre o tema", disse ainda.

Na segunda-feira, Hiran participou de uma sessão temática no plenário do Senado sobre o tema. Ele disse, segundo a Folha de S. Paulo, que na interrupção de gravidez após 22 semanas, mesmo em caso de estupro, a “autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um, mesmo um ser humano formado com 22 semanas".

Projeto de lei com 'reação' do Congresso à derrubada da norma do CFM

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) afirma que a derrubada da resolução pelo STF gerou uma "reação" do Congresso.

Foi assim que ele e mais 32 deputados apresentaram um projeto de lei (PL 1904/2024) que tenta equiparar abortos realizados no Brasil após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, até mesmo em casos de estupro. Pela proposta, a gestante e o médico que realizar o procedimento poderá ter que cumprir pena de até 20 anos de prisão.

"Na verdade, o projeto é uma reação à ação do PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal. Assistolia é um procedimento médico que é colocar uma injeção no coração do bebê e ele tem um infarto fulminante. Nós estamos tratando aqui não de embriões no primeiro, no segundo mês, nós estamos tratando de vidas com 5 meses e 2 semanas. São as 22 semanas", disse, ao programa Fantástico, da TV Globo.

A proposta teve sua tramitação acelerada, inicialmente, com apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mas acabou sendo freada após a reação negativa de parte da sociedade.

O conselheiro Raphael Câmara Medeiros Parente, médico obstetra e autor da resolução contra o aborto aprovada no CFM, reconhece que a iniciativa estimulou a atuação do Congresso, mas afirma que o Conselho "não tem nada a ver com esse PL".

"O ministro Alexandre de Moraes [ao derrubar a resolução do CFM] não falou que era função do Congresso [legislar sobre o direito ao aborto], que não era nossa? O que o Congresso fez? Pegou para eles e fizeram. Só que o PL é bem além do que a nossa resolução propõe", disse à BBC News Brasil. 

Câmara, que foi secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde no governo Jair Bolsonaro, afirma que não concorda com o que chamou de "pena surreal" de até 20 anos estabelecida no PL e que teme que a proposta possa dar margem para criminalizar mesmo médicos que realizem abortos em situações em que há risco de morte para a gestante.

Por outro lado, ele defende que o Congresso aprove outra proposta que proíba a interrupção da gestação acima de 22 semanas em casos de estupro, transformando em lei o que previa a resolução do CFM suspensa pelo STF.

Além disso, o CFM tenta reverter a decisão de Alexandre de Moraes, mas ainda não há data para o caso ser julgado pelo plenário da corte.

Para Câmara, não se pode falar em aborto após 22 semanas porque a partir dessa idade gestacional o feto já tem viabilidade fetal, ou seja, já pode sobreviver fora do útero.

Apesar disso, segundo o portal do Colégio de Obstetras e Ginecologistas, associação dos Estados Unidos, a maioria dos fetos que nascem no intervalo de 23 a 25 semanas de gestação e sobrevivem "enfrenta deficiências graves, muitas vezes permanentes".

Câmara, porém, defende que, caso a gestante vítima de estupro não queira manter a gravidez e o feto tenha mais de 22 semanas, seja feito um parto antecipado.

"O foco da resolução é proibir matar bebê acima de 22 semanas com assistolia fetal", defendeu.

"O que seria feito [após as 22 semanas]? Você tira o bebê e ele vai ser cuidado. Se a mulher não quiser ficar com ele, vai para adoção. É simples", disse também.

Para o ginecologista Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e um dos poucos médicos que hoje realizam abortos legais no país após as 22 semanas de gestação, seria uma “violência obrigar uma mulher estuprada a dar à luz um filho com sérias sequelas.”

Ele nega que a assistolia fetal seja dolorosa para o feto, como simulou uma atriz em sessão sobre a assistolia fetal no Senado Federal, realizada na segunda-feira (17/6) com participação do CFM.

"Mentem quando dizem que a assistolia é dolorosa. Doloroso é um prematuro ir para a UTI, entubar, fazer dissecção de veia, fazer cirurgia. Isso é doloroso", afirmou à BBC News Brasil.

Quem faz aborto após 22 semanas?

Segundo Moraes, a maioria dos abortos são realizados antes de 22 semanas e, os que ultrapassam esse período, demoram a ser feitos pela dificuldade das mulheres em ter acesso ao aborto legal no país.

Outro fator que contribuí para a demora são as gestações de crianças e adolescentes vítimas de estupro, diz o médico. Nesses casos, a gestação pode demorar a ser descoberta, seja porque a menina abusada não entende que está grávida, seja porque ela tem medo ou vergonha de avisar a família.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2023, mais de 60% das vítimas de estupro têm até 13 anos. E, nesse grupo, 86% dos agressores são conhecidos, sendo que 64% são familiares – o que dificulta ainda mais a denúncia.

Em manifestação por escrito à reportagem, o presidente do Conselho Federal de Medicina disse que "é importante corrigir uma narrativa distorcida que coloca o CFM como opositor ao chamado aborto legal".

"Isso não é verdade. Nunca, a edição da Resolução CFM nº 2.378/2024 [que trata da assistolia fetal] teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública. Trata-se de programa incorporado pelo Estado brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de acesso definidos em lei", disse ainda José Hiran.

Sua manifestação não aborda, porém, o fato de o Código Penal brasileiro, ao garantir o direito ao aborto no caso de estupro, não estabelecer o limite de 22 semanas, como fixa a resolução do CFM, ao proibir a assistolia fetal.

Hiran criticou, ainda, os poucos serviços de aborto legal disponíveis no país.

"É evidente que culpar o CFM e a Resolução pelos problemas do aborto legal no Brasil configura uma forma de lançar cortina de fumaça sobre um debate que tem como foco principal a proteção dos direitos da mulher e do nascituro", respondeu à reportagem.

"Se o governo fizesse sua parte, assegurando o funcionamento da rede do aborto legal, o martírio das vítimas de estupro poderia ser reduzido. No entanto, os problemas da gestão do SUS têm contribuído pela dupla penalização da mulher violada. Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da inoperância do Estado, por meios de seus representantes na gestão da rede de saúde", acrescentou. 

CFM terá eleições em agosto

Como autarquia criada por lei, o Conselho Federal de Medicina deve regular e fiscalizar a atuação da categoria no país.

O órgão tem poder de aprovar resoluções e pode cassar registros de médicos que não sigam suas regras, impedindo sua atuação profissional.

A instituição é financiada, principalmente, por taxas obrigatórias pagas pelos mais de 600 mil médicos registrados e obteve R$ 276,6 milhões em receitas em 2023.

Um médico tem de pagar R$ 859,00 em 2024 ao CFM (valores reajustados a cada ano), enquanto empresas de serviços médicos têm de contribuir de acordo com o seu capital social – para empresas com capital social maior que 10 milhões de reais, a contribuição deste ano é de R$ 6.873.

O órgão, que tem autonomia administrativa e financeira, é fiscalizado pelo TCU (Tribunal de Contas da União).

A crítica que algumas associações médicas e da área da saúde levantam contra o CFM é que o conselho estaria atuando de forma politizada, ignorando a ciência, seja na postura adotada na pandemia, seja agora na questão do aborto.

"Lamentavelmente, nos últimos anos, a partir do governo passado, houve uma cooptação do conselho. Foram eleitas pessoas que deturparam completamente a função do CFM", crítica Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Faculdade de Medicina da Unicamp.

"Passamos pela vergonha de ter um conselho que defendia ivermectina para tratar covid", disse ainda à reportagem, em referência a remédios sem eficácia que foram usados na pandemia, com anuência do CFM.

A última eleição para a composição do CFM foi realizada em 2019. A nova gestão, que comandará o conselho pelos próximos cinco anos, será escolhida pelos médicos em agosto.

Cada Estado elege dois conselheiros federais, um efetivo e um suplente. Depois, esses conselheiros escolhem, entre si, os que ocuparão a direção da instituição.

Também crítico da atual gestão, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) lançou o manifesto "Muda CFM", apoiando chapas de oposição.

Entre os princípios do manifesto, estão "a defesa de uma medicina baseada na ciência" e " a independência e autonomia do CFM em relação a partidos políticos e a governos".

Além disso, a associação defende "a democratização das atividades do CFM, com viabilização de amplos debates com a categoria e com instituições científicas da saúde coletiva e da bioética em relação a temas polêmicos e sensíveis".

À BBC News Brasil, o oncologista e médico sanitarista Arruda Bastos, integrante da coordenação da ABMMD, acusou o CFM de adotar a resolução sobre assistolia fetal sem debate com outras instituições.

"Discutiram entre quatro paredes e foi feita essa resolução, contra, inclusive as associações que congregam especialidades médicas, de ginecologia e obstetrícia", ressaltou.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) chegou a publicar uma nota crítica a resolução do CFM, mas depois a retirou do ar.

Segundo o portal Metrópoles, a manifestação dizia que "a resolução não atende ao propósito alegado de ‘proteção à vida’. Ao contrário, amplia vulnerabilidades já existentes e expõe justamente as mulheres mais carentes e mais necessitadas do apoio e da assistência médica".

Procurada pela BBC News Brasil, a federação não explicou o motivo de ter tirado a nota do seu site. Solicitada a se manifestar para a reportagem, respondeu que "não é competência da Febrasgo manifestar-se sobre ou julgar o posicionamento de qualquer entidade médica".

O conselheiro Rafael Câmara minimizou as críticas de outras entidades ao CFM.

"Só existe uma instituição no Brasil que tem legitimidade para falar pelo 600 mil médicos do país: é o Conselho Federal de Medicina. Nós fomos eleitos para representar os médicos. Eu, por exemplo, represento os 80.000 médicos do Rio de Janeiro", disse.

Ele também respondeu às críticas sobre a atuação do CFM na pandemia. Segundo Câmara, o conselho sempre se colocou a favor da vacinação.

Ele também disse que a instituição não se posicionou a favor de medicamentos ineficazes contra a covid, mas defendeu a liberdade de atuação médica.

"O parecer 04 (de 2020) simplesmente dizia que o médico poderia fazer uso da autonomia médica para prescrever o que achasse correto", afirmou.

Segundo o próprio CFM, esse parecer, de abril de 2020, "estabelece critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de covid-19".

O documento dizia que não havia comprovação sobre a eficácia das substâncias, mas que ela poderia ser prescrita, após o consentimento do paciente, com os devidos esclarecimentos sobre a falta de comprovação científica e eventuais efeitos colaterais.

Além disso, estabelecia que, "diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19".

Para Rosana Onocko, da Abrasco, o CFM fez uma defesa incorreta da autonomia médica, alinhado com o discurso do então presidente Bolsonaro.

"O bom médico é obrigado a proceder de acordo com as evidências científicas. Então, quando o CFM torna suprema a opinião do médico, quer dizer que a liberdade do médico está por cima das evidências científicas acumulada no planeta Terra? Isso não é possível", criticou.

Leia mais: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/palavra-do-pcdobcontra-o-pl-do-estupro.html

Humor de resistência: Miguel Paiva

 

Miguel Paiva

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Sionismo decadente

O colapso do sionismo e de Israel

Divisão interna. Crise econômica. Isolamento internacional. Declínio militar. Estão se desfazendo as condições que tornaram possível um Estado judeu e colonialista na Palestina. Há saída positiva? Depende acima de tudo dos hoje colonizados
Ilan Pappé, em Sidecar da New Left Review | Tradução: Antonio Martins/Outras Palavras


 

O ataque do Hamas em 7 de outubro pode ser comparado a um terremoto que atinge um prédio antigo. As rachaduras já estavam começando a aparecer, mas agora são visíveis em suas fundações. Mais de 120 anos desde sua criação, será que o projeto sionista na Palestina – a ideia de impor um Estado judeu em um país árabe, muçulmano e do Oriente Médio – está enfrentando a perspectiva de colapso? Historicamente, uma infinidade de fatores pode fazer um Estado capotar. Pode resultar de ataques constantes por países vizinhos ou de uma guerra civil crônica. Pode seguir-se ao colapso das instituições públicas, que se tornam incapazes de oferecer serviços aos cidadãos. Muitas vezes, começa como um processo lento de desintegração que ganha impulso e então, em um curto período de tempo, derruba estruturas que antes pareciam sólidas e firmes.

A dificuldade está em identificar os primeiros indicadores. Aqui, argumentarei que estes são mais claros do que nunca no caso de Israel. Estamos testemunhando um processo histórico – ou, mais precisamente, os seus inícios – que provavelmente culminará na queda do sionismo. E, se meu diagnóstico estiver correto, estamos entrando em uma conjuntura particularmente perigosa. Pois, uma vez que Israel perceba a magnitude da crise, desencadeará uma força feroz e irrestrita para tentar contê-la, como fez o regime de apartheid da África do Sul em seus últimos dias.
 

1.

O primeiro indicador é a fragmentação da sociedade judaica israelense. Atualmente, ela é composta por dois campos rivais que não conseguem encontrar um terreno comum. A divisão decorre das anomalias de definir o judaísmo como nacionalismo. A identidade judaica em Israel, que parecia pouco mais do que um assunto de debate teórico entre facções religiosas e seculares, agora se tornou centro uma luta pelo caráter da esfera pública e do próprio Estado. Esta luta está sendo travada não apenas na mídia, mas também nas ruas.

Um campo pode ser denominado “Estado de Israel”. Ele é composto por judeus europeus mais seculares, liberais e em sua maioria mas não exclusivamente, de classe média e seus descendentes, que foram fundamentais na criação do Estado em 1948 e mantiveram-se hegemônicos dentro dele até o final do século passado. Não se engane: a defesa dos “valores democráticos liberais” não afeta seu compromisso com o sistema de apartheid que é imposto, de várias maneiras, a todos os palestinos que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Seu anseio essencial é que os cidadãos judeus vivam em uma sociedade democrática e pluralista, da qual os árabes estão excluídos.

O outro campo é o “Estado da Judeia”, que se desenvolveu entre os colonos da Cisjordânia ocupada. Ele desfruta de níveis crescentes de apoio dentro do país e constitui a base eleitoral que garantiu a vitória de Netanyahu nas eleições de novembro de 2022. Sua influência nas camadas superiores do exército e dos serviços de segurança israelenses está crescendo exponencialmente. O Estado da Judeia quer que Israel se torne uma teocracia que se estenda por toda a Palestina histórica. Para conseguir isso, está determinado a reduzir o número de palestinos ao mínimo, e está contemplando a construção de um Terceiro Templo no lugar da Mesquita Al-Aqsa. Seus membros acreditam que isso lhes permitirá renovar a era de ouro dos Reinos Bíblicos. Para eles, os judeus seculares são tão heréticos quanto os palestinos, se recusarem se juntar a este empreendimento.

Os dois campos começaram a se chocar violentamente antes de 7 de outubro. Nas primeiras semanas após o ataque, eles pareciam colocar suas diferenças de lado diante de um inimigo comum. Mas foi uma ilusão. A luta nas ruas reacendeu-se, e é difícil ver o que poderia possibilitar a reconciliação. O resultado mais provável já está se desenrolando diante de nossos olhos. Mais de meio milhão de israelenses, integrantes do Estado de Israel, deixaram o país desde outubro, uma indicação de que o país está sendo engolido pelo Estado da Judeia. Este é um projeto político que o mundo árabe, e talvez até o mundo em geral, não tolerará a longo prazo.

2.

O segundo indicador é a crise econômica de Israel. A classe política não parece ter nenhum plano para equilibrar as finanças públicas em meio a conflitos armados perpétuos, exceto tornar-se cada vez mais dependente da ajuda financeira americana. No último trimestre do ano passado, a economia caiu quase 20%; desde então, a recuperação tem sido frágil. A promessa de Washington de 14 bilhões de dólares provavelmente não reverterá isso. Pelo contrário: o fardo econômico só piorará se Israel seguir adiante com sua intenção de ir à guerra com o Hezbollah, aumentando a atividade militar na Cisjordânia, em um momento em que alguns países – incluindo a Turquia e a Colômbia – começaram a aplicar sanções econômicas.
 

A crise é ainda mais agravada pela incompetência do ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que constantemente canaliza dinheiro para assentamentos judeus na Cisjordânia, mas parece incapaz de executar suas funções de outra forma. O conflito entre o Estado de Israel e o Estado da Judeia, junto com os eventos de 7 de outubro, está fazendo com que parte da elite econômica e financeira mova seu capital para fora do Estado. Aqueles que estão considerando realocar seus investimentos compõem uma parte significativa dos 20% de israelenses que pagam 80% dos impostos.

3.

O terceiro indicador é o crescente isolamento internacional de Israel, que gradualmente torna-se um Estado pária. Esse processo começou antes de 7 de outubro, mas se intensificou desde o início do genocídio. Isso se reflete nas posições sem precedentes adotadas pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelo Tribunal Penal Internacional. Antes, o movimento global de solidariedade com a Palestina conseguia mobilizar pessoas para participar de iniciativas de boicote, mas não conseguia avançar na perspectiva de sanções internacionais. Na maioria dos países, o apoio a Israel permanecia inabalável entre a elite política e econômica.

Nesse contexto, as recentes decisões do TIJ e do TPI – de que Israel pode estar cometendo genocídio, de que deve parar sua ofensiva em Rafah, de que seus líderes devem ser presos por crimes de guerra – devem ser vistas como uma tentativa de atender às opiniões da sociedade civil global, ao invés de refletir a opinião das elites. As decisões dos tribunais não aliviaram os ataques brutais ao povo de Gaza e da Cisjordânia. Mas contribuíram para o crescente coro de críticas dirigidas ao Estado israelense, que vêm cada vez mais de cima para baixo, assim como de baixo para cima.

4.

O quarto indicador, interconectado com os anteriores, é a mudança radical da maré entre os jovens judeus ao redor do mundo. Após os eventos dos últimos nove meses, muitos agora parecem dispostos a abandonar sua conexão com Israel e o sionismo e participar ativamente no movimento de solidariedade com a Palestina. As comunidades judaicas, especialmente nos EUA, outrora asseguravam a Israel uma imunidade eficaz contra críticas. A perda, ou pelo menos a perda parcial, desse apoio tem grandes implicações para a posição global do país. AIPAC [maior lobby pró-Israel em atuação nos EUA] ainda pode contar com os cristãos sionistas para fornecer assistência e fortalecer sua base de membros, mas não será a mesma organização formidável sem uma significativa base judaica. O poder do lobby está se erodindo.

5.

O quinto indicador é a fraqueza do exército israelense. Não há dúvida de que as Forças de Defesa de Israel (IDF) continuam sendo uma tropa poderosa com armamentos de ponta à sua disposição. No entanto, suas limitações foram expostas em 7 de outubro. Muitos israelenses sentem que o exército teve muita sorte, pois a situação poderia ter sido muito pior se o Hezbollah tivesse se promovido um ataque coordenado. Desde então, Israel mostrou que é desesperadamente dependente de uma coalizão regional, liderada pelos EUA, para se defender contra o Irã, cujo ataque de advertência em abril viu o deslocamento de cerca de 170 drones, além de mísseis balísticos e guiados. Mais do que nunca, o projeto sionista depende da entrega rápida de grandes quantidades de suprimentos dos norte-americanos, sem os quais não poderia nem mesmo lutar contra um pequeno exército guerrilheiro no sul.

Há agora uma percepção generalizada, entre a população judaica, do despreparo e incapacidade de Israel para se defender. Isso levou a uma grande pressão para acabar com a isenção de serviço militar para os judeus ultraortodoxos – em vigor desde 1948 – e começar a recrutá-los em milhares. Isso dificilmente fará muita diferença no campo de batalha, mas reflete a escala de pessimismo sobre o exército – que, por sua vez, aprofundou as divisões políticas dentro de Israel.

6.

O sexto e último indicador é a renovação de energia entre a geração mais jovem de palestinos. Ela é muito mais unida, organicamente conectada e clara sobre suas perspectivas do que a elite política do país. Dado que a população de Gaza e da Cisjordânia está entre as mais jovens do mundo, essa nova geração terá uma imensa influência sobre o curso da luta de libertação. As discussões em curso entre os grupos de jovens palestinos mostram que estão preocupados em estabelecer uma organização genuinamente democrática – seja uma OLP renovada ou uma entidade inteiramente nova –, que buscará uma visão de emancipação em antítese à campanha da Autoridade Palestina por reconhecimento como Estado. Estes jovens parecem preferir uma solução de um Estado, em vez de um modelo de dois Estados desacreditado.

Será que eles serão capazes de construir uma resposta eficaz ao declínio do sionismo? Esta é uma pergunta difícil de responder. O colapso de um projeto de Estado nem sempre é seguido por uma alternativa mais brilhante. Em outras partes do Oriente Médio – na Síria, Iêmen e Líbia – vimos como os resultados podem ser sangrentos e prolongados. Neste caso, seria uma questão de descolonização, e o século passado mostrou que as realidades pós-coloniais nem sempre melhoram a condição colonial. Apenas a agência dos palestinos pode nos mover na direção certa. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, uma fusão explosiva desses indicadores resultará na destruição do projeto sionista na Palestina. Quando isso acontecer, devemos esperar que um robusto movimento de libertação seja capaz de preencher o vazio.

Por mais de 56 anos, o que foi denominado de “processo de paz” – um processo que não levou a lugar nenhum – foi, na verdade, uma série de iniciativas americano-israelenses às quais os palestinos foram convidados a reagir. Hoje, a “paz” deve ser substituída pela descolonização, e os palestinos devem ser capazes de articular sua visão para a região, com os israelenses sendo convidados a reagir. Isso marcaria a primeira vez, pelo menos em muitas décadas, em que o movimento palestino tomaria a liderança na apresentação de suas propostas para uma Palestina pós-colonial e não sionista (qualquer que seja o nome da nova entidade). Ao fazê-lo, os palestinos provavelmente olharão para a Europa (talvez para os cantões suíços ou o modelo belga) ou, mais apropriadamente, para as antigas estruturas do Mediterrâneo oriental, onde grupos religiosos secularizados se transformaram gradualmente em grupos etnoculturais que viviam lado a lado no mesmo território.

Quer as pessoas acolham a ideia ou a temam, o colapso de Israel tornou-se previsível. Esta possibilidade deve informar o diálogo de longo prazo sobre o futuro da região. Entrará na agenda quando as pessoas perceberem que a tentativa secular, liderada pela Grã-Bretanha e depois pelos EUA, de impor um Estado judeu em um país árabe está lentamente chegando ao fim. Foi suficientemente bem-sucedida para criar uma sociedade de milhões de colonos, muitos deles agora de segunda e terceira geração. Mas sua presença ainda depende, como dependia quando chegaram, de sua capacidade de impor violentamente sua vontade sobre milhões, dos povos originários, que nunca desistiram de sua luta por autodeterminação e liberdade em sua terra natal. Nas próximas décadas, os colonizadores terão de aceitar esta abordagem e demonstrar sua disposição de viver como cidadãos iguais numa Palestina libertada e descolonizada.


Humor de resistência: Céllus

 

Céllus

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Nova aliança política na França

Eleições na França: O que propõe a Nova Frente Popular?

Esquerda forja ampla aliança para conter a ultradireita. Com chance de virar o pleito, promete estreita colaboração com movimentos sociais, aumento do salário mínimo, investimentos em serviços públicos e revogação da reforma de aposentadoria de Macron
Harrison Stetler, na Jacobin/Outras Palavras


A Nouveau Front Populaire (Nova Frente Popular) foi oficialmente criada na França. Na noite de quinta-feira, as quatro principais forças de esquerda da França finalizaram uma ampla aliança com o objetivo de derrotar o Rassemblement National de Marine Le Pen nas próximas eleições antecipadas e lançar as bases para um governo diferente.

A France Insoumise (França Insubmissa), o Parti Socialiste (Partido Socialista), o Parti Communiste (Partido Comunista) e Les Écologistes (Os Ecologistas) formarão um bloco comum de candidatos em todas as 577 circunscrições da França para o voto do primeiro turno, que será realizado em 30 de junho. As divisões persistentes da esquerda impediram um acordo semelhante nas eleições europeias de 9 de junho, onde a lista do Rassemblement National de Jordan Bardella venceu com uma vantagem de dois dígitos sobre qualquer um de seus rivais. A vitória histórica da extrema direita levou o presidente Emmanuel Macron a anunciar a surpreendente dissolução da Assembleia Nacional no domingo à noite. 

Em 14 de junho, os líderes dos partidos de esquerda se reuniram em um centro de conferências próximo à Assembleia Nacional para detalhar mais profundamente o “contrato legislativo” de 150 medidas que compõem a plataforma política da aliança. “Vamos governar para mudar a vida das pessoas”, disse a presidente do Écologistes, Marine Tondelier, enquanto ela e o restante da liderança da aliança de esquerda se alternavam no microfone. Eles delinearam os principais eixos de um programa de governo que inclui um aumento do salário mínimo, investimentos em serviços públicos, revogação da reforma de aposentadoria de Macron de 2023, restauração dos impostos sobre as fortunas mais ricas e avanço em direção ao “planejamento ecológico”.

Com a iminente possibilidade de um governo de extrema direita, o Nouveau Front Populaire é mais do que apenas um pacto de sobrevivência entre partidos. Seus líderes prometem trabalhar em estreita colaboração com movimentos sociais e associações para construir uma coalizão duradoura contra a extrema direita. Após as declarações dos principais líderes dos partidos, um sindicalista da Confédération Générale du Travail (“Confederação Geral do Trabalho – CGT) de uma fábrica de automóveis Stellantis recentemente fechada nos subúrbios de Paris subiu ao pódio para oferecer seu “total apoio” à aliança. Ele foi seguido pelo diretor da Greenpeace França, que elogiou o programa da Frente Popular como “uma resposta ao desafio de transformar a sociedade” — e se comprometeu a cobrar responsabilidades.

Após a NUPES

Os frequentemente tumultuados partidos de esquerda da França tiveram que superar muitos obstáculos para alcançar este acordo. O Nouveau Front Populaire é em grande parte um ressurgimento da aliança Nouveau Union Populaire Écologique et Sociale (Nova União Popular Ecológica e Social – NUPES), formada antes das eleições legislativas de junho de 2022, que negaram a Macron uma maioria absoluta na Assembleia Nacional. No entanto, este pacto sempre instável definitivamente se desfez após os ataques liderados pelo Hamas em 7 de outubro e a invasão israelense da Faixa de Gaza. O fato de que essas forças conseguiram se reunir em menos de uma semana depois de competirem entre si nas eleições europeias pegou muitos de surpresa — provavelmente até mesmo Macron, cuja convocação para eleições antecipadas foi cronometrada para explorar uma esquerda francesa dividida.

As eleições da União Europeia (UE) de domingo ameaçaram inflamar ainda mais o confronto entre o Parti Socialiste de centro-esquerda e a França Insoumise, que era o partido dominante na aliança NUPES e a maior força de esquerda no parlamento que estava se encerrando. Um Parti Socialiste revitalizado aguardava ansiosamente para apontar seu relativo sucesso na votação do último domingo (subindo de 6 para 14 por cento) como justificação para marginalizar a França Insoumise (que obteve 10 por cento — menos do que em 2022, embora mais do que na votação anterior das eleições europeias de 2019). Houve um novo “equilíbrio de poder”, disse Raphaël Glucksmann, o principal candidato do Parti Socialiste nas eleições europeias, em uma acalorada entrevista televisiva na noite de segunda-feira, exatamente quando as lideranças de esquerda estavam se reunindo para esboçar o quadro inicial de um pacto.

As negociações da aliança foram brevemente suspensas na manhã de quinta-feira, principalmente devido à divisão das circunscrições parlamentares, mas também por disputas sobre os elementos substantivos do programa da aliança. Na votação do primeiro turno em 30 de junho, os candidatos da France Insoumise concorrerão em 229 cadeiras, seguidos por 175 candidaturas do Parti Socialiste, 92 dos Écologistes e 50 do Parti Communiste. Esta distribuição reflete um leve afastamento da France Insoumise, principalmente em favor do Parti Socialiste.

Outros pontos de tensão incluíram a referência do programa ao Hamas como uma organização “terrorista” e a guerra na Ucrânia. A resposta da France Insoumise ao dia 7 de outubro, que o partido se recusou a classificar como um ataque terrorista, foi o gatilho imediato para o abandono da aliança NUPES pelo Parti Socialiste no outono passado.

Mas essas divisões simplesmente mascararam um fato óbvio: sem unidade, os partidos de esquerda da França não teriam chance nessas eleições antecipadas, aumentando muito as chances de vitória do Rassemblement National. Em Paris e outras cidades, milhares de pessoas realizaram comícios ao longo de várias noites nesta semana exigindo a unidade da esquerda. No sábado, 15 de junho, centenas de milhares de pessoas são esperadas para novamente irem às ruas no primeiro dia de ação nacional contra o Rassemblement National. E agora eles têm um programa político para se unir.

Primeiros dias

Embora contenha algumas mudanças em relação à plataforma NUPES de 2022, o ‘contrato legislativo’ proposto pelo Nouveau Front Populaire apresenta um amplo programa de reformas democráticas. O plano da esquerda está dividido em três fases. Os primeiros quinze dias do governo de esquerda são destinados a uma série de medidas ‘emergenciais’, incluindo um aumento imediato do salário mínimo líquido para 1600 euros por mês, congelamento de preços em itens essenciais e contas de energia, investimentos em habitação social e rejeição das regras de déficit da UE — embora sem reafirmar o antigo mantra da France Insoumise de ‘desobediência’ aos tratados da UE.

Nos próximos cem dias, seriam lançadas as bases para propostas de ‘mudanças de curso’ por meio de cinco pacotes legislativos abrangendo poder de compra, educação, sistema de saúde, ‘planejamento ecológico’ e ‘abolição dos privilégios dos bilionários’. Nos meses seguintes — intitulados ‘transformações’ —, está previsto o reforço sustentável dos serviços públicos, o ‘direito à habitação’, a reindustrialização verde, reformas na polícia e no sistema de justiça criminal, e mudanças constitucionais que levariam à fundação de uma ‘Sexta República’ para substituir a atual presidência quase monárquica.

O ‘contrato legislativo’ da esquerda marcaria uma ruptura clara com o lema dos anos Macron: ataques às proteções do estado de bem-estar e à erosão dos serviços públicos em favor da transferência do poder econômico para os mais ricos. Um novo governo de esquerda cancelaria o aperto do sistema de seguro-desemprego de Macron, cuja última edição está programada para entrar em vigor neste verão. O plano prevê aumentos salariais para trabalhadores do setor público e refeições gratuitas nas cantinas escolares a partir de setembro. Nos primeiros quinze dias, o aumento da idade de aposentadoria de sessenta e dois para sessenta e quatro anos, implementado por Macron em 2022, seria abolido. No entanto, o programa parece ter recuado na promessa da France Insoumise de retornar a idade de aposentadoria para sessenta anos.

Desfazendo os benefícios da era Macron para os ricos e o grande capital, o plano da esquerda oferece restaurar vários regimes fiscais anteriores. A aliança está pedindo a reintrodução do imposto sobre grandes fortunas, que foi substituído no início da presidência de Macron por um imposto menor e menos progressivo sobre a riqueza imobiliária. Da mesma forma, busca a restauração de um ‘imposto de saída’ cancelado sobre a retirada de riquezas do país, assim como o reforço de um novo imposto único sobre ganhos de capital. Com corporações como a Total, uma das maiores empresas de petróleo da França, acumulando lucros extraordinários desde a crise energética pós-pandemia, a aliança também está pedindo um novo imposto sobre ‘superlucros’

Se eleita, a Nouveau Front Populaire irá promover a maior mudança de política por uma potência ocidental no conflito Israel-Palestina desde 7 de outubro. O acordo prevê um cessar-fogo imediato na guerra de Israel em Gaza, juntamente com a libertação de todos os reféns israelenses na Faixa de Gaza e prisioneiros políticos palestinos detidos em prisões israelenses. Para pressionar Israel, pede um embargo de armas e a suspensão do acordo de associação da UE com o estado de Israel. Enquanto define os ataques de 7 de outubro do Hamas como ‘terroristas’, um governo de esquerda da aliança buscaria sanções contra o governo de Benjamin Netanyahu e trabalharia para fazer cumprir possíveis mandados do Tribunal Penal Internacional contra autoridades israelenses, incluindo o atual chefe de governo de Israel. Trabalhando dentro do quadro de uma solução de dois estados para o conflito Israel-Palestina, a aliança de esquerda pede o ‘reconhecimento imediato’ da soberania do Estado Palestino.

Também em política internacional, o acordo da aliança afirma que ‘apoia incondicionalmente a soberania e a liberdade do povo ucraniano, bem como a integridade de suas fronteiras’. Ela buscará mais entregas de armas, o cancelamento da dívida externa da Ucrânia e a apreensão de ativos na França pertencentes a oligarcas russos.

Histórias de terror

Nas próximas semanas, é certo que a Nouveau Front Populaire e seu ‘contrato legislativo’ serão alvo de inúmeras críticas. Os aliados de Macron e comentaristas irão contar histórias de horror sobre uma saída, de fato, da França da União Europeia ou uma iminente crise financeira. Em relação ao conflito Israel-Palestina, outros irão alegar que o antissemitismo está prestes a se tornar política oficial do Estado. Centristas lamentarão uma aliança de esquerda ainda sob o jugo da France Insoumise e construirão argumentos morais elaborados sobre por que votar nela é tão perigoso quanto votar em Le Pen.

De fato, não é inconcebível que a Frente Popular possa emergir como o principal concorrente ao Rassemblement National. As pesquisas sugerem que isso é plausível ou até provável. Mas mais do que uma simples resposta a Le Pen, a Frente Popular está apresentando um plano detalhado e abrangente para um tipo de governo diferente.

Harrison Stetler é um jornalista freelance e professor baseado em Paris.

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