30 abril 2014

Dor

Ignacio Monge
A quarta-feira é de Cecília Meireles: Deixai que cantem as fontes,/ao menos, sobre esta pedra/que põem no meu coração." 

Ameaça à integração

Mercosul, sob fogo cerrado

Pedro Paulo Zahluth Bastos, no portal da Fundação Maurício Grabois

O Mercosul foi posto em questão nas últimas semanas. A demora da Argentina em aproximar-se da oferta de liberalização de 90% do comércio do bloco com a União Europeia levou alguns políticos e empresários a defenderem transformar a união aduaneira em uma área de livre comércio. Isso significaria a abolição da Tarifa Externa Comum (TEC) e a liberdade para que cada membro realize acordos comerciais isoladamente, eliminando preferências dentro do bloco.

A proposta significaria retomar o projeto do governo Collor, que via o Mercosul apenas como o estágio inicial de um programa de liberalização mais amplo. Vários dos defensores atuais do fim do Mercosul apoiaram a adesão à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a aceitação das exigências dos países desenvolvidos, na OMC ou em acordos bilaterais, para a constituição de normas liberais que constrangessem a ação estatal em programas de compras governamentais, subsídios setoriais, políticas industriais, controle de capitais e proteção comercial. Esses tratados internacionais blindariam institucionalmente o neoliberalismo contra governos que insistissem em influenciar a alocação de recursos contra o livre mercado. No discurso liberal contra o Mercosul, a convivência do bloco com políticas desenvolvimentistas e a administração do comércio regional é vista como uma anomalia: resultado de “ideologias partidárias”, como se o neoliberalismo se identificasse não a partidos mas ao próprio interesse nacional permanente ou, pior, a leis da natureza.

A defesa incondicional da abertura comercial e da celebração de tratados liberais que normatizem as políticas de Estado recorreu ultimamente ao argumento que o tecido industrial brasileiro vem perdendo competividade por ser muito protegido da competição internacional e, por isso, não é capaz de se integrar a cadeias globais de produção. Esse argumento também não é novo, requentando a esperança que presidiu a liberalização unilateral na década de 1990: a ampliação da concorrência forçaria as empresas sobreviventes a incorporar tecnologias e eliminar “gorduras”, ganhando em eficiência e escala ao se especializarem em certos “nichos” das cadeias globais.

O argumento é anacrônico e nada aprendeu com a experiência de países asiáticos – a China é apenas o último - que se integraram virtuosamente a cadeias globais sem abdicarem de políticas industriais, tecnológicas e cambiais muito ativas. Tampouco aprendeu com a própria experiência brasileira. Na década de 1990, o resultado da abertura abrupta foi a incorporação rápida de tecnologias importadas e o corte de gastos em geração autônoma de tecnologias e capacitação própria de inovar. Desde então, a indústria brasileira tornou-se fortemente integrada às cadeias globais de fornecimento de insumos e bens de capital. Uma nova rodada de integração ocorreu depois da crise de 2008, quando o acirramento da concorrência internacional e a apreciação cambial do Real aumentaram o coeficiente importado nas cadeias de produção, sem levar, contudo, a uma elevação comparável das exportações industriais. Não há qualquer base histórica para imaginar que dobrar a aposta na abertura produzirá resultados opostos ao já verificados, tendendo sim a aprofundá-los.

A crítica liberal ao Mercosul segue afirmando que o Brasil é grande demais para o bloco e, como global player, deveria se integrar a outros blocos. O critério comercial não é o mais adequado para avaliar a importância do Mercosul, uma vez que a proximidade cria oportunidades mútuas no campo de infraestrutura de transporte, energia e comunicações, cooperação política, cultural e de segurança, e posicionamento em bloco diante de agendas contrárias aos países desenvolvidos, como em patentes, comércio agrícola e peso decisório nas organizações multilaterais. De todo modo, em seus próprios termos, o anacronismo da crítica liberal ao Mercosul está em que o bloco foi exatamente a região onde o saldo comercial menos caiu desde 2008.

Em uma perspectiva de maior prazo, é inegável que o Mercosul e a América do Sul foram as áreas em que as exportações brasileiras de bens de maior valor agregado se consolidaram. É verdade que essas exportações estão sofrendo com a conjuntura de crise de parceiros regionais (Argentina e Venezuela) e com a ampliação da concorrência provocada pela crise global, à medida que os países mais afetados por ela buscam recuperar-se tomando mercados externos com recurso à guerra cambial e subsídios. A piora do resultado comercial brasileiro no continente é muito menor, porém, do que no comércio com as regiões desenvolvidas em crise, como EUA e União Europeia.

Isso ocorre porque as regiões desenvolvidas são sede das matrizes controladoras de filiais instaladas no Mercosul e porque o comércio entre elas se aproxima de uma via de mão única: as filiais importam insumos e bens de capital desde a rede de fornecedores controlados pela matriz para atender o mercado regional com operações de montagem industrial. O comércio entre empresas nacionais e filiais que desenvolvem cadeias produtivas regionais protegidas pelas preferências do Mercosul, por sua vez, pode evoluir para um tipo de complementaridade menos desigual através de ganhos mútuos de escala, como ocorre no principal ramo industrial da região, a indústria automobilística. Prescindir do Mercosul implicaria diminuir a atratividade do investimento na região e ampliar seu perfil importador de produtos industriais de maior valor agregado. Se for esse o tipo de complementariedade comercial desejado pelos liberais brasileiros, devem propor rebatizar a FIESP de Federação das Importadoras do Estado de São Paulo.

Essa postura opõe-se radicalmente aos atuais governos de Brasil e Argentina, que buscam preservar e adensar cadeias industriais ameaçadas pelo acirramento da concorrência global. Isso provoca insatisfações nos países sede das matrizes: a União Europeia por exemplo fez consulta sobre a adequação do programa Inovar-Auto às regras da Organização Mundial do Comércio. Este programa oferece incentivos fiscais para montadoras que melhorem a eficiência energética dos automóveis e aumentem o valor agregado substituindo importações. Em meio à crise, qualquer iniciativa do governo brasileiro que influencie o comércio intra-firma tende a gerar insatisfações nas sedes das matrizes. Contudo, também deve provocar reclamações argentinas se prejudicar a complementaridade de cadeias produtivas regionais.

O Brasil não quer perder o acesso privilegiado ao mercado argentino (e vice-versa), mas pressiona a Argentina a aceitar reduções da Tarifa Externa Comum necessárias para a conclusão de acordos de livre-comércio do Mercosul com outros países e blocos. A importância que cada país confere ao acesso privilegiado ao mercado do outro foi reafirmada através da assinatura de um memorando de entendimento, em 28 de março, visando a criação de um mecanismo de seguro contra variações cambiais. Na prática, isso deve envolver sobretudo financiamento brasileiro para conferir liquidez ao comércio diante da escassez de reservas cambiais e financiamento externo que afetam a Argentina. Duas semanas depois, o governo argentino aproximou-se da oferta brasileira de liberalização de 90% do comércio do Mercosul com a União Europeia, com a perspectiva de alcançá-la no final de abril. Até então, cogitava-se que Brasil, Uruguai e Paraguai isolariam a Argentina fazendo uma proposta conjunta diferente dela. Aparentemente isso levou-a a ceder.

Não se sabe o que o governo e o empresariado brasileiro cederiam para fechar um acordo entre Mercosul e União Europeia, mas se sabe o que a União Europeia não cederá. Tendo rejeitado a liberação agrícola na OMC, é improvável que a União Europeia prejudique a agricultura em um acordo com o Mercosul. Não é este tipo de complementariedade que a Europa anseia com o Mercosul.

* Professor Associado do Instituto de Economia na Unicamp

29 abril 2014

Reinvenção

A terça-feira é de Cora Coralina: "Recria tua vida, sempre, sempre./
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça."

28 abril 2014

Mídia deturpa palavras de Lula

Jornais omitem real contexto da fala de Lula sobre condenados do mensalão 

Cíntia Alves

Jornal GGN – A entrevista que Luiz Inácio Lula da Silva concedeu à RTP (Rádio e Televisão de Portugal) repercutiu nos portais noticiosos e nas páginas dos jornais impressos brasileiros nesta segunda-feira (28). O Estado de S. Paulo e Folha decidiram dar destaque à avaliação do petista em relação à Ação Penal 470, mais conhecida como mensalão. Para ele, o caso, no futuro, será recontado, pois “o julgamento teve 80% de decisão política e 20%, jurídica”. “Esse massacre visava destruir o PT, mas não conseguiu”, disse, de fato.

Os jornais também destacaram o trecho em que supostamente Lula teria dito que os presos do mensalão – mais especificamente os petistas José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno – não são “gente de minha confiança”. A Veja, por sua vez, sugeriu em coluna que Lula insinuou não conhecer os três personagens.

O contexto real das respostas dadas a Cristana Esteves pode ser confirmado na entrevista original (clique aqui para assistir na íntegra). A jornalista portuguesa vinha questionando Lula sobre os motivos pelos quais ele decidiu não se candidatar para as eleições presidenciais deste ano, tentando entender como um "político tão popular" abre mão dessa disputa.

A jornalista argumentou, inclusive, que a presidente Dilma Rousseff (PT) está a frente dos demais candidatos – Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) – nas pesquisas de intenção de voto, mas que Lula estaria mais a frente ainda se aceitasse o desafio de retornar ao comando do Palácio do Planalto. Ela indagou, então, se teria o ônus político do mensalão arranhado a imagem de Lula.

Nessa hora, o presidente de honra do PT descartou a possibilidade de candidatura e explicou que, para ele, o que precisa ser dito sobre mensalão não têm a ver com indicações que ele fez ou deixou de fazer enquanto presidente da República. Daí o "não se trata de (ser) gente de minha confiança (ou não)". Mas se é para falar em indicações, aponta Lula, que fique registrado que ele não indicou apenas os "companheiros de PT" para cargos públicos de peso, mas também os ministros do Supremo Tribunal Federal que julgaram o caso. "Cada um cumpre o seu papel", frisou.

Reproduzindo o trecho:

Cristina: Ainda se candidatar ou não?

Lula: Em política, a gente nunca pode dizer não. Mas eu já cumpri minha tarefa no Brasil. Eu sonhava em ser presidente porque eu queria provar que eu tinha mais competência para governar o país do que a elite brasileira. E provei.

Cristina: E Dilma está conseguindo provar [o mesmo]?

Lula: Dilma é uma mulher de extrema competência. É a primeira vez que uma mulher governa um país do tamanho do Brasil...

Cristina: Mas está abaixo de você nas sondagens. Estamos a cinco meses das eleições presidenciais. Até que ponto isso pode ser penalizador?

Lula: Ela vai ganhar as eleições.

Cristina: As sondagens dizem que sim, mas Lula da Silva estaria bem à frente...

Lula: Mas Lula da Silva não vai ser candidato, então não conta.

Cristina: Mas o que é certo é que sua popularidade acabou por não ser poliscada (sic) em situações em que ficou seu partido foi envolvido no caso do mensalão e, agora, no caso da Petrobras. Todas essas situações não beliscaram a sua popularidade?

Lula: Tem uma coisa que as pessoas precisam compreender: o povo é mais esperto do que algumas pessoas imaginam. O tempo vai se encarregar de provar que no mensalão você teve praticamente 80% de decisão política e 20% de decisão jurídica.

Cristina: Mas os homens de sua confiança estavam envolvidos...

Lula: Não, não, não se trata de gente da minha confiança. Tem companheiro do PT preso. Eu indiquei seis pessoas para a Suprema Corte, que julgaram, e acho que cada um cumpre com o seu papel. O que eu acho é que não houve mensalão, mas não vou ficar discutindo decisões da Suprema Corte. Eu só acho que essa história será recontada. É só uma questão de tempo para se saber o que aconteceu na verdade. Acho que tem muita coisa para se entender nesse processo, porque esse processo foi um massacre que visava destruir o PT. E não conseguiram. O que é importante...

Cristina: ...É que para muita gente, poder virou sinônimo de corrupção. É isso o que está acontecendo?

Lula: O que é importante é que quando uma pessoa é honesta e decente, as pessoas enxergam nos olhos. Não adianta dizer que o Lula pratica qualquer ato ilícito porque o povo me conhece. Eu sou filho...

Cristina: ...E o povo parece te querer de volta para resolver os problemas...

Lula: ...Eu sou filho de pai e mãe analfabetos. O único patrimônio que minha mãe me deixou foi a conquista de andar com a cabeça erguida. Eu sei o valor de andar com a cabeça erguida. Eu sofri para chegar lá. Não é uma denúncia ou um adversário que vai fazer o Lula tremer ou ceder.

Cristina: Então está fora de questão o senhor voltar à vida política?

Lula: Eu vou ser cabo eleitoral da Dilma.

Uma dúvida que procede

As perguntas que não são feitas nas pesquisas eleitorais

Wanderley Guilherme dos Santos, na Carta Maior

Rompendo o tédio da rotina dos questionários elaborados pelos institutos de pesquisa, formulei seis perguntas cujos resultados me interessariam conhecer.

Pesquisas de opinião são orientadas, claro, e as eleitorais não constituem exceção. Se alguém deseja saber quem prefere maçã ou banana deve perguntar justamente isso, sem confundir o pesquisado com as opções de abacaxis e mangas. Muitas pesquisas eleitorais desorientam os entrevistados ao introduzir opções que nada mais são do que abacaxis e mangas, nomes de candidatos sabidamente estéreis no contexto eleitoral efetivo. Obtêm-se antes de tudo uma idéia da dispersão aleatória da preferência eleitoral, não as escolhas sólidas a aparecer com perguntas focadas no que está, de fato, em jogo. Mas nada impede que se investigue se o freguês é mais afeito a frutas ácidas ou cremosas – um tanto mais geral e inespecífica do que a pergunta anterior.

Com maior ou menor generalidade o que importa é que há um mundo de interrogações adequadas ao conjunto das frutas, todas legítimas, respeitadas modestas regras de lógica. Simples, mas esquecido quando os institutos divulgam seus resultados, aceitos com sagrada intimidação. Na verdade, os mesmos tópicos das pesquisas podem ser investigados por inquéritos variados, nada havendo de interdito no terreno do mexerico.

Em pesquisas de opinião são fundamentais a representatividade da amostra dos pesquisados, a correção dos questionários e, concluindo, a leitura dos resultados. É intuitivo que em uma comunidade onde 99% são religiosos o inquérito não pode concentrar-se no 1% restante, exceto se o pesquisador estiver interessado justamente na opinião da extrema minoria de agnósticos que ali vivem. Isto respeitado, tudo bem quanto à representatividade dos números.

Mas a leitura dos resultados pode ser marota. Jogando uma moeda para o ar centenas de vezes, o número de experimentos em que ao cair a moeda mostrará a “cara” tende a ser o mesmo número de “coroas”. Ignorando quando e porque acontece uma ou outra coisa, deduz-se que a probabilidade de dar “cara” ou “coroa” é de 50%, ou seja, metade das vezes uma, metade, a outra. Em certos convescotes essa peculiaridade é chamada de “acaso”.

Mas essa é uma probabilidade diferente da que indica o futuro do clima, por exemplo. As chances de que chova nas próximas 48 horas não é derivada diretamente de uma série de 48 horas do passado, mas das condições em que milhares de 48 horas foram chuvosas: umidade do ar, regime de ventos, formação de nuvens, etc. explicam com relativo grau de precisão (a probabilidade) as variações climáticas. O que justifica o probabilismo é o conhecimento das particularidades associadas ao aparecimento do fenômeno “chuva”, não o mero fato de sua repetição.

Pois a probabilidade derivada de uma série de pesquisas eleitorais é análoga à do jogo “cara” ou “coroa”, não à dos prognósticos atmosféricos. De onde se segue serem um tanto marotas as previsões de resultados eleitorais apoiadas em séries históricas, por mais extensas que sejam. A diferença é ontológica: uma eleição não é um jogo de “cara” ou “coroa”. A seguir, uma crítica, digamos, construtiva.

Rompendo o tédio da rotina dos questionários elaborados pelos institutos de pesquisa, formulei seis perguntas cujos resultados me interessariam conhecer. Aí vão:

1 – o Sr(a) prefere:
a) continuar com a presidenta atual (Dilma Roussef)
b) voltar ao governo do PSDB (Aécio Neves)
c) indiferente

2 – o Sr(a) votaria em alguém que:
a) defende a manutenção do emprego de quem trabalha
b) promete medidas impopulares
c) indiferente

3) – o Sr(a) apóia o controle nacional do petróleo do pré-sal?
a) sim
b) não
c) indiferente

4) - A oposição atual representa seu ideal de governo?
a) sim
b) não
c) indiferente

5) Em relação à distribuição de renda o Sr.(a) é:
a) a favor
b) contra
c) indiferente

6) Os atrasos na conclusão de aeroportos e estádios demonstram que:
a) a iniciativa privada não é confiável
b) há sempre imprevistos em grandes obras
c) indiferente

Escolhi agregar todos os votos “não sei/prefiro não responder”, brancos e nulos em uma única opção porque estou interessado somente nas escolhas claras. E indiquei o nome de dois candidatos na pergunta 1 porque este é o desenho do questionário e, conforme o manual da boa pesquisa, o entrevistado deve estar de posse das informações relevantes para responder corretamente. Naturalmente, os entrevistados com preferência por outros nomes ou por nenhum estariam representados na resposta c.

O diabo é que ninguém acredita que os questionários dos institutos são apenas uma aproximação do que os eleitores perguntam a si mesmos, na hora do vamos ver. Por isso suas pesquisas ao final de uma corrida eleitoral se tornam mais diretas e econômicas, reduzindo o percentual de erro. Ainda assim, por vezes o palpite estatístico é desastrosamente equivocado. É quando o instituto, ao contrário de tentar replicar o que pensa o eleitor, busca fazer com que o eleitor pense como ele. Não dá certo.

E assim a gente vai vivendo...

Virando a página. Sempre

Luciano Siqueira

Em breve diálogo sobre perdas, uma amiga sentencia: - O jeito é transformar a saudade no prazer das boas lembranças.

Palavras sábias, certamente. Pois ninguém pode viver de recordações amargas nem chorando o que perdeu. Da mesma forma, se a cada momento a gente enxergar o lado ruim das coisas jamais estará de bem com a vida.

Parece aquelas futilidades dos livros de auto-ajuda, mas não é. Pura dialética, isto sim. E a dialética, em bases idealistas, desde antes de Aristóteles, passando por Hegel e ganhando fundamento científico com Marx, existe como modelo teórico da vida com ela é. As contradições movem o mundo material e a sociedade humana.

E olhe que a amiga autora da frase sábia tratava de perdas afetivas, as mais difíceis de suportar.

Ora, a vida é uma sucessão de conquistas e fracassos, de expectativas realizadas ou frustradas – no trabalho profissional, na luta política, na vida privada. Em muitas dimensões. E sempre será necessário seguir adiante, amealhando vitórias e nelas se apoiando para arrostar os desafios seguintes; e colecionando derrotas como fontes de aprendizagem.

Virar a página e partir para outra é o que cabe a cada um de nós. Sempre. Até porque certos desejos ou valores ou aspirações mais íntimas têm tradução multifacética, acontecem de um jeito ou de outro. Feito o prestigiado juiz de futebol inglês que antes tentara, com relativo êxito, a carreira de jogador. Ou o fotógrafo que sonhou um dia ser pintor. Importa viver a essência dos nossos desejos, nas formas com que se apresentam.

Agora mesmo, em tempo de celebração da resistência do povo brasileiro ao regime militar instaurado há cinquenta anos, nas muitas entrevistas que concedo, a pergunta é persistente: - Você faria tudo de novo se pudesse retornar àquela época? Minha resposta, óbvia, é sim, porque me situo nas circunstâncias de então e na percepção do que eram minha consciência política, minhas motivações e minhas emoções. A vida não é em videoteipe, não se pode voltar a atrás e fazer correções. Se assim fosse, claro que não repetiria atitudes que hoje enxergo como fruto da imaturidade. Cada coisa a seu tempo – e o tempo do aprendizado é sempre, no transcorrer da vida.

O essencial é a segurança que tenho de que faria tudo de novo, que valeu a pena resistir, como vale a pena lutar até hoje, e valerá a pena lutar sempre.

O mesmo vale para o amor. Há quem se contente com a mesmice como desígnio definitivo e incontornável. E há quem aposte na reinvenção permanente e cotidiana. Prefiro a segunda alternativa.
Publicado no Jornal da Besta Fubana
Ilustração: Miró

Paraíso da usura

Há algo de podre nesse sistema financieiro

Sybelle Chagas*

Foi dada largada a mais um anúncio de lucratividade dos Bancos. O Bradesco puxou a fila, em três meses, lucrou R$ 3,4 bilhões!!! E o mais grave: esse lucro foi 18% superior que o mesmo período do ano passado. Ou seja, R$ 612 milhões a mais. Considerando que a atividade bancária não produz riqueza, só consigo pensar que esse é um gigantesco arcabouço, imposto pelo Sistema Financeiro Brasileiro, de concentração de renda.

Deixa eu começar do começo. O Plano Real foi construído sobre um populismo cambial, com a lógica neoliberal e estabelecendo um acordo com o Sistema Financeiro que, como ganhava muito com o overnight, construiu um novo modelo no qual permanecesse lucrando, agora com os títulos públicos federais.Na crise de 1999, estabeleceu-se o tripé econômico de câmbio flutuante, com livre fluxo de capitais, metas de inflação e superávit primário. Como isso fazia parte do acordo, virou dogma para as correntes econômicas majoritárias. E para esse sistema funcionar é preciso garantir a atração de capital internacional (livre fluxo de capitais) e a remuneração alta (juros altos), oferecer uma boa garantia (superávit primário) e manter a inflação sob controle (importação de produtos com o câmbio valorizado).

Não é à toa que quando sentem que qualquer desses pilares será abalado, o sistema joga pesado para mantê-lo. Foi o que aconteceu no Governo Dilma, quando a pauta para a mudança dessa situação foi aumentando. Chegamos ao patamar histórico de uma SELIC meta de 7,5%, houve uma grande investida para desvalorização do câmbio, quando US$ 1,00 chegou a R$ 2,50, e muitos incentivos para a retomada do crescimento econômico brasileiro, como o Plano Brasil Maior, o PAC 2 e alterações nos valores da energia elétrica para o Sistema Produtivo.

Mas, obviamente, o Sistema Financeiro não assistiu isso parado. Foi dado início a uma investida midiática de pressão inflacionária e recessão econômica, mesmo com os dados mostrando uma realidade diversa da propagada. Isso, somado aos efeitos da crise internacional que foram aumentando na economia brasileira, resultaram na retomada da elevação da SELIC, atualmente em 11%.

Os efeitos dessa elevação são ainda mais nocivos para o país. O custo do serviço da dívida para o Brasil chega a absurdos 44% do Orçamento da União de 2014, R$ 1,002 trilhão. Cerca de 90% dos títulos públicos estão na mão dos 6 maiores bancos brasileiros. Não é à toa que os lucros são recordes, além de explorar os clientes com spreads injustificáveis, os bancos sugam quase metade da arrecadação tributária.

Outro problema gravíssimo é que a taxa SELIC alta tem reflexo direto na taxa de investimento brasileira e no aumento dos preços, em decorrência do efeito do custo de oportunidade do dinheiro para o setor produtivo. Afinal, quem tem dinheiro só aplicará no setor produtivo se a taxa de retorno for superior a 11%, já que, comprando título, você conseguiria o mesmo retorno sem qualquer esforço. Soma-se a isso 20 anos de câmbio valorizado, que ocasionafalta de competitividade de nossa indústria no mercado internacional.

Por isso, precisamos retomar o rumo que leva o nosso país ao desenvolvimento econômico. Com a desvalorização do câmbio, redução dos juros e aumento expressivo das taxas de investimento, aumentando a produção, e dos salários, aumentando o consumo, o que resulta num crescimento sustentável e com inflação controlada pelo aumento da oferta e da demanda, simultaneamente. E, nessa nova realidade, não cabe lucros estratosféricos concentrados em um setor, extorquindo nosso país. Para um Brasil melhor, socialmente justo e desenvolvido, precisamos de menos dinheiro para banqueiro, mais saúde, educação, esporte e cultura para o nosso povo.

Nas eleições de 2014, o Sistema Financeiro irá jogar pesado, mais uma vez, para manter e voltar a aprofundar o seu modelo de lucro, concentrando renda e extorquindo o povo. Por isso, precisamos estar atentos e não deixarmos o neoliberalismo e o retrocesso voltarem. Mais que votar em candidatos comprometidos com a mudança que queremos, pedir votos e elegê-los, garantindo a representação do interesse dos trabalhadores nos espaços de poder no Brasil. Precisamos ainda conquistarmos a quarta vitória das forças populares, com a reeleição de Dilma. Só assim poderemos avançar rumo ao que o Brasil precisa.

*Bancária, membro do Comitê Estadual do PCdoB em Pernambuco

Busca

A segunda-feira é de Carlos Drummond de Andrade: "Procuro sempre, e minha procura/ficará sendo/minha palavra."

27 abril 2014

Sistema Nacional de Cultura na pauta

Em entrevista ao blogueiro Alexandre Lucas, da cidade de Crato (CE), a deputada Luciana Santos (PCdoB-PE) fala sobre sua trajetória política, sua atuação na Câmara dos Deputados e sobre as pautas da Frente em Defesa da Cultura, da qual é presidente. E considera prioritária a a luta pela efetiva implementação do Sistema Nacional de Cultura, incluindo o debate sobre orçamento. Queremos aprovar a PEC 150 que destina 2% do orçamento para a Cultura de maneira progressiva. Leia aqui http://migre.me/iWF85 

A vida do jeito que é

O coito sem vindita

Marco Albertim, no Vermelho

Tão logo Cambeba viu o retrato do falecido marido de sua mulher na moldura, correu para o Baldo do Rio. A confusão que criou em suas inseguras conjeturas, deu azo a que se visse rodeado por senhores de engenho de feições cambiantes.

Assim, desceu a rua do Rio certo de que o barão de Bujari fora exumado inteiro de sua tumba no cemitério; com o rebenque de uso costumeiro, a sobrecasaca cinzenta coberta de poeira, e a barba senhorial do visconde de Cairu. Atrás dele, o cortejo obsequioso com o tronco estufado do major Diogo Rabelo; a barriga pomposa, escondida pela camisa de linho, do feitor Pinho Rabelo; bem como dos irmãos Adacildo e Julio. Acompanhado cada um da emplumada esposa, inda que sem o laço saliente abaixo das costas, no algodão verdoso feito uma palha de cana, em cada um dos vestidos.

Antes de dobrar à direita da ponte sobre o rio Goiana, foi cumprimentado pelo velho Cesário que, apesar de não nutrir simpatias pelos oligarcas, vestia-se com calça, paletó e colete, ao modo dos senhores da cana. Cumprimentou-o com o braço canhestro, como para distinguir com precisão quem se ocultava nas barbas brancas e encorpadas do velho Cesário. Cesário riu, mostrando os dentes escuros de nicotina. Cambeba sentou-se no banco da praça em frente ao arremedo de porto. Juntando o tumulto do juízo ao esforço de se crer palpável e sem lesões nos sentidos, espremeu os olhos para trazer de volta os corpos boiando de camponeses mortos no leito do rio, trazidos numa manhã de enchente ainda no começo do agourento mês de abril. Os camponeses, com a perplexidade nos olhos, tinham os rostos e as barrigas empapuçados, as carantonhas ameaçadoras à quentura do sol.

- Ainda perseguido pelos seus fantasmas? - ouviu a voz inquiridora de sua mulher.

Antevendo a reação revolta do marido, ela o espreitara no limiar do corredor da casa. Podia pressenti-la ou mesmo distinguir a robustez de Eulália Rabelo, sobre a cerâmica fria do piso da casa, mas, escoimado pelos espectros familiares às lembranças da matrona, desabara para buscar apoio na inhaca do rio, tão ao agrado das vítimas do senhorio do canavial.

Olhou para trás, não viu o cortejo dos Rabelo com rostos empoeirados, dando conta de uma força superior à compactação das lajes de cada tumba. A voz de Eulália Rabelo dissipara-os com a ajuda do calor cristalino do sol. Espremendo a testa, com as pálpebras quase fechadas dos olhos incréus, o professor Cambeba distinguiu na mulher a iminente descarga de revivescência, com o poder luminoso de sua mente.

- Eu não sou suficiente a você? - quis saber ele, mais para confirmar as suspeitas de necrofilia na mulher, do que para nutrir-se de um sentimento esponsal.

Sem se voltar para o rio, mesmo porque tinha a superfície esponjosa de suas águas e as fissuras das paredes do canal entranhadas no juízo, creu-se pequeno comparando a semelhança do rosto argiloso de Eulália Rabelo com as águas e as margens.

- Não me nutro só com a substância física do meu marido. Creio tanto na força da memória que, com um sopro, sou capaz de jogar para longe a poeira que cobre os anos. A vida, com o que tem de tirar e pôr, não me é cruel.

- De quem você herdou essa faculdade?

- De minha mãe. Ela morreu antes de meu pai e, mesmo assim, não saiu de sua companhia.

- Sua mãe foi enterrada e não resta mais nem o pó de sua lembrança.

- Meu pai costumava dormir mais cedo, só para desfrutar da silhueta viva de sua mulher.

Já em casa, ela parou sob a moldura com o retrato do falecido feitor. Segurou no braço do marido e disse:

- Olhe para ele. Meu marido não tem mais raiva de você.

- Seu marido?

- Sim. Não posso negar.

À noite, já deitados, ela puxou-o pelo braço. Seguiram no corredor. Na noite penumbrosa da sala, distinguiram a silhueta severa do feitor Múcio Rabelo na moldura. O coito não se deu com ríctus de vindita. Eulália Rabelo não soprou para longe a poeira dos anos, sorveu sem pressa a leveza da hora.

Apelo

O domingo é de Itamar Assunção: "Meu versejar seja/Sorriso que te visite/A brisa que te beija/E que te festeja"

26 abril 2014

Intrincadas eleições gerais de outubro

Eleições presidenciais, alianças estaduais e programa da disputa

Walter Sorrentino, no Vermelho

O quadro das pesquisas da disputa presidencial está relativamente congelado. Dilma tem vantagem, oscila mas a oposição não cresce. É pouco provável que isso se altere significativamente até junho-julho. Haverá a Copa Mundial, cujo efeito eleitoral é imponderável. A oposição está concentrada em desconstruir a imagem de Dilma no plano político, e a situação econômica tem, rigorosamente, pouca probabilidade de atingir os índices de Dilma.

Há dois movimentos menos visíveis que preparam a verdadeira disputa. Um é o quadro de alianças estaduais: a eleição presidencial tem autonomia relativa com respeito à disputa de governos estaduais, mas esta última constitui um esteio de sustentação daquela. O outro é a construção das mensagens programáticas com que se apresentarão as candidaturas.

No plano das alianças e sustentação estadual, o quadro geral ainda está com vários graus de indefinição nas composições a governadores e senadores. Mesmo assim, e sem toda precisão, o comportamento das forças é o seguinte neste momento.

O PT privilegiará reeleger seus quatro governadores, mas tem por centro elevar as bancadas de deputados e senadores. Apresenta-se até o momento com 12 candidatos próprios ao governo e apoiará 6 candidatos ao governo do PMDB, outros dois do PSB, e um apoio cada a candidatos do PTB, PROS e PP (possivelmente). Está indefinido no MA, GO, MT, RN e PB, mas em todos os casos predomina tendência a apoiar o PMDB, o que levaria o cômputo geral a 12 candidaturas próprias e 11 em apoio ao PMDB.

O PMDB, por sua vez, por seu caráter regionalizado e de federação, precisa eleger seus governadores, mas está tensionado pela estratégia do PT de fazer maioria na Câmara e força no Senado. Apresenta-se até o momento com situação mais fechada de apoio ao PT em MG e DF. Terá 18 candidaturas próprias ao governo. Vai disputar com PT abertamente em SP, RS, RJ, BA, MS, RR, AP, PI, PE e, a definir, no CE. No restante mesmo com candidaturas próprias estarão no mesmo campo. Confronta o PCdoB diretamente no MA, apoia o PSD em SC tendencialmente, e o PSB em PE e ES. É o mais favorecido pela coalizão com o PT.

O PSB está em outro campo. O grau de indefinição é maior, porquanto tem que compor internamente com a Rede. Precisa manter seus 5 governadores, liberando-os relativamente da campanha presidencial (exceto PE), e enfrentar o isolamento em diversos locais. Até o momento, terá 10 candidatos próprios oriundos do PSB, 5 são reeleições e mais na BA, DF, AM e GO (estes dois últimos a conferir). O apoio ao PSDB em MG e PR está definido. Em outros 9 ou 10 Estados tem indefinição interna quanto a candidaturas próprias ou apoio a outra legenda; mas é oposição no RS, CE, SE; apoia o PDT em MT e PPS (ambos em oposição a Dilma), e em TO, palanques partilhados com Aécio. É estratégia auxiliar do PSDB em SP, provavelmente CE e possivelmente outros estados; e tem acerto indireto com PT na BA e AC. Apoia o PCdoB no MA, o PMDB em RO e, tendencialmente, o PROS no RJ e o PSD em SC. Estão até agora divergentes PSB e Rede em 5 Estados.

O PCdoB está bem definido quanto à disputa do governo do MA, eleger mais senadores e bancada de deputados federais. O quadro de composição até o momento é de 11 apoios a candidatos a governador do PT, mais 1 possível (a convergência não ocorre no PI); 7 apoios a candidatos a governador do PMDB; 4 apoios a candidatos a governador do PSB e um apoio possível a candidatos a governador do PP e PROS. Duas situações estão ainda indefinidas – MT e RN. Reivindica a candidatura ao Senado no AC, CE, RS e SE, no RJ e AP. No Acre a aliança está consolidada para a candidatura.

Por ser menos visível, isso está ainda pouco valorizado e não se reflete em pesquisas. Dilma leva vantagem por sua ampla base de sustentação e de realizações de governo, mais o tempo de TV das alianças e palanques fortes e/ou variados para a campanha nos Estados. O eixo PT-PMDB domina a cena, relativamente, mesmo com disputas entre eles. O PMDB ficou estressado com o projeto do PT, arengou na luta política no Congresso visando a pressionar o governo – quis mais espaços ministeriais, ameaçou votações na Câmara, etc. O episódio Petrobras realinhou muito disso e o processo ainda está em curso. O PMDB brande, com alguma razão, condutas hegemonistas do PT – hegemonia é obrigação na política, a questão são os caminhos e métodos para tanto, e o PT não gera confiança nesse quesito. O PT não privilegia alianças à esquerda política, como vem se tornando notório no Maranhão.

A oposição mais estruturada é a do PSDB nos Estados, fortalecidos pela força do poder econômico, financeiro e midiático, arrastando parte da classe média mais bem aquinhoada. Mesmo assim, sua estrutura de sustentação e alianças não é tão forte quanto o binômio PT-PMDB como eixo de sustentação de Dilma. O PSB, por sua vez, está sem alianças fortes nos Estados (a não ser aquelas com PSDB, mas pouco favoráveis ao desempenho presidencial) e com pouco tempo de TV, além de isolado em mais de uma situação estadual.

Quando se realizarem as convenções, até 30 de junho, isso tem potencial real de alterar a situação das pesquisas eleitorais. Ao mesmo tempo, prepara a campanha de massa, pela TV e nas ruas, onde as mensagens respectivas se confrontarão. Só aí as pesquisas terão sentido finalista.

Aí entra outro componente, o projeto que cada força encarnará. As oposições já disseram a que vieram. De comum, Aécio Neves e Eduardo Campos centram ataque frontal a Dilma. Ela já foi declarada “persona non grata” pela grande mídia monopolista. Também partilham declarações bisonhas de que “manterão as conquistas sociais”, mas com um conjunto de sinalizações ao empresariado e ao mundo que as contrastam. Aliás, fazem mais campanha hoje em conciliábulos com corporações que junto ao povo.

O PSDB, concluiu sua “equipe”, parte de que a crise financeira e econômica “já está sendo superada”, principalmente nos EUA. E isso os leva a tentar retomar ofensiva no projeto para o país: forte acento da luta contra a inflação, reforçando o tripé macroeconômico vigente, para o que, mantido por suposto o câmbio flutuante, exige novo e firme ajuste fiscal, se necessário por lei, para “dar confiança” aos agentes econômicos, bem como uma reforma tributária “simplificadora do sistema” – nada a ver com progressividade dos tributos para nova onda de distribuição de renda aos assalariados. Visam a induzir nova onda de privatizações. Amarrando tudo, um realinhamento completo do país no plano externo, de modo a re-engatar o vagão na locomotiva da globalização hegemonizada pelos interesses norte-americanos.

Eles não temem “ser impopulares”, mas calam-se por completo sobre as consequências dessas medidas no que tange ao emprego, renda do trabalho e o investimento para um desenvolvimento autônomo. Fiam-se na atração de investimentos estrangeiros e no livre mercado. Lixam-se para o papel do Brasil na América do Sul e Latina, sem falar nos BRICs. No plano da negatividade, dirão que faliu a experiência do que chamam “nacional-desenvolvimentismo” e um novo ciclo se abrirá, com uma “década disputada” no ciclo progressista da América do Sul. Melhor seria dizer claro, porque em campanha não há espaços para falácias: retomar a experiência dos anos 90 e considerar o ciclo atual de doze anos um mero interregno num mundo ainda comandado pelo poderoso sistema financeiro-midiático cujo vértice está nos EUA.

Até onde o PSB largará bandeiras históricas e acompanhará tal diagnóstico está por se ver. Houve interessante divisão de trabalho: enquanto Fraga está no jogo do PSDB, Pérsio Arida formou ao lado de Campos-Marina. No campo econômico, portanto, há um vazio a ser preenchido provavelmente por caminhos conservadores. No plano político, a mensagem se restringe a dizer que “o melhor líder sou eu”; ambos, Marina e Eduardo nem tem estrutura para alterar tal sistema em direção progressista, nem propriamente tradição de Eduardo tem muito a oferecer nesse quesito.

É um debate que dificilmente será escamoteado em meio a uma polarização frontal, pela TV e em debates. Avançar ou retroceder, essa a questão.

Para o campo Dilma, se apresenta o desafio de indicar as mudanças necessárias para dar continuidade ao atual ciclo. Quanto mais se avança nas mudanças, mais complexo se torna enfrentar os gargalos do desenvolvimento travado, para que a alavanca do crescimento econômico se mova do consumo de massas para a capacidade de investimento privado e público e se alcance novo arranque no desenvolvimento. O conjunto de obras e investimentos do governo, as contas nacionais e as defesas contra as vulnerabilidades permitirão a Dilma lançar uma mensagem de nova esperança.

Em síntese muito apropriada, a questão é empreender um conjunto de reformas estruturantes, democráticas, para destravar esses rumos, enfrentar as consequências da crise econômica mundial e a contra-ofensiva dos poderosos de sempre, e afirmar uma nação autônoma e mais civilizada. Bandeiras, clareza e determinação não faltam a Dilma.

A questão é como enfrentar isso na correlação de forças do país e do mundo e sinalizar um segundo mandato. No fundo, trata-se de pactuar e repactuar politicamente os desígnios do futuro com as forças econômicas, políticas e sociais brasileiras. O mais importante é considerar que isso só pode ser feito com um projeto claro, e alinhar a esquerda política e social num grande bloco político-social que sustente rumos para uma ampla coalizão de forças. Isso sim seria Dilma e PT constituírem uma hegemonia – um projeto, liderança política de uma ampla aliança, mobilização das forças fundamentais de sustentação. Hegemonia assim não seria unipartidária, e sim mais condizente com a realidade e a história do Brasil.

Espera

O sábado é de Mia Couto: "Espero-te antes de haver vida/e és tu quem faz nascer os dias."

Base da arte moderna

Van Gogh

O expressionismo na arte 

Mazé Leite, no Vermelho

Nos fins do século 19, no norte da Europa, surge e se irradia um movimento artístico, contraposto ao Impressionismo nascido na França. Especialmente desenvolvido na Alemanha, o Expressionismo atingiu diversos setores da arte: a pintura, a literatura, o cinema, a música. Mais tarde, na mesma Alemanha, o regime nazista condenou esse movimento, considerando-o como “arte degenerada”. 

O Expressionismo foi uma das primeiras ramificações da chamada “Arte Moderna”, assim como o Realismo e o Impressionismo. Sua principal característica é ter representado culturalmente aquela região da Europa, fria e nevoenta, com aquele temperamento germânico que amava “mais a beleza do caráter do que a beleza da forma”, como bem enfatiza Carlos Cavalcanti em “História da Arte”. Era a contraposição entre as sombras geladas daquele pedaço do mundo e a claridade solar e quente do mundo mais latino, também destaca o professor. Era o predomínio da emoção sobre a razão. Que nascia num mundo pleno de contradições.

O engraçado é que enquanto estudava um pouco sobre esse movimento que muito me atrai - desde minha adolescência quando conheci as gravuras de Käthe Kollwitz -, li simultaneamente um artigo que escrevi há alguns anos sobre nossa poeta brasileira Cecília Meireles. O título do meu artigo - não publicado - era exatamente “As sombras de Cecília”. Cecília nasceu no começo do século 20, 1901, e antes dos 3 anos já não tinha mais nem pai nem mãe.

No pêndulo de sua existência, Cecília escrevia como se escrevesse na penumbra. Dá a impressão de que suas mãos riscavam o papel na seqüência do seu olhar que passeava no lusco-fusco do final do dia e do começo da noite. Noite sem a negritude da noite profunda, mas também sem os raios ofuscantes do dia. Noite que ainda era promessa de mistérios profundos, mas que ainda guardava resquícios de realidade, contornos da vida, detalhados pelos últimos raios do sol.

Mas vamos caminhando entre os artistas alemães e esta poeta brasileira, neste primeiro texto sobre o Expressionismo, que apenas pretende introduzir o assunto. Em outros textos, neste blog, já falamos sobre alguns desses artistas expressionistas.

O Expressionismo - movimento no qual não foi enquadrada a poesia de Cecília - é a própria projeção da subjetividade humana, que, do mais profundo do seu sofrimento, tende a deformar a realidade e provocar no observador as mesmas reações emocionais do artista. A visão do artista expressionista é angustiante, pessimista, assombrada por aquele mundo em mudança que já trazia as sementes da I Guerra Mundial, onde morreram milhões de seres humanos.
Enquanto isso Cecília cantava lá no seu Rio de Janeiro:

Sombra que passas, eu sei que és sombra,
eu sei que és sombra, sombra que falas.
Não deixas passo em nenhuma alfombra
das altas, graves, eternas salas.

Mas os que choram de sala em sala,
mirando espelhos, mirando alfombras,
choram teus passos e tua fala,
e o seu destino de amar as sombras..
.”

São muito frequentes, no Expressionismo, o uso de símbolos para descrever o estado da alma dos artistas. Ao contrário da solaridade e colorido dos Impressionistas, o Expressionismo usa cores fortes, violentas, pois ele também era uma reação contra os rumos que a sociedade tomava naquele tempo. Era a arte do pintor solitário, das cores tristes, que até já podíamos encontrar bem mais atrás, em El Greco, em Goya, em Mathias Grünewald…

Mas dois dos primeiros desses pintores nórdicos do século 19 a expressar mais sua alma do que o mundo que viam foram Vincent van Gogh e Edvard Munch. Foi um crítico de arte alemão, Wilhelm Worringer, quem, em 1908, chamou de "expressionismo" àquela forma particular de arte.

Enquanto a fotografia substituía a pintura na descrição da realidade, os artistas expressionistas se voltaram para mostrar mais como eles “sentiam” sua própria realidade, usando sua arte como um grito contra os sofrimentos daquele mundo que esmagava as pessoas nas cidades já industrializadas, mostrando a miséria, a solidão, a pequenez do homem diante da máquina movida pelo capitalismo daqueles tempos, que trouxe consigo as guerras mortais do século 20...

Bem como cantou nossa poeta triste que, na América do Sul, sentia as dores de todo aquele mundo, além das suas:

“Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.”

Diversos grupos de artistas surgiram na Alemanha, como a “Associação dos Artistas de Munique” (o NKVM); a “Nova Secessão de Berlim”, que gerou dois outros grupos: os “Der Blaue Reiter” (O Cavaleiro Azul) e o “Die Brücke” (A Ponte); o “Grupo de Novembro”. Do “Die Brücke” (de 1905) participaram os artistas Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel et Karl Schmidt-Rottluff. Eles eram de Dresden.

A forte crítica social que eles imprimiram às suas obras acabaram atraindo a crítica dos conservadores, claro. Sua visão crítica do mundo acabava sendo vista como um perigo para as gerações mais novas. Ernst Ludwig Kirchner, por exemplo, pintava as ruas e a vida urbana de Berlim de uma maneira considerada ácida. Edvard Munch, pintor norueguês, resolveu mudar sua maneira de pintar depois de 1892, usando cores mais fortes para demonstrar suas obsessões com a morte e com as doenças.

Na Alemanha, país onde o Expressionismo mais atraiu artistas, o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, já em meio à I Guerra Mundial, viram nascer diversos movimentos e grupos artísticos, onde os debates e inquietações acerca daqueles momentos eram muito intensos. Max Beckmann, Otto Dix, Conrad Felixmüller, George Grosz, Ernst Ludwig Kirchner, Käthe Kollwitz, Franz Marc, Paula Modersohn-Becker e Otto Mueller eram alguns desses artistas. No Brasil, Anita Malfatti, Candido Portinari e Di Cavalcanti foram influenciados também pelo movimento dos artistas do norte europeu. Um deles veio para o Brasil e aqui trouxe as influências de seus colegas alemães: Lasar Segall.

Mas como dissemos no início, o Expressionismo não ficou só nas artes plásticas.
No cinema, por exemplo, o filme do diretor alemão Robert Wiene, de 1919, “O Gabinete do Dr. Caligari” aparece como um dos primeiros a introduzir no cinema muitos elementos do expressionismo: grande carga de simbolismo, iluminação dramática, vestuários estranhos e personagens sombrios.

Em seguida, surgem outros diretores seguindo essa mesma linha estética: entre eles, o grande Fritz Lang. As películas que mais representam esta época são: “Nosferatu” de Friedrich Murnau, “Metropolis” de Fritz Lang, entre outros. Era ainda a época do cinema mudo. Depois, já com o cinema falado, Fritz Lang dirigiu “M” (“O Maldito”).

E assim o Expressionismo, na Arte, mostrou um artista chocado diante desse mundo que jogava o sujeito ao seu próprio destino, nesse jogo de “salve-se quem puder” perpetrado por um sistema injusto, discriminador e assassino. Que manchava as cores do mundo com suas grandes sombras pesadas, como asas monstruosas, que varreram milhões de vidas humanas em duas guerras mundiais horrorosas. E ainda continuam nos sobrevoando, ameaçadoramente…

Mas até mesmo nesses momentos, o artista deve falar. A sensibilidade do artista está aí para nos fazer ver que, além de qualquer visão terrível, a Musa sempre canta… e nos encanta…
Como disse Cecília Meireles:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico
se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada”.

Infraestrutura estratégica

Mais investimentos em infraestrutura para reduzir desigualdades regionais e completar a integração nacional. O tema esteve em destaque ontem na inauguração de um complexo portuário da Bunge, no Pará. Na ocasião, a presidenta Dilma Rousseff foi precisa ao afirma que “é hora do Centro-Oeste e do Norte, porque Sul e Sudeste têm desenvolvido sua infraestrutura. Precisamos que a produção acima do Paralelo 16 coincida com a logística acima do Paralelo 16. É uma imposição não só física, mas da lógica econômica, não tem cabimento escoar toda a safra pelo Sul ou pelo Sudeste do país”, avaliou. Nessa mesma lógica, no governo Lula, foram tomadas decisões estratégicas, como a localização de uma refinaria de petróleo no Complexo Portuário der Suape, em Pernambuco, fator de alavancagem de um conjunto de empreendimentos industriais de grande porte na área.

Qual programa?

Campanha presidencial não pode ser disputa entre quem desconstrói mais; mas entre quem melhor propõe. A favor do Brasil.

25 abril 2014

Felicidade

A sexta-feira é de Adalberto Monteiro: "A felicidade às vezes está à nossa volta/E à procura dela/Saímos pelo mundo dando voltas."

Trama antinacional

Será em vão 

Eduardo Bomfim, no Vermelho

Os contínuos ataques por parte da grande mídia hegemônica nacional, do monopólio midiático mundial sob a batuta do Mercado financeiro global revelam as intenções que estão em curso contra o Estado brasileiro.

Adversários viscerais de qualquer projeto que contemple o desenvolvimento soberano do País, das impostergáveis reformas estruturais e sociais que impulsionem um grande salto em nosso destino histórico rumo a uma nação civilizada, próspera, socialmente mais justa. Esses segmentos, o capital rentista, têm se esmerado, ultimamemnte, em superar suas habituais manobras contra os interesses nacionais.

Por isso é que através de formidável controle da informação com larga abrangência, televisiva, impressa, digital etc., essa grande mídia nacional sob controle de restritos grupos privados internos, abertamente ligada aos interesses forâneos, não tem promovido outra coisa além da tentativa de desmonte da sociedade brasileira, da sua identidade cultural, das suas esperanças fundamentais sobre o presente, a construção de um futuro melhor.

É certo que esse tem sido um fenômeno geral estendendo-se por vários Países submetidos a tempestades de surtos coletivos, monitorados em laboratórios, ao sabor das estratégias geopolíticas das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos.

Atingindo forte intensidade na América Latina, em especial na Venezuela, Argentina e agora de forma aguda no Brasil.

Países que têm, com acertos e erros, envidado esforços no caminho do desenvolvimento autônomo com suas particularidades, características próprias na tentativa de superação, pelo exercício da experiência democrática, de males seculares, crônicos, submetidos a todo tipo de infortúnios, à vassalagem externa.

Assim, a execrável campanha contra a Petrobrás tem conteúdo estratégico de desconstrução de um setor fundamental aos interesses do Estado nacional.

É o que acontece também na ofensiva contra a Copa Mundial de Futebol evento lucrativo tanto para nossa economia quanto ao País.

O que se deseja é fragmentar a identidade cultural do brasileiro, como a sua paixão pelo futebol que o une, a promoção do ódio de todos contra qualquer um e de qualquer um contra todos, fragilizar o sentimento comum de brasilidade, qualquer projeto de desenvolvimento econômico soberano. Mas será em vão.

Abril da liberdade

25 de abril sempre! Os 40 anos da Revolução dos Cravos

Ana Maria Prestes *

Naquele 25 de abril de 1974 o Brasil amargava 10 anos de ditadura militar. Como bem disse Chico Buarque na canção “Tanto Mar”:

"Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim"

Realmente estávamos doentes, de um mal agudo de repressão à população brasileira e de falta de liberdade e democracia. A madrugada embalada pela “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso soprou esperança nos ouvidos e nos corações daqueles que resistiam por um Brasil de verdade, com liberdades e justiça social.

E, certamente, não só o vermelho forte dos cravos como o perfume de uma vigorosa revolução democrática alcançou o lado de cá, trazendo esperança e força moral para o povo brasileiro que ainda enfrentou 10 anos de ditadura militar até alcançar seu processo de redemocratização na década de 80. A revolução dos Cravos foi importante fonte de inspiração para a resistência democrática brasileira até o fim do período ditatorial.

De todas as revoluções democráticas e populares já havidas no mundo, a Revolução Portuguesa de 25 de abril, certamente, é uma das mais belas e poéticas. Inspira até hoje milhares de jovens e trabalhadores lutadores por um mundo melhor. O vermelho dos cravos e a beleza das músicas e poesias que cantaram a revolução até hoje emocionam profundamente os revolucionários pelo mundo.

Mas nada se deu instantaneamente, foi preciso perseverar na luta e na defesa das conquistas. Coisa que os comunistas portugueses fizeram com muita valentia e amor por seu país e seu povo. Hoje, 40 anos após a noite crucial de 25 de abril, o PCP segue renovando a luta pelo socialismo e pelo fim das mazelas do capitalismo que assolam, em especial no último período, a Europa de maneira geral.

Os comunistas portugueses tem sido, ao longo de décadas, guardiões e lutadores na defesa dos direitos do povo português. Na sequência de abril, quantas conquistas importantes se deram, com o fim do fascismo, da guerra colonial, dos embates agrários, da repressão salazarista, o processo de liberação da mulher, a eliminação das censuras de todo o tipo. Relembrar aquele 25 de abril de 1974 é reafirmar, uma vez mais, a continuidade da luta de um povo por democracia e justiça social.

O 25 de abril será sempre lembrado por nós como,

“...a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam”*

Viva a Revolução dos Cravos!
25 de abril sempre!

*trecho de “As Portas que Abril Abriu”, de José Carlos Ari dos Santos, 1975

24 abril 2014

Poupança & crescimento

Contra a ladainha midiática

Luiz Gonzaga Belluzzo

A correlação entre crescimento e poupança afirma a anterioridade do primeiro, atesta relatório do FMI.

Nas páginas dos cadernos de economia, os ditos formadores de opinião rezam a ladainha da economia virtuosa: a baixa taxa de poupança agregada determina a reduzida taxa de investimento e, consequentemente, o medíocre crescimento brasileiro.

Custaria pouco consultar o recém-publicado World Economic Outlook. Esse relatório semestral do FMI oferece um tratamento econométrico cuidadoso aos interessados no tema Crescimento x Poupança. É obrigatório alertar o leitor não especialista para as limitações preditivas dos procedimentos econométricos. Seja como for, o teste de causalidade de Granger aplicado a um amplo painel de países desenvolvidos e emergentes atesta: o crescimento do PIB precede as variações na taxa de poupança. Diz o relatório: “A análise cuida da direção de causalidade entre poupança e crescimento do PIB no curto e no médio prazo. Trata-se de observar em que medida o crescimento do PIB ou a taxa de poupança privada de períodos anteriores antecipam variações em uma ou outra das variáveis. O resultado da análise sugere que uma elevação na taxa de poupança antecipa um crescimento mais baixo do PIB no curto e no médio prazo. Em contraste, elevações na taxa de crescimento do PIB antecipam taxas de poupança mais elevadas. A correlação entre crescimento e poupança afirma a anterioridade do crescimento sobre a poupança e não o contrário”.

Os economistas da chamada corrente principal não conseguem enfiar o dinheiro, os bancos e o crédito em seus modelos de equilíbrio geral, deterministas ou estocásticos. Persistem em sua batalha ideológica em prol dos preconceitos do senso comum e na contramão dos movimentos da economia capitalista guiados pelo domínio absoluto da circulação monetária, o que envolve o pagamento de salários com o propósito de capturar lucros, sob as regras e desregramentos do dinheiro de crédito criado pelos bancos e assemelhados.

Para juntar ofensa à injúria, essa economia é dotada de um setor de meios de produção especializado, incumbido de abrigar em sua força material a sede de crescimento dos senhores do dinheiro. O avanço da “economia de mercado” produziu a separação material entre os bens de consumo e os bens de produção. Assim, por sua “natureza” material, os bens de produção não podem ser consumidos, ou melhor, o seu “consumo” só pode ocorrer ao longo do tempo, se mobilizados pelos gastos de investimento.

Para tanto, os intrépidos empresários, ao recorrer ao dinheiro dos bancos, arrostam os riscos de inadimplemento ou, ao utilizar suas reservas monetárias, enfrentam as agruras da iliquidez. Com isso, “financiam” o pagamento de mais salários no afã de conquistar lucros acrescentados. Dos salários pagos e dos lucros realizados saem as poupanças privadas que vão se juntar ao estoque já existente de riqueza financeira da sociedade.

Assim, ao comentar a equação: “Lucros Brutos = Investimento Bruto + Consumo dos Capitalistas”, o economista polonês Michael Kalecki pergunta: significa ela, por acaso, que os lucros, em um dado período, determinam o consumo e o investimento dos capitalistas, ou o inverso disto? A resposta a essa questão, diz ele, depende de se determinar qual desses itens está sujeito diretamente às decisões dos capitalistas. Fica claro que os capitalistas podem decidir consumir e investir mais em um dado período do que no precedente. Mas eles não podem decidir ganhar mais. São, portanto, suas decisões de investimento e consumo que determinam os lucros (e a poupança privada derivada dos salários e demais rendimentos) e não vice-versa.

Na versão keynesiana do princípio da demanda efetiva, o investimento e o crédito são as variáveis independentes que determinam a criação da renda monetária e, portanto, a distribuição do valor criado pelo gasto na produção de bens de consumo e bens de produção entre lucros e salários.

Nesta economia com grande concentração de capital fixo e dominância dos bancos na intermediação financeira, a dinâmica de longo prazo está fundada na busca do aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez impulsiona a competição pela inovação tecnológica.

Seriam os autores do estudo das relações entre crescimento e poupança – os economistas do FMI Davide Furceri, Andrea Pescatori e Boqun Wang – sorrateiros keynesianos, talvez ardilosos schumpeterianos ou, pior, perigosos marxistas? A ascendência italiana de Furceri e Pescatori é altamente suspeita e deveria ser submetida à inspeção e monitoramento dos protoliberais brasileiros que ora se ocupam em vasculhar desenvolvimentistas nas universidades. Já o chinês Wang... (Publicado em Carta Capital)

Direitos individuais preservados

Governo editará decreto para regulamentar armazenamento de dados

A presidenta Dilma Rousseff afirmou hoje que regulamentará por decreto a questão do armazenamento de dados dos usuários da web pelos provedores de acesso e de aplicações de internet. O artigo 15 do Marco Civil da internet, sancionado ontem pela presidenta, obriga provedores a guardar registro de horários de acesso e fim de conexão de seus usuários pelo prazo de seis meses, em ambiente controlado. Em conversa com seguidores do perfil Palácio do Planalto no Facebook, Dilma estimulou a sociedade a participar do processo de discussão do decreto.

Ao responder a um seguidor, Dilma explicou que o armazenamento dos dados dos usuários não irá afetar liberdades individuais porque a violação da privacidade dessas informações é vedada às empresas e aos governos. “Haverá um decreto regulamentando essa lei. Ele será discutido amplamente pela internet e com toda a sociedade para que nós possamos aprimorar cada vez mais esse dispositivo que assegura a privacidade e coibindo eventuais abusos. Fique atento, porque esse processo de discussão será aberto a todos. Participe você também”, convidou a presidenta.

De acordo com Dilma, a regulamentação do artigo visa garantir que não aconteçam abusos no armazenamento dos dados, “em especial violação de privacidade”, reforçou a presidenta. “O acesso somente poderá se dar por ordem judicial expressa”, disse Dilma.

O texto do Marco Civil disciplina como devem ser armazenados os dados referentes aos acessos de usuários, estabelecendo prazos máximos e determinando que o acesso a essas informações somente ocorra mediante autorização judicial.

De acordo com a nova lei, apenas a autoridade policial, administrativa ou o Ministério Público poderão requerer ao judiciário autorização para acessar esses dados. (Fonte: Portal Brasil)

Raul vencedor

O amigo artista plástico Raul Córdula recebe o prêmio Gonzaga Duque, da Associação Brasileira de Críticos de Artes. Viva!

Vida

Reynaldo Fonseca
A quinta-feira é de Carlos Drummond de Andrade: "Chegou um tempo em que não adianta morrer./Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./A vida apenas, sem mistificação."

O voto e o acúmulo de forças

Direções municipais para além do improviso

Luciano Siqueira
No âmbito dos partidos políticos, tudo ou quase tudo agora gira em torno das eleições gerais de outubro. Cada um encara a empreitada a seu modo, tendo como objeto de desejo o voto. Com o PCdoB isto também ocorre, tamanha a importância do pleito no atual estágio da luta política no Brasil.
Disso se ocupou o 8° Encontro Nacional sobre Questões de Partido, realizado recentemente, dando especial relevo - ao lado de outras diretrizes igualmente importantes – à tarefa de construir, nas capitais e grandes cidades, em parcelas expressivas da população, a noção de pertencimento a uma corrente política identificada com suas necessidades e anseios. Nada a ver com “currais” alimentados pelo clientelismo e pelo uso desbragado do poder econômico. Tudo a ver com a elevação da consciência política e da fidelidade eleitoral, em áreas ou segmentos (“redutos”) de atuação permanente.
Não é tarefa simples. Requer rede de Organizações de Base, articulada mensalmente através do Fórum de Quadros de Base, e um comando bem orientado, coeso, respeitado e ágil: o Comitê Municipal. 
Claro que a vitória eleitoral é o objetivo imediato, irrecusável; recebe aqui todos os grifos; sobre o que não cabem dúvidas e não se pode perder o foco. Mas na campanha, o PCdoB agrega à conquista do voto outras intenções relativas à própria construção do Partido como força política autônoma, guiada por seu Programa e por uma linha organizativa que projetam, em cada embate, propósitos de natureza estratégica. Em outras palavras: o PCdoB busca o êxito eleitoral de agora como parte do acúmulo de forças em função de seus objetivos programáticos.
Assim, o Comitê Municipal é chamado a superar os limites do imediatismo estéril e do improviso inconsequente.
Isto quer dizer formatar o plano de campanha, acompanhar a sua execução e avaliar resultados em cada fase. Estipular metas de votos e de novas filiações; capacitar militantes (via Curso do Programa Socialista) e inseri-los plenamente na vida do povo – com um olhar em outubro e o outro no pós-eleitoral, quando prosseguirá a luta pela hegemonia em cada lugar.
Daí a necessidade de examinar a situação concreta com objetividade e critério. Identificar as demais correntes em presença; a dimensão das candidaturas concorrentes e adversárias; as reivindicações mais salientes das parcelas ativas da população; as questões polêmicas que influenciam o comportamento dos eleitores; a abrangência e o poder de mobilização das entidades de massas existentes - corporativas, comunitárias, estudantis, esportivas, culturais e recreativas -; a capacidade aglutinadora de igrejas e sua inclinação política. Enfim, fatores favoráveis ou ameaças que desenham a correlação de forças em que se trava a batalha eleitoral.
Conforme a situação, adotar orientação tática – em sintonia com a disputa presidencial e estadual -, de modo a explorar o diferencial dos candidatos comunistas, demarcar campos com a direita e conquistar todo apoio possível.
O Comitê Municipal, desse modo, ganhará maturidade e musculatura, capacitando-se a abordar a peleja eleitoral - articulada com os movimentos sociais e a luta no terreno das ideias – em nível elevado. (Publicado no Vermelho e no Portal de Organização).

23 abril 2014

Presença

A quarta-feira é de Vinicius de Moraes: "E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas./Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada."

Quem é contra o crescimento econômico?

Jogo duro na prática e no discurso

Luciano Siqueira

Num país como o nosso, de tamanha dimensão e complexidade, mudanças estruturais não se operam facilmente – sobretudo quando envolvem redistribuição de riqueza e renda. Sempre se deram através de processo cumulativo, lento, sujeito a avanços e a retrocessos, mediado pela correlação de forças na sociedade e no Parlamento. Daí entre a intenção e o resultado vai uma acidentada distância, que para ser encurtada exige clareza de propósitos, habilidade e um fator ainda limitado na atual quadra de transformações desencadeada em 2003: um movimento social forte, focado nas grandes questões nodais que dão conteúdo e forma às mudanças.

Por aí é que se entende que, ao lado de inquestionáveis conquistas alcançadas nos últimos onze anos – com destaque para a retomada do crescimento econômico com inclusão social produtiva e para a afirmação do Brasil no concerto internacional -, permaneçamos convivendo com grandes desigualdades sociais.

A superação das desigualdades – que, note-se, têm sido atenuadas em certa medida – depende da natureza e da intensidade do desenvolvimento econômico. Pouco a pouco fomos rompendo com o circuito estéril da financeirização, sob a ditadura do “mercado”, que ganhou dimensão extrema na chamada Era FHC, mas sempre sob a pressão negativa dos condicionantes macroeconômicos persistentes. Assim, numa combinação deletéria de pressões externas negativas, advindas da crise global, inclusive inibindo nossa pauta de exportações; e os obstáculos dos juros altos, câmbio restritivo da competitividade de nossa indústria e metas inflacionárias artificialmente impostas, o Brasil cresce a metade do desejável, nas circunstâncias atuais, que seria de pelo menos 5% ao ano.

E poderia crescer mais? Até que poderia, se o nível de investimento produtivo privado não sofresse o impacto das eleições gerais deste ano e, em certa medida, não se convertesse, como acontece, em instrumento de pressão política. Mas cresceria sim, muito mais, sem os empecilhos macroeconômicos.

Ocorre que nos EUA e países centrais da Europa, onde a crise se arrasta sem solução, a oligarquia financeira, que permaneceu no comando, agiu no sentido de transferir os ônus da débâcle econômica para os trabalhadores e os segmentos produtivos da economia. Vive neste instante situação de significativa liquidez e se volta para os países emergentes como alternativa de investimentos – o Brasil inclusive. Mas pressiona no sentido de obter “garantias” para tais investimentos, precisamente o retorno ao figurino neoliberal. E o faz em conexão com as forças de oposição ao atual governo e com apoio espalhafatoso da grande mídia conservadora.

Basta prestar atenção à cantilena cotidiana de “analistas” econômicos e próceres tucanos, o senador Aécio principalmente, e anotar a insistência na suposta necessidade de controle fiscal rigoroso – cortes nos gastos com políticas de redistribuição de renda especialmente – e regras ultra flexíveis para os capitais especulativos. Ou seja, quem não quer mudar, ou deseja a mudança em favor da elite, luta contra o crescimento e denuncia o PIB baixo como se nada tivesse a ver com isso! É o jogo de interesses poderosos versus a Nação e o povo brasileiro, que agora se traduz de modo concentrado na eleição presidencial. (Publicado no Blog de Jamildo, Jornal do Commercio Online)

22 abril 2014

Uma crônica para descontrair

Duas horas e quarenta e cinco minutos de voo 

Luciano Siqueira

Quando o cansaço e o sono me abatem, simplesmente durmo. Acordo quando a voz do piloto anuncia a proximidade do nosso destino. Às vezes nem isso, desperto mesmo com os solavancos da aterrissagem. Outras vezes, leio ou escrevo. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, alternadamente. Concentrado e tendo o cuidado de mostrar mesmo que me dedico à leitura e às anotações, medida preventiva contra a ameaça do passageiro ao lado que ensaia uma conversa. Evito sempre conversar com estranhos durante o voo, pois quase nunca me dei bem.

Desta vez, no voo Recife-São Paulo, na radiosa manhã desta sexta-feira, apenas cochilo alguns minutos. Folheio a revista de bordo TAM nas Nuvens e não encontro nada para ler: a cada viagem acho-a pior. Fossem apenas amenidades, ainda bem; mas com essa profusão de propaganda e merchandise e roteiros falsamente atraentes, não há quem aguente. Quer dizer: não aguento, mas muita gente acha o contrário, pelo que vejo nas filas próximas. Como aquele cidadão perto dos oitenta que não larga a página que ostenta uma viagem dos sonhos a uma região inóspita da Índia. Totalmente entregue à imaginação. Que o faça, está no seu direito.

Pois bem, essa está sendo para mim uma viagem atípica: não durmo, não leio, apenas escrevo o que aqui vai registrado. De tudo alguma coisa: o comissário de bordo toda vez que passa apaga a luz de leitura que acendi (na próxima, vou pedir satisfações); o vizinho do assento do meio ronca; a garotinha ali três filas adiante ora chora, ora rir no colo da mãe; o oitentão fascinado pela Índia não larga a revista nem muda de página; aquele grupo de meia idade ali atrás queda-se em algazarra juvenil; o italiano aqui do lado mantém-se grudado em tabelas e gráficos no laptop. Um caleidoscópio.

Mutatis mutandis, como escrevem os advogados, essa miríade de sons e imagens me faz recordar a primeira viagem que fiz com Luci, de Maceió a Delmiro Gouveia, no início dos anos setenta. Em razão do plano estratégico do PCdoB, deveríamos seguir a militância clandestina no Sertão alagoano. Deixaríamos a casa da Rua do Meio, no Vergel do Lago e buscaríamos moradia ali na fronteira com a Bahia, junto de Paulo Afonso. Terminamos encontrando casa bem antes, em Santana do Ipanema - mas essa é outra história que agora não vem ao caso.

O ônibus era um típico pinga-pinga, parando onde houvesse gente para subir ou para descer. Todo mundo carregava alguma coisa: sacolas, saco de feijão, cachos de banana, gaiola com passarinho, cachorro de estimação e até galinhas. Uma babel, todos falando ao mesmo tempo. Quantas horas durou nossa aventura não me lembro, mas com certeza o longo trajeto, boa parte em estrada de barro batido, muita poeira, o calor infernal tornaram-se plenamente suportáveis para o casal que tudo enxergava com deslumbre. O olhar na paisagem que se transmudava ao longo dos quilômetros rodados e os ouvidos atentos aos causos que se sucediam, contados em voz alta. Afinal, ali estávamos para nos ligar ao povo da região, fazer parte daquela vida e cumprir nossa missão revolucionária.

Agora no voo da TAM o barulho é menos, as coisas parecem seguir todas rigorosamente em seus lugares, conforme as normas da aviação comercial, mas a babel é parecida. Divertida. Até o esforço hercúleo do gordo bem postado no assento da janela uma fila à frente para ir à toalete. O jovem de boné da Ferrari que dormia a sono solto desperta contrafeito e se levanta lentamente para dar passagem. O magricela sarará, mais ágil e impaciente, idem. O gordo, pede desculpas seguidamente.

Agora é a minha vez de estirar as pernas e caminhar um pouco pelo corredor. Erro fatal: lá do fundo da aeronave logo surge um gigante careca que se apresenta como morador da Madalena, me chama de prefeito, elogia o prefeito Geraldo e logo tenta me vender um colchão ortopédico com massagem eletromagnética. Arre! Mas fui salvo pelo gongo: o comissário de bordo pede que todos voltem aos seus assentos porque estamos iniciando os procedimentos para pouso da aeronave. Felizmente. (Publicado no Jornal da Besta Fubana)

Sentimento

A terça-feira é de Celso Mesquita: "O que possuo é um coração ansioso/E a púrpura do céu."

21 abril 2014

Tempo de resistência

Clandestinos e revolucionários

Por Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, na Carta Capital

A clandestinidade política foi a alternativa que muitos militantes de esquerda encontraram para continuar no país, combatendo a ditadura civil militar entre 1964 e 1979. Todas as organizações políticas colocadas na ilegalidade tiveram muitos de seus militantes presos, torturados e assassinados. Muitos foram banidos, muitos se exilaram. Mais de uma centena de brasileiros continua desaparecida. Um contingente significativo permaneceu dentro do Brasil.

Seu objetivo: combater os ditadores, resistir em luta contra os avanços de um governo discricionário e fascista, denunciar as violências cometidas, chegar mais perto do coração da ditadura e feri-la de morte. Tornaram-se clandestinos, nos nomes, nos rostos e em sua documentação pessoal. Deixaram suas escolas, universidades, profissões e ofícios. Deixaram suas casas, seus bens, suas roupas.

Formaram a coluna vertebral de resistência à ditadura. Reuniram-se febrilmente, fizeram planos estratégicos e de ação. Brigaram entre si e abraçaram-se como nunca. Cada despedida talvez fosse a última. O amanhã era absolutamente hipotético. A certeza do futuro terminava a cada pôr-do-sol. Tinham sido alijados das fileiras dos cidadãos brasileiros, cassados como profissionais, jubilados como estudantes, demitidos sem explicação, perseguidos na fábrica e com os contratos de trabalho suspensos ou encerrados. Foram incorporando ao seu jeito, o anonimato. Jovens mulheres precocemente taciturnas, sonhos de vida familiar adiados, sonhos de maternidade interrompidos. Nenhuma certeza de construir com tranquilidade um futuro.

As restrições impostas pelas sucessivas Juntas Militares a partir de abril de 1964 foram diminuindo o espaço de atuação política legal. Partidos políticos dissolvidos, organizações políticas declaradas ilegais, sindicatos, universidades, associações de classe e entidades estudantis fechadas e invadidas. Restou à militância sair do país ou permanecer nele; tinham poucas alternativas se quisessem continuar a ser militantes políticos organizados dentro do país. Neste aspecto, a escolha da clandestinidade era uma questão de sobrevivência, decorrente da condição de perseguido e considerado inimigo pelas forças que assaltaram o poder. A outra alternativa seria sair do país, exilar-se ou desistir da militância. Para alguns havia a hipótese de permanecer na legalidade em seu local de trabalho, no seu sindicato, na cidade ou no campo, desde que pudessem manter preservada a condição de militante não localizado pela repressão.

Decisão radical

No âmago do Brasil, pulsava a clandestinidade. Às vezes armada na cidade, às vezes armada no campo. Às vezes não-armada. Convicta de sua condição de combatente, sabendo-se perseguida pelas armas militares, muitas vezes foi espreitada pela violência policial e militar e sistematicamente aviltada quando presa. Os ditadores não se constrangeram em torturar até à morte, em prender militantes com seus filhos e prender mulheres grávidas. A clandestinidade tornou-se no primeiro momento, única possibilidade de defesa e de sobrevivência do militante localizado pela repressão. Cair na clandestinidade, de início, era sair da cena legal, uma defesa da própria vida e da Organização.

Permanecer clandestino durante cinco, dez anos ou mais, foi uma alternativa que envolveu uma escolha que não era livre, porque era uma escolha dentro de uma situação de catástrofe política, determinada pela situação de excepcionalidade do país. Em alguns casos esses militantes poderiam sair do país e exilar-se. Esta alternativa existiu para alguns. Houve casos em que o militante saiu do país, exilou-se e depois voltou para ficar clandestino. A decisão da clandestinidade envolveu a escolha de um destino muito mais complexa do que supôs qualquer um que se viu frente a ela a partir de 1964. Aos vinte anos de idade, um pouco mais ou um pouco menos, comprometer-se com a luta de resistência, abandoná-la ou sair do país, não era simples ou fácil. A distância entre a decisão tomada e suas implicações foi muitas vezes maior do que supuseram os militantes e suas teorias revolucionárias. A própria adesão à alternativa colocava cara-a-cara o militante com seu destino coberto por uma longa e nebulosa noite. Ele teria que firmar e reafirmar, assinar e subscrever a escolha que fez. A escolha de uma decisão que envolve um destino não é um ato solitário, lúcido e consciente. Marcelo Viñar diz que “o sujeito substantivo da decisão encontra-se nos confins do próprio ser – onde algo próprio e alheio, familiar e estranho nos impele em uma direção e nos puxa para outra. Este processo deixa uma inscrição, um traço, uma marca universal e necessária.”¹

A clandestinidade contava com uma variável conhecida: permanecer em território pátrio. Em segundo lugar, tinha um objetivo determinado: participar da luta de resistência e de combate ao inimigo. Logo, a liberdade de ir e vir, conviver com os amigos e familiares é substituída pela liberdade de continuar a defender as mesmas ideias de outro lugar tornado escondido dentro do próprio país. O clandestino lida o tempo todo com a contradição entre desejar fazer e não poder, desejar ir e não poder ir.

O que em última instância o contém é a certeza do perigo de ser descoberto e o que o mantém clandestino é a reiterada tentativa de aceitar a escolha que fez. O clandestino não está submetido a espaços materiais inacessíveis. Ele não está preso, não está fora do país e poderia bater à porta de sua família.

Abraçar os pais, carregar no colo os novos membros da casa, mas não pode porque escolheu, porque decidiu, porque assinou a passagem à clandestinidade e sobretudo porque se o fizesse estaria arriscando-se a ser preso, a ser morto, vulnerando sua Organização. O pacto com o escondido com o não revelado, teve significação própria a cada clandestino. Aos poucos vai percebendo que não é mais dono do seu tempo e de suas decisões, e sente-se isolado. É para estas perguntas que o militante clandestino terá que dar novas respostas. Uma delas consiste em subscrever seu compromisso de adesão que discute com seus companheiros de organização; faz revisão-de-vida como se estivesse em permanente supervisão. Talvez este processo que na época chamava-se revisão de militância tenha sido responsável pela irmandade que foi sendo construída entre os militantes políticos e os longos laços de amizade que ainda hoje permanecem.

Ser clandestino supõe um disfarce. O disfarce era o jeito que os clandestinos encontraram de mudar sua imagem em relação à aparência física. Objetivo: driblar a polícia municiada de fotos e descrições recolhidas nas documentações pessoais e fichários da polícia política. O disfarce era a essência da nova imagem física. A escolha do disfarce era uma das poucas possibilidades de se dar asas à imaginação dentro dos parcos recursos para providenciá-los. Havia ainda a escolha do novo nome. Nomes sem sobrenome, simples designações. Podiam ser simplesmente Maria ou José.

Podia ser qualquer um. De tempos em tempos, esses nomes mudavam. Até hoje, alguns militantes tratam-se pelos nomes frios. Nomes-homenagem foram dados aos filhos. Havia um repasse para o filho, da homenagem que os pais faziam e de lembranças que deveriam permanecer. Entre muitos clandestinos, ocorreu este ato de homenagem, sobretudo a companheiros que tombaram em luta. Outros deram para seus filhos, depois de saídos da clandestinidade, os nomes frios que antes tiveram. O disfarce é uma herança mitológica, uma forma de astúcia para os que dele fazem uso frente a uma situação adversa e de perigo. Conta Homero na Odisséia que quando Ulysses e seus companheiros chegaram à ilha dos ciclopes foram surpreendidos por Polifemo. Uma pedra enorme fechou a saída da caverna em que se abrigaram e o gigante ia comendo um a um.

Amolecido pelo vinho que lhe deram, Polifemo perguntou a Ulysses: – Como te chamas? – Meu nome é Ninguém, respondeu. Marcelo Viñar comenta a resposta de Ulysses: René Mayor que conhece o grego melhor do que eu diz que quando Ulysses responde à pergunta, “quem és” e responde a Polifemo, “Ninguém” (Oudeis em grego), avizinha-se de seu próprio nome (Odysseus). É esta vizinhança entre o Eu e o Ninguém que sublinha a qualidade inquietante de quem assina e subscreve uma decisão radical de seu destino.

Como uma pele

O disfarce: destinos não-sabidos. Quando o clandestino escolheu o disfarce, imaginou que poderia não ser localizado e preso. Neste aspecto a identidade fria criava a condição de passar por eventuais barreiras ou revistas. Porém, quando a polícia prendia um militante clandestino, sabia que, exatamente por isso, poderia não revelar sua prisão e nem comunicá-la à família. A família não conhecia o nome frio que constava da clandestina identidade, sendo muitas vezes informada, pelos órgãos de repressão que não havia nenhum familiar em dependências policiais. A identidade clandestina foi usada contra o militante para prender, matar e fazer desaparecer. Muitos desaparecidos são militantes clandestinos que a polícia enterrou com os nomes frios e pior, enterrou-os como indigentes em valas comuns, sem nenhum nome. Outros desaparecidos sequer foram enterrados. Até hoje sua passagem pelos corredores da tortura é negada. Raramente a polícia prendeu qualquer clandestino sem saber que estava prendendo um militante político. Ao colocar-lhe o capuz já dizia: você é fulano de tal. Em relação à sua vida própria, o destino do disfarce é interno. Os militantes que viveram muitos anos clandestinos foram obrigados pela própria perseguição a afastar-se de sua profissão e ofício, de seu círculo familiar e dos amigos e impedidos de seguir seus projetos pessoais e profissionais.

Vão ficando à margem do vertiginoso avanço da ciência e da tecnologia, mergulhados no seu próprio país que lhe era hostil. Homens e mulheres brilhantes foram tirados da cena da elaboração do pensamento teórico e político no Brasil. Uma instigante geração de jovens lideranças adiou por muitos anos sua reinstalação profissional e pública. Este preço provavelmente o clandestino jamais imaginou que tivesse que pagar. A recuperação da cidadania após a vigência da ditadura civil militar encontrou homens e mulheres com seus anseios calcinados. O clandestino teria que procurar entre cinzas, a pequena fagulha que lhe ajudasse a reacender sua vida cidadã e pessoal. Muitos conseguiram. Certamente há quem não tenha encontrado forças para fazê-lo. Os embates do isolamento criaram novos eremitas, um jeito próprio de ser, reservado, ensimesmado, dentro do país que ajudou a tornar livre. O investimento para sair plenamente da clandestinidade é muitas vezes indizível. O retorno à legalidade, a reintegração após a prisão, ser cidadão de uma nação reerguida à custa de seus melhores anos de juventude e de seus sonhos, à custa do sacrifício e do desaparecimento de companheiros de luta, é um caminho permitido e anistiado. Para muitos a clandestinidade enraizou-se nos caminhos da sua alma. Dificilmente se saberá quantos brasileiros foram clandestinos. Durante quanto tempo foram clandestinos. Alguma coisa colou-se, como uma pele, sobre seu coração. A clandestinidade juntou-se à sua memória, como uma névoa que permanece.

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Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes é conselheira do CRP-SP e Coordenadora Geral de Combate à Tortura, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República