18 novembro 2025

Partido renovado e influente

O lugar do PCdoB na cena política 
Análise, ancorada na Resolução Política do 16º Congresso, examina desafios internos, atuação nas frentes de massa e o papel do partido na construção de caminhos táticos para o desenvolvimento nacional
Luciano Siqueira/Portal Grabois www.grabois.org.br   

Óbvio que o tamanho das bancadas parlamentares tem peso específico considerável em razão da conformação do ringue institucional em que transcorre a política brasileira, tanto quanto a ocupação, além do governo federal, do poder executivo nos níveis estadual e municipal. Por aí, comumente se mede o peso das correntes políticas em presença.

Isto no desenho atual em que, da Constituição promulgada em 1988 aos dias que correm, o poder real do governo da República tem sofrido corrosões significativas, na medida em que parcela dos processos decisórios se transferiram, na prática, crescentemente, para o Parlamento federal, acentuando o peso das bancadas partidárias.

Por exemplo, a adoção das emendas impositivas através de Proposta de Emenda Constitucional, aprovada em 2019, sob o governo de Jair Bolsonaro, praticamente desfez o chamado “presidencialismo de coalizão”, que possibilitava ao presidente da República meios através dos quais obtinha uma espécie de pacto razoavelmente estável no âmbito do Congresso Nacional — incluindo a emissão de medidas provisórias, associadas à prerrogativa exclusiva sobre matérias orçamentárias. Do que resultava boa margem de governabilidade, reduzindo em muito os impactos negativos da fragmentação partidária e mesmo de correlação de forças momentaneamente adversa no Parlamento.

Também “a voz das ruas”, assim denominada a força efetiva dos movimentos sociais, dos sindicatos em particular, tem reduzido seu poder de influência no âmbito de um descenso que enfraquece o campo democrático e popular praticamente em todo o mundo ocidental.

No Brasil, como bem assinalou o dirigente comunista Nivaldo Santana em intervenção especial sobre o tema no plenário do 16º Congresso, é preciso “buscar novas e criativas formas de organização que respondam às profundas mudanças no mundo do trabalho, adotar novos métodos de diálogo com a classe, estudar os meios para desenvolver a consciência de classe, a organização e a capacidade de mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras”. 

A influência da linha política

Consideradas essas variáveis, entretanto, cabe assinalar o peso das correntes políticas na medida em que expressem alternativas táticas a cada conjuntura, tradução do projeto estratégico que propugnam.

Historicamente, como comprovado na experiência brasileira e de outros povos, este é um fator que muitas vezes se faz decisivo. Aí reside trincheira privilegiada da atuação dos comunistas.

Como se constata na história recente do Brasil, desde a superação do regime militar ao complexo desenrolar do conflito político nacional desde então, verifica-se inquestionável contribuição do Partido Comunista do Brasil na construção de alianças políticas largas e eficazes, incluindo no arco-íris partidário o matiz vermelho.

No PCdoB, um marco dessa concepção tática se encontra desde a resolução política da 6ª Conferência Nacional partidária, realizada em 1968, sob as duras condições da luta clandestina, “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”. 

Naquela resolução, traduz-se o postulado tático leninista, que indica a construção de alianças políticas as mais amplas possíveis, atraindo para o campo democrático todas as forças passíveis de serem atraídas; neutralizando forças outras que embora desgarradas do campo inimigo não se disponham a integrar a coalizão e, desse modo, isolar, enfraquecer e derrotar o inimigo principal.

Essa concepção – vale conferir – é exposta pelo próprio Lenin de modo magistral em sua obra “Esquerdismo doença infantil do comunismo”, que Renato Rabelo, em artigo, considera “uma enciclopédia da tática e da estratégia do proletariado” (1).

Unidade e luta

Justamente considerando o lugar específico, muitas vezes decisivo, da corrente comunista em sucessivas situações conjunturais, a Resolução Política do 16º Congresso é precisa ao assinalar como tarefa preponderante no desenvolvimento das forças subjetivas do movimento transformador “reposicionar e revigorar o Partido para um novo ciclo de acumulação de forças e elevá-lo à condição de legenda influente no curso da luta política e social, inserção relevante no debate de ideias e na definição de rumos para o país” e assim se tornar um polo aglutinador das forças da esquerda e progressistas (2).

Óbvio que a corrente comunista há que se fortalecer no curso da luta concreta, pugnando pela ampliação de sua representação parlamentar, a presença influente em instâncias de governo e, em dimensão mais elevada, nos movimentos sociais.

Os comunistas são sempre e em todas as circunstâncias embandeirados de uma plataforma unitária, sem contudo, concomitantemente, deixar de afirmar seus próprios propósitos programáticos.

A vida tem comprovado que não há empreitada política de envergadura que dispense o elemento consciente que, permeando distintas formas e circunstâncias, funcione como fio condutor, independentemente até da força orgânica relativa específica entre as diversas correntes aliadas.

Daí a necessidade de superar a discrepância entre a importante e consistente influência do PCdoB no seio da frente ampla e a sua reduzida força orgânica — contradição que se expressa sobretudo no tamanho das bancadas parlamentares nos três níveis federativos.

Elevar a prática cotidiana ao nível programático

Tamanha discrepância não se supera sem uma correta relação entre três linhas de acumulação de forças – a luta de ideias, a presença institucional e a ação de massas. Sob muitos aspectos, acentuando a luta no terreno das ideias.

Daí se considerar que a Resolução Política do 16º Congresso não é propriamente um lugar de chegada, mas antes um ponto de partida, tamanha a dimensão dos desafios postos na ordem do dia em plano mundial e nacional.

O texto, se lido atentamente, mostra-se rigoroso no sentido de evitar conclusões além do nível de compreensão alcançado.

Por exemplo, sublinhe-se o termo transição na caracterização da passagem a um novo desenho geopolítico mundial – em razão de que “a dinâmica de acumulação do capitalismo levou a um acelerado deslocamento territorial/nacional do lócus do dinamismo produtivo, com enfraquecimento relativo do poder dos Estados Unidos, da Europa e do Japão” e, em contraposição, “num mundo em transição, a força do processo de multipolarização se efetiva de modo intenso e célere. O declínio da hegemonia estadunidense e a emergência de novos polos de poder econômico-financeiro, tecnológico, político-diplomático, cultural e militar” – cenário em que se insere a política externa proativa do governo brasileiro.

Do mesmo modo, no que se refere à luta em curso no país, a afirmação de “duas grandes tarefas: conquistar uma nova vitória da nação e da classe trabalhadora em 2026 e realizar mudanças estruturais para impulsionar o desenvolvimento soberano como caminho para o socialismo”.

Em outros termos, a reafirmação do rumo da transformação social de caráter socialista (objetivo estratégico) e um caminho (tático) assentado na busca de um novo projeto de desenvolvimento nacional, fundado em reformas estruturais — agrária, urbana, do sistema educacional, tributária, do Judiciário, etc. — cuja consecução demanda luta popular renhida, persistente e de larga dimensão, podendo resultar em extraordinária elevação do padrão de vida material e espiritual do proletariado e do povo, propiciando consciência política mais avançada, que vislumbre o horizonte socialista.

Para além dos limites do governo

Nesse contexto, ao PCdoB cabe combinar corretamente o empenho na unidade e no dinamismo do governo Lula, do qual participa com relativo destaque, dirigindo com êxito o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, com a inarredável afirmação de opinião própria sobre todas as questões relevantes postas na ordem do dia – no melhor espírito leninista, a combinação entre a unidade e a luta, a amplitude e a afirmação do matiz político próprio.

Referências

  1. Rabelo, Renato. Ideias e rumos. Editora Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2ª edição, São Paulo, 2015.
  2. Vitória do Brasil em 2026. Mudanças para o desenvolvimento soberano, resolução política do 16º Congresso do PCdoB

Luciano Siqueira foi vice-prefeito do Recife (PE) por quatro mandatos. É membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois. Autor do Blog de Luciano Siqueira

Ilustração: Ato de abertura do 16º Congresso do PCdoB, no Centro de Convenções, em Brasília, 16/10/25. Foto: J.lee Aguiar

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Leia também: O mundo cabe numa Organização de Base https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/minha-opiniao_18.html

Boa notícia

Lula envia ao Congresso o Plano Nacional de Cultura 2025-2035
Em cerimônia no Palácio do Planalto, presidente assinou a mensagem de envio do Projeto de Lei do PNC 2025-2035 e o decreto que cria a Comissão Intergestores Tripartite
Murilo da Silva/Vermelho 

O presidente Lula assinou, nesta segunda-feira (17), o decreto que cria a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), para acompanhar a execução do orçamento da cultura, e também a mensagem de envio ao Congresso Nacional do Projeto de Lei do Plano Nacional de Cultura 2025-2035.

“A partir de amanhã vocês terão trabalho de transformar definitivamente a política cultural deste país para que nenhum presidente da República, de qualquer partido que seja, de qualquer matiz ideológica que possa, um dia ou outra vez, achar que pode proibir a cultura desse país”, afirmou Lula, em referência ao governo Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura (MinC) em 2019.

“A gente não pode esquecer nunca o que aconteceu nesse país em 2016 [impeachment de Dilma Rousseff]. Não pode acontecer, como no governo passado, em que eles acabaram com o Ministério da Cultura, acabaram com o Ministério da Igualdade Racial, acabaram com o Ministério da Mulher, acabaram com vários ministérios”, completou.

De acordo com Lula, após a recriação do MinC e os investimentos feitos em seu governo, a cultura vive um dos seus melhores momentos em questão de investimentos no país.

“O dado concreto é que nós vivemos o melhor momento cultural deste país. Nós nunca tivemos tantos recursos por conta das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Nunca tivemos tanto dinheiro. E esse dinheiro, quando a Margareth [ministra da Cultura] resolveu distribuir para os municípios, ela colocou que não é só distribuir o dinheiro. Tem que fiscalizar para saber se estão sendo feitas as coisas que precisam ser feitas. Graças a Deus estamos tendo um sucesso extraordinário na política cultural”, concluiu o presidente.

Já a ministra Margareth Menezes destacou as entregas realizadas com a finalidade de estabelecer o SUS da Cultura.

“Estamos concretizando um sonho sonhado por muitas pessoas. Como faremos para transformar a cultura no Brasil nos próximos anos? Pelo Plano Nacional de Cultura, nossa bússola que vai nos indicar o caminho a seguir. Implementaremos as diretrizes a partir da pactuação da Comissão Intergestora Tripartite em diálogo e articulação com os estados e municípios, pactuando o novo PNC. Será o nosso SUS da cultura, amarrando as responsabilidades das cidades, dos estados e do governo federal com o setor cultural. Essa articulação é muito importante, já necessária há muito tempo para que a gente consiga materializar a força que tem a cultura brasileira”, disse a ministra.

CIT e PNC

A CIT tem como responsabilidade acompanhar a execução do orçamento na área, assim como a abertura do Encontro de Comitês e Agentes Territoriais de Cultura.

De acordo com o governo, a proposta é elaborada desde a 4ª Conferência Nacional de Cultura, em março de 2024. O evento reuniu mais de 5 mil delegados e elegeu 30 propostas prioritárias.

Já o novo Plano Nacional de Cultura substitui o encerrado em 2024, depois de ter sido prorrogado duas vezes a partir da extinção do MinC, recriado no governo Lula em 2023.
 

O PNC orienta a formulação e a execução das políticas culturais e a versão enviada ao Congresso para os próximos dez anos traz como destaques, conforme o Ministério da Cultura:

  • Processo de Participação Social ampliado e integrado, com participação territorial e digital, que geraram um rico diagnóstico do campo cultural brasileiro. 
  • Oito eixos estratégicos que organizam as políticas culturais em temas estruturantes e oferecem um caminho para a formulação de planos e políticas estaduais, municipais e setoriais. Entre eles eixos inovadores de Cultura, Bem Viver e Ação Climática e Cultura Digital e Direitos Digitais, que apontam para o futuro e conectam políticas com agendas globais.
  • Transversalidades que estruturam o PNC e trazem aspectos prioritários que atravessam a cultura de forma transversal: Interseccionalidade; Territorialidade; Acessibilidade Cultural; Culturas Indígenas e Afro-Brasileiras; Intergeracionalidade e Intersetorialidade.
  • Direitos culturais definidos nos Princípios do PNC, sob oito dimensões que consolidam e orientam as políticas culturais no país.

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Leia também: Para além do “economicismo governamental” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/minha-opiniao_5.html 

Minha opinião

O rico, o pobre e a consultoria especializada*
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65 

Nos poucos dias de recreio na praia, no final do ano, manuseei uma revista de amenidades onde vi, sem lê, um artigo cuja autora – de que não me recordo o nome – se apresenta como “consultora de riqueza”. Não sou assim tão desinformado, pois tenho as antenas ligadas em tudo e no entanto me surpreendi com a qualificação da articulista.

Não li o texto, nem preciso: não estou entre os seus possíveis clientes, já que riqueza monetária nunca foi o meu forte, nem jamais se incluiu entre as minhas aspirações pessoais. Posso até imaginar alguém que a contrate:

- Minha senhora, tenho acumulado muita mais-valia, absoluta e relativa, e meu problema é como administrar tanta riqueza!

- Pois não, senhor. Posso lhe oferecer um diagnóstico preciso para a sua fortuna e indicar as melhores técnicas para assegurar seus intentos.

- Pois bem. Meu interesse é exatamente fazer com que tudo que amealhei até agora não feneça, antes possa se reproduzir e me tornar mais rico ainda.

- Não seja por isso. Temos aqui alguns softwares testados com muito sucesso que o ajudarão a extorquir mais mais-valia ainda e bem aplicar o produto da extorsão em rentáveis negócios. A felicidade em suas mãos!

E assim por diante, creio cá com a minha ignorância.

Por outro lado, há que se perguntar: existe também “consultoria de pobreza”? Se sim, provavelmente ociosa e sem contratos à vista. Porque o pobre por ser pobre não pode contratar tais serviços especializados, que devem custar caro. Além disso, com tanta experiência acumulada ele já sabe como se comportar – se a empreitada for manter a sua pobreza. É o que penso.

De toda sorte, supondo que algum pobre deseje sair do seu estado atual e alcançar o polo oposto, o estado de riqueza, poderia contratar gente como a tal “consultora de riqueza”. 

A pergunta é: se a tal consultora tem autoconfiança profissional e certeza da eficácia do seu arsenal técnico destinado a reproduzir a riqueza, toparia um contrato de risco? Ou seja, aceitaria como cliente o pobre que deseja ficar rico sob o compromisso de honrar os custos da consultoria lá adiante, quando efetivamente realize sua ascensão social?

Enfim, minhas perguntas certamente nada esclarecem. Apenas refletem total inaptidão para conviver com esse subproduto do capitalismo tupiniquim que, como se vê, vai se sofisticando tal como o de outras plagas.

Globalização dá nisso. Ou não?

*Crônica publicada no Blog de Jamildo em janeiro de 2011

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Leia também: "Palavras fora de lugar" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/minha-opiniao_7.html 

Nivaldo Santana opina

Melhorar os salários e reduzir a jornada de trabalho
Propostas do plebiscito popular avançam no Congresso ao combinar isenção do IR, redução da jornada e defesa histórica do sindicalismo para ampliar renda, emprego e direitos.
Nivaldo Santana/Vermelho  

Em tempo de arrocho salarial, aumento da jornada e precarização do trabalho, as bandeiras do recém-encerrado plebiscito popular, para além da grande atualidade, pode assegurar uma vitória que, em certa medida, supera as melhores expectativas.

Em primeiro lugar, já foi aprovada no Congresso a proposta de isenção do pagamento do imposto de renda pessoa física para quem ganha até cinco mil reais e redução da alíquota para rendimentos até R$ 7.350, beneficiando 65% dos declarantes.

A outra proposta do plebiscito, ainda em discussão no Congresso, prevê o fim da escala 6×1, com redução da jornada de trabalho sem redução do salário. Essas duas propostas também fazem parte da agenda do Fórum das Centrais Sindicais.

Essas demandas que unificaram um amplo leque de organizações e movimentos procuram enfrentar um dos mais graves problemas do Brasil que é a desigualdade social, ampliada com a política de redução do custo da força de trabalho.

Segundo o IBGE, a média geral do desemprego no Brasil no terceiro trimestre deste ano foi de 5,6%, o menor desde o início da série histórica de 2012. Mas o outro lado da moeda é que o rendimento médio real do trabalho ficou em apenas R$ 3.507.

Resumo da ópera: o desemprego é baixo, mas os salários também. Por isso as mudanças progressivas na tabela do imposto de renda e a redução da jornada contribuem para aumentar o poder aquisitivo e ampliar a oferta de empregos.

Pode-se afirmar, a título de comparação, que as mudanças aprovadas na tabela do imposto de renda equivalem a alguma coisa próxima de um 14º salário. Com mais dinheiro no bolso, o trabalhador consome mais e ajuda no crescimento da economia.

Já com a redução da jornada de trabalho, uma bandeira histórica do sindicalismo para que o aumento da produtividade não seja capturado apenas pelo lucro empresarial, há um ganho de tempo importante para os trabalhadores e a abertura de novas vagas.

Assim, o plebiscito popular foi uma grande vitória dos trabalhadores, reafirmando que a mobilização popular com bandeiras justas é o caminho necessário na luta pelo desenvolvimento com valorização do trabalho e progresso social.

[Qual a sua opinião?]

Leia também: As corporações querem professores-robôs https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/ensino-ad-precarizacao.html

Charles Chaplin, presente!

“Abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia.” 

"Flores do mais", um poema de Ana Cristina César https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_47.html 

Palavra de poeta

Soneto do amor demais
Vinícius de Moraes  

Não, já não amo mais os passarinhos
A quem, triste, contei tanto segredo
Nem amo as flores despertadas cedo
Pelo vento orvalhado dos caminhos.

Não amo mais as sombras do arvoredo
Em seu suave entardecer de ninhos
Nem amo receber outros carinhos
E até de amar a vida tenho medo.

Tenho medo de amar o que de cada
Coisa que der resulte empobrecida
A paixão do que se der à coisa amada

E que não sofra por desmerecida
Aquela que me deu tudo na vida
E que de mim só quer amor - mais nada.

[Ilustração: Anastasiya Matveeva]

Leia também: "A adiada enchente", poema de Mia Couto https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_26.html 

O negócio das prisões nos EUA

EUA: A lucrativa indústria da xenofobia
A máquina antimigratória de prisões e deportações em massa assanha fundos financeiros e mobiliza intenso lobby para legalizar perversidades. Ações de corporações prisionais disparam. E a empresa de espionagem Palantir acumula poder e privilégios na Casa Branca
Carmen Navas Reyes e Yohaickel Nazer Seijas Elles, com tradução na Revista Opera/Outras Palavras   

Tendo uma vez assegurado o controle total do Executivo e do Congresso, o governo Trump retomou e até ampliou as medidas restritivas e xenófobas que marcaram o primeiro mandato presidencial. Desde o seu primeiro dia de mandato, várias ordens executivas voltadas para a supressão da migração foram assinadas. Essas medidas buscam limitar quase todas as formas de entrada no país, ao mesmo tempo em que expandem exponencialmente a capacidade operacional e o orçamento das agências de controle migratório. A retórica oficial declarou emergência nacional por uma suposta “invasão” na fronteira sul, que serviu de justificativa para suspender o acesso ao país e acelerar a expulsão em massa de migrantes. No entanto, por trás dessas ações extremas, existe uma complexa rede de interesses e ideologias bem definidas. A narrativa anti-imigrante linha dura não apenas atende à agenda política de Trump, destinada a consolidar o apoio de sua base eleitoral nacionalista, mas também gera um benefício tangível para atores poderosos. Entre eles estão um círculo íntimo de assessores ultraconservadores que elaboram meticulosamente as políticas, empresas privadas que lucram com as detenções e deportações em massa e políticos aliados com vínculos econômicos diretos com a máquina antimigratória. É um fenômeno que se consolidou como um verdadeiro complexo industrial da xenofobia. Essas políticas antimigratórias são o resultado de um trabalho coordenado por uma equipe de ideólogos e funcionários radicais, estreitamente alinhados com a visão nacionalista e supremacista de Trump.

Um dos funcionários por trás da arquitetura ideológica dessas políticas é Stephen Miller, atual subchefe de gabinete da Casa Branca para Políticas e Conselheiro de Segurança Interna. Miller é um estrategista obcecado com a redução da migração em todas as suas formas, tanto irregular quanto legal. Seu foco tem se concentrado em estigmatizar os migrantes, apresentando-os como criminosos perigosos e como ameaças à segurança nacional. Ele é o autor intelectual das ordens executivas, desde a que declara a emergência nacional na fronteira até a que propõe eliminar a cidadania por direito de nascimento. Durante o primeiro mandato de Trump, Miller impulsionou o infame veto migratório a paí ses muçulmanos, a traumática política de separação de famílias na fronteira e as primeiras restrições ao asilo migratório. Miller combina um fervor nacionalista e supremacista com um profundo conhecimento dos mecanismos do poder governamental para transformar sua visão radical em políticas concretas e irremovíveis. 

A aplicação direta da lei cabe a Thomas (Tom) Homan, conhecido como o “Czar da Fronteira”. Homan foi diretor interino do Serviço de Imigração e Controle Alfandegário (ICE) durante a política de “tolerância zero”, que resultou na separação de mais de 4 mil crianças de seus pais. Seu papel é o de principal executor da agenda de deportação em massa. Ele participou ativamente da redação do Plano 2025 da Fundação Heritage, um plano de ação que exige essas deportações em massa, o uso generalizado das Forças Armadas e o encerramento de programas humanitários. Atualmente, coordena as operações do ICE e da Patrulha de Fronteira, expandindo a capacidade de detenção e garantindo que a “mão dura” seja aplicada sem contemplações, inclusive justificando o uso do medo como ferramenta de dissuasão.

Uma articuladora fundamental dessas políticas é Kristi Noem, secretária do Departamento de Segurança Interna (DHS). Trump fez sua nomeação valorizando sua lealdade à agenda antimigrante; como governadora, ela foi a primeira a enviar tropas da Guarda Nacional de seu estado para a fronteira do Texas. Seu papel consiste em traduzir a agenda política de Trump em políticas concretas, coordenar os comandos operacionais em massa e confrontar as chamadas “cidades-santuário” a partir do poder federal, trazendo um perfil político de alto nível para a equipe de segurança nacional.

Outra figura igualmente relevante neste quadro é Pamela Bondi, procuradora-geral dos EUA. Sua nomeação foi controversa devido ao seu passado como lobista da indústria prisional privada – que até construiu subsidiárias em outros países do mundo para gerar riqueza. Seu papel se concentra na arquitetura jurídica. Ela supervisiona os promotores federais que apresentam acusações migratórias, intervém na administração dos tribunais de migração e tem o poder de decid ir recursos de casos de asilo por meio do Departamento de Justiça. Bondi garante que as políticas migratórias extremas tenham respaldo jurídico, com novas interpretações legais, adaptando as normas para facilitar as deportações e detenções prolongadas e defendendo essas medidas nos tribunais.

As motivações por trás do endurecimento migratório não são apenas ideológicas ou eleitorais; um poderoso motor econômico impulsiona essas medidas. A expansão do aparato de detenção e deportação se tornou um negócio multimilionário para interesses empresariais, consolidando o já mencionado complexo industrial da migração. Empresas privadas administram prisões, centros de detenção e serviços associados, gerando lucros extraordinários às custas do encarceramento em massa de migrantes.

O sistema de detenção de migrantes do ICE depende predominantemente de operadores privados. Mais de 90% dos migrantes detidos estão em centros administrados por empresas prisionais sob contrato, sendo o GEO Group e a CoreCivic as principais beneficiárias. Após a reeleição de Trump, as ações do GEO Group dispararam 41% e as da CoreCivic 29%. Os mercados financeiros anteciparam corretamente que a nova era Trump significaria um aumento maciço de detenções e, portanto, contratos mais lucrativos.

A economia antimigratória funciona com base em incentivos perversos: o ICE paga a essas empresas uma taxa diária por pessoa detida, muitas vezes superior a 100 dólares. Muitos contratos incluem cláusulas de “mínimos garantidos”, assegurando o pagamento de um número mínimo de leitos, o que cria um claro incentivo para manter um fluxo constante de detidos. Essa rentabilidade é imensa: foi revelado que, em alguns centros, a empresa gasta cerca de 27 dólares por detido por dia em serviços, enquanto o governo paga cerca de 149 dólares, o que resultaria em cerca de 83% de lucro bruto para essas empresas. A título ilustrativo, no segundo trimestre de 2025, a CoreCivic registrou receitas de 538,2 milhões de dólares e o GEO Group, de 636,2 milhões de dólares, superando as expectativas e registrando um crescimento significativo. Executivos afirmaram que o orçame nto recorde aprovado pelo Congresso triplica o financiamento do ICE e abre “oportunidades de crescimento sem precedentes” para eles. Com esses fundos, ambas as empresas estão reativando instalações fechadas: o GEO Group reabriu quatro centros com 6,6 mil leitos adicionais, enquanto a CoreCivic assinou acordos para reabrir o centro familiar de Dilley com 2,4 mil leitos por 180 milhões de dólares e uma outra prisão inativa.

O comércio baseado na xenofobia se estende à tecnologia aplicada à vigilância e ao controle migratório por meio da Palantir, a empresa de análise de dados que se tornou um elemento central da máquina de deportação. A Palantir fornece às agências de imigração ferramentas avançadas de perfil digital para identificar e rastrear pessoas em situação migratória irregular. O ICE concedeu-lhe um contrato específico para construir a plataforma ImmigrationOS por 30 milhões de dólares, destinada ao acompanhamento e priorização de migrantes deportáveis, além de outros contratos no valor de 159,4 milhões de dólares em 2025. Da mesma forma, o monitoramento eletrônico é outro nicho de mercado: a BI Incorporated, subsidiária do GEO Group, obteve uma extensão contratual de 2,2 bilhões de dólares para monitorar migrantes com pulseiras e aplicativos (tornozeleiras eletrônicas). 

As companhias aéreas e os empresas de aviação, como CSI Aviation e GlobalX, também se tornaram grandes beneficiários, transformando os voos de deportação em uma fonte sustentável de receita, com contratos que somam centenas de milhões de dólares.

Por trás dessas empresas, os gigantes financeiros também têm sua parte. As duas maiores gestoras globais, BlackRock e Vanguard, lideram as participações acionárias no GEO Group e na CoreCivic. Embora não sejam atores políticos tradicionais, sua presença demonstra que o complexo de detenção está intrinsecamente entrelaçado com o capital financeiro americano em grande escala, garantindo que o endurecimento migratório resulte em enormes lucros para uma ampla rede de investidores de Wall Street e seu intenso lobby eleitoral.

No caso das empresas mencionadas, juntas, elas investiram 3 milhões de dólares em lobby federal, concentrando seus esforços no Congresso, que determina o orçamento anual do ICE. Ou seja, elas pressionam diretamente para que o Congresso destine mais fundos para deter migrantes, o que se traduz diretamente em mais contratos para elas. Além do lobby direto, elas injetam dinheiro no processo político-eleitoral. Por exemplo, nas eleições de 2024, o Comitê de Ação Política (PAC) e os funcionários do GEO Group contribuíram com 3,7 milhões de dólares em doações, a grande maioria destinada a candidatos republicanos e conservadores. O GEO Group doou 1 milhão de dólares ao SUPERPAC de Trump, “Make America Great Again”. A CoreCivic, por sua vez, contribuiu com cerca de 784 mil dólares, a maior parte também destinada a can didatos republicanos. Ambas as empresas foram patrocinadoras principais da cerimônia de posse de Trump em 2025, doando 500 mil dólares cada uma.

A proximidade dessas empresas com a cúpula do governo Trump fica evidente no cenário dos funcionários articuladores (ou da porta giratória), em que ex-funcionários do governo passam a integrar as fileiras empresariais e vice-versa. Em 2024, mais da metade dos lobistas do GEO Group e da CoreCivic tinham empregos anteriores no governo federal, usando seus contatos e conhecimento interno para beneficiar seus novos empregadores.

Existem três exemplos notáveis já identificados, que supõem casos de conflitos de interesse subjacentes a este mecanismo: 1 – Tom Homan, antes de ser o Czar da Fronteira, trabalhou como consultor para o GEO Group em serviços de monitoramento de migrantes; 2 – Pamela Bondi atuou como lobista do GEO Group em Washington D.C., recebendo pagamentos confirmados de mais de 390 mil dólares por seus serviços. Homan e Bondi foram remunerados por empresas que lucram com o aumento das detenções de migrantes. Agora, como funcionários de alto escalão, eles têm influência direta sobre o siste ma migratório e de justiça que processa esses mesmos migrantes; 3 – Stephen Miller declarou possuir ações na Palantir num valor entre 100 mil e 250 mil dólares, o que sugere um possível interesse financeiro nas políticas de vigilância digital que ele mesmo promove.

As atuais políticas migratórias dos Estados Unidos são o resultado de uma poderosa convergência de interesses ideológicos e econômicos. Esse fenômeno representa a transformação da migração em um objetivo bélico-econômico, quase um fim em si mesmo, onde ideologias supremacistas e capitalismo selvagem se fundem para maximizar os lucros.

Para ideólogos como Stephen Miller, a migração é uma ameaça; para corporações como GEO Group e CoreCivic, essa “ameaça” é, na verdade, uma oportunidade de crescimento econômico sem precedentes. Ambos os atores precisam um do outro: sem a narrativa do medo e da “invasão”, não haveria contratos orçamentários massivos; sem os contratos e o lobby, a narrativa do medo talvez não prevalecesse em políticas concretas.

A meta declarada por Trump de deportar mais de um milhão de pessoas em um ano representa uma oportunidade de receita extraordinária. Cada voo fretado, cada novo centro habilitado e cada contrato de vigilância eletrônica se traduzem em uma receita potencial direta para os contratados privados. Do ponto de vista de seus promotores, essas políticas estão cumprindo seu duplo objetivo: dissuadir a migração e fortalecer um aparato de controle que lhes proporciona rendimentos políticos e econômicos. O fato deste aparato lucrar com amigos e aliados não é uma coincidência, mas uma característica integral do complexo industrial da xenofobia que consolidou a plutocracia de Donald Trump, com um custo humano devastador de famílias destruídas, comunidades inteiras aterrorizadas e violações sistemáticas dos direitos fundamentais ao devido processo legal e à prot eção humanitária. (Tradução: Raul Chiliani)
                                                   
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O crepúsculo do império norte-americano 
https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/eua-em-decadencia.html