Acesso
a medicamentos: Direito Humano Fundamental!
ALIC E
PORTUGAL, JORGE BERMUDEZ, RONALD FREITAS DOS SANTOS
Portal da Fundação Mauricio Grabois
Dentre as lições amargas aprendidas com a pandemia
podemos destacar a distância entre as falsas promessas de solidariedade que
ecoaram pelo mundo e a triste realidade da disputa comercial nas tecnologias,
medicamentos e vacinas que excluem contingentes enormes da população mundial do
acesso a medicamentos essenciais.
Quase 6 milhões de pessoas morreram no mundo, mais de 620
mil no Brasil (dados de 14/01/2022, Our World in Data), muitas delas mortes
evitáveis.
Famílias enlutadas, desemprego, subemprego e pobreza
disparando diante da volúpia da indústria farmacêutica impondo seus monopólios
e preços elevados.
Uma indústria que não conhece recessão e enriquece seus
acionistas e executivos com a miséria dos outros e com a morte; em muitos
países se somando à incapacidade ou ao negacionismo das autoridades
governamentais.
Documento recente estima que, enquanto o mundo se
encontra desprotegido e menos de 2% de doses de vacinas têm sido direcionadas a
países de baixa renda por Pfizer, Moderna e BioNTech, estas três
companhias obtiveram um lucro de cerca de US$ 34 bilhões em 2021, o
equivalente a 65.000 dólares a cada minuto.
Não é por acaso que as empresas farmacêuticas têm
recusado as solicitações da OMS para transferência de tecnologia e assim
viabilizar a expansão da produção mundial de vacinas contra a Covid-19.
Não é por acaso que o mecanismo solidário COVAX, que
seria responsável por fornecer vacinas Covid a países sem capacidade de pagar,
se encontra subfinanciado enquanto as relações bilaterais da indústria com os
países ricos atropela o multilateralismo e a solidariedade.
Adicionalmente, é necessário ajudar a fortalecer a
capacidade dos países de baixa renda para efetivar a vacinação nos seus
respectivos, mesmo precários, sistemas de saúde.
Ao mesmo tempo, nos causa preocupação a falta de
estrutura que pode levar países pobres a não conseguirem vacinar suas
populações vulneráveis e lamentamos a perda de vacinas por expiração
nos prazos de validade, como recentemente noticiado em Uganda.
Mais revolta causa saber que o sistema de saúde
do Reino Unido vai destruir um contingente elevado de
vacinas por não ter conseguido utilizá-las, penalizando não apenas seus
próprios habitantes, mas em especial países pobres que poderiam ter sido
beneficiados pelas doações que sucumbiram aos nacionalismos exacerbados dos
países ricos.
Ao estabelecer o Painel de Alto Nível do Secretário-geral
das Nações Unidas em acesso a medicamentos em 2016, a motivação principal foi a
de buscar e propor soluções para as “incoerências”, no contexto das tecnologias
em saúde, entre os direitos dos inventores; as prioridades em saúde pública; as
leis e regulação de direitos humanos; e as regras do comércio.
Mais do que nunca diminuir essas disparidades implica tratar
o acesso a medicamentos e tecnologias como um direito humano fundamental.
Na medida em que as vacinas se consolidam em escala
global e novos produtos são revelados como potenciais tratamentos para
enfrentar a Covid-19, é necessário reiterar nossa convicção do acesso a
medicamentos e tecnologias como um direito humano fundamental.
Isso implica: ampliar nossa base produtiva; assegurar
recursos para incentivar fortemente a ciência, tecnologia e inovação;
estabelecer políticas públicas integradoras, centradas em defender a vida e que
sobrevivam às mudanças governamentais; e, em especial, consolidar nosso SUS e
seus princípios objetivando a melhoria da qualidade de saúde e de vida de
nossas populações.
Novas tecnologias têm que ser incorporadas no SUS, mas temos
que assegurar o acesso da população a essas tecnologias.
Custo, valor e preço têm que ser repensados para uma nova
realidade. Como reza nossa Constituição, saúde como direito de todos e dever do
Estado, acrescido de uma PEC que assegure o acesso a tecnologias como um
direito humano fundamental!
Nessa lógica, um primeiro passo é assegurar que o
licenciamento compulsório (quebra de patentes) possa ser exercido com plenitude
no Brasil, derrubando os vetos do presidente na Lei 14.200/2021 e
pressionando para o Brasil apoiar a iniciativa em discussão na OMC sobre a
suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual, o “waiver”
proposto por Índia e África do Sul e hoje apoiado pela imensa maioria dos
países em desenvolvimento.
Novos e antigos medicamentos estão sendo reposicionados
para o tratamento da Covid-19 e aprovados na OMS e nas principais
agências reguladoras do mundo, incluindo a Anvisa.
Aprovação de novos medicamentos sem o acesso assegurado
no SUS penaliza as populações mais vulneráveis no Brasil. E ainda estamos no
fulcro da crise no Ministério da Saúde e as críticas e tentativas espúrias de
modificar a direção da CONITEC pela falta de adequação às diretrizes sem
fundamento, mas de origem política e eivada de interesses inexplicados.
Mas em termos de vacinas nem sempre as tecnologias
mais complexas devem ser consideradas como a “tábua de salvação”.
Uma iniciativa conjunta do Baylor College of Medicine e
Texas Children’s Institute, em Houston, Texas, EUA, liderado pelos cientistas
reconhecidos mundialmente Peter Hotez e Maria Elena Bottazzi, que já vinham
trabalhando no desenvolvimento de vacina com tecnologia de proteína
recombinante desde o início dos anos 2000, à época de MERS (Síndrome
Respiratória do Oriente Médio) e SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave),
anunciaram em dezembro de 2021 a chamada “primeira vacina contra Covid
concebida para saúde global”, livre de proteção patentária, de baixo custo de
produção e disponível sem restrições.
Além de estar negociando a produção em países como
Indonésia, Bangladesh e Botsuana, já foi autorizado seu uso emergencial na
Índia e estabeleceram acordo para a produção com a empresa indiana Biological
E.
Embora ainda não constando dados publicados dos ensaios
clínicos, a expectativa é de que essa vacina possa ser rapidamente produzida e
distribuída em escala global.
Podemos estar no umbral de mostrar que é possível um
mundo sem patentes e que os interesses comerciais não necessariamente tem que
imperar nesse novo mundo.
Queremos encerrar reiterando as palavras da então
Primeira-Ministra da Índia Indira Gandhi, que, em 1981, ao abrir a Assembleia
Mundial da Saúde, disse (tradução livre): “Meu sonho de um mundo melhor
ordenado seria aquele em que as descobertas médicas fossem livres de patentes e
não houvesse lucro com a vida ou com a morte”.
Quem dera nestes últimos 41 anos tivéssemos conseguido
mais do que lutamos. Quem dera, mas nunca é tarde! Como disse o Comandante:
“Hasta la victória, siempre!”.
*Alice
Portugal é farmacêutica, deputada federal (PCdoB/BA) e presidente da
Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica
*Jorge
Bermudez é pesquisador sênior da ENSP/Fiocruz
*Ronald
Ferreira dos Santos é presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos
(Fenafar)
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