31 janeiro 2023

Contra o garimpo ilegal

Lula lança maior ofensiva contra o garimpo ilegal no Brasil. “Temos que parar com a brincadeira. Não terá mais garimpo”, afirmou Lula a jornalistas. Veja aqui https://bit.ly/3kWbRSS

Interesses poderosos

O violento 
consenso das commodities
Modelo agrário-exportador promete riqueza nova, mas expande-se através de fome, precarização e desmatamento. Em nome das cadeias globais de valor, dizimam-se povos como os yanomamis e mantém-se lógica hostil à natureza e ao trabalho
Márcio Pochmann/OutrasPalavras

 

genocídio de yanomamis recentemente revelado ao grande público se encontra associado ao consenso das commodities que tomou conta das elites dirigentes no Brasil concomitante com o colapso da sociedade industrial. O consenso das commodities caracteriza o período econômico, social e político aberto desde o ingresso subordinado na globalização que rebaixou a condição periférica do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho. 

Para que fosse possível a formação de maioria política interna, o realinhamento passivo junto ao movimento do deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente se mostrou fundamental (M. Svampa, Consenso de los commodities y megaminería, 2012; G. Arrighi, Adam Smith em Pequim, 2008). Com isso, o esvaziamento da industrialização nacional deu lugar ao inchamento do setor terciário simultaneamente ao fortalecimento do modelo primário-exportador que se tornou o elo principal da conexão periférica com o novo centro dinâmico global.  

Pelo consenso das commodities, o andar de cima da sociedade se preservou diante do sentido geral da decadência nacional a dominar a maior parte dos brasileiros. Enquanto o rentismo valoriza o estoque da riqueza velha pela financeirização, o modelo primário-exportador potencializa a geração de riqueza nova associada ao rebaixamento do custo do trabalho e ao extrativismo sem limites do abuso dos recursos naturais minerais e vegetais.  

Assim, a integração do Brasil nas cadeias globais de valor se especializou em mercadorias de diminuto valor agregado, o que favoreceu as corporações transnacionais que contaram, inclusive, com medidas governamentais redutoras dos direitos laborais, conforme confirmam as reformas trabalhista de Temer e previdenciária de Bolsonaro. Para a classe trabalhadora, a desvalorização e sofrimento resultaram da perda do horizonte do emprego assalariado formal mediante à prevalência das ocupações gerais, incapazes de gerar identidade e pertencimento coletivo, bem como a perspectiva de mobilidade social ascendente.  

No âmbito espacial, uma espécie de retomada da fragmentação gerada por economias de enclaves se estabeleceu entre o interior com algum dinamismo econômico gerado por sua conexão e dependência do exterior e as áreas litorâneas submetidas ao desmonte das cadeias produtivas endógenas. Por conta disso, houve a remontagem de novas forças sociais que dominaram o cenário da política local, regional e nacional, consolidando nas próprias elites dirigentes a lógica da transferência de componentes da natureza e da produção e extração de matérias-primas ao exterior.  

Visto como uma via rápida para o crescimento econômico, o consenso das commodities se fortaleceu pelos resultados concretos obtidos na lucratividade financeira gerada nos negócios com o comércio externo, sejam exportadores, sejam importadores. De todo o modo, a economia nacional está cada vez mais transformada em reflexiva do exterior, submetida à volatilidade da demanda, preços e nível das ocupações.  

Em boa parte do tempo, a trajetória ascendente dos preços formados nos mercados internacionais de matérias-primas e bens de consumo consagrou o processo de reprimarização econômica. Mediante aprofundamento do processo de trocas externas desiguais, a soberania alimentar acentuou-se concomitante com a dependência da importação de bens e serviços de maior valor agregado e conteúdo tecnológico.  

Isso porque o complexo extrativista se ampliou, contemplando um conjunto de atividades que atende da mineração e combustível fóssil ao conjunto do agronegócio. A grande escala dos empreendimentos envolvidos redefiniu a dimensão dos investimentos à forma com que o país se encontra posicionado nas cadeias globais de valor.  

Em síntese, o consenso das commodities reconstituiu internamente tanto a ordem econômica como o sistema político de dominação. A gravidade disso para a sociedade brasileira, especialmente para o andar de baixo, assenta-se na desestruturação do mundo do trabalho, na insegurança alimentar e na enorme parcela da população sobrante aos requisitos da raquítica acumulação de capital.  

Como não poderia deixar de ser, a inflexão primário-exportadora tem sido acompanhada pela expansão de conflitos, especialmente socioambientais. As lutas pela terra mobilizam populações originárias e segmentos da agropecuária familiar, assim como nas cidades as ações contrárias à superexploração do trabalho.  

Em reação, os ataques à democracia se sucedem, sobretudo quando governos progressistas buscam implementar medidas de interesses populares. No campo político, o movimento de continuidade e descontinuidade avançou sem que a ruptura plena com o neoliberalismo tenha ainda sido possível ocorrer.  

O instigante mundo em que vivemos https://bit.ly/3Ye45TD

Humor de resistência: Enio

 

Enio

O sentido da “guerra” cotidiana https://bit.ly/3Ye45TD

Padrões mutáveis

Padrões estéticos mudam com o tempo. Mas muitos resistem ao novo por preconceito e conservadorismo.

O olhar e o gesto na vida cotidiana https://bit.ly/3Ye45TD

Comércio exterior

Planejar o nosso comércio exterior, precificar a volta do Brasil ao mundo

Elias Jabbour*/portal da Fundação Grabois www.grabois.org.br

 

Muito se tem discutido sobre os termos das relações Brasil-China. Pela direita, seria um exemplo de utilização de nossas “vantagens comparativas”: afinal, indústria e agricultura seriam basicamente a mesma coisa e essas “vantagens” foram amplamente utilizadas pelo governo Bolsonaro, com a concentração de 91% de nossas exportações para o país asiático em apenas dez produtos. Mesmo entre os dez produtos, há uma impressionante concentração em três itens: soja, minério de ferro e petróleo (1). A questão não se encerra aí. Não há problemas em termos a China como nosso maior parceiro comercial. A contradição está na ampliação do papel deste país em nossas exportações: em 2021, 46,4% das exportações brasileiras foram direcionadas à China (2). Detalhe importante é que nenhum item de nossas exportações tem seus preços criados dentro do país, o que nos deixa vulneráveis ante as flutuações de preços externamente criados.

Pela “esquerda”, o próprio fato de uma leitura sobre a China estar presa a formas positivistas e a um marxismo acadêmico vulgar ainda predomina. Portanto, o fato de se observar aquela experiência utilizando-se de um pleonasmo (“capitalismo de Estado”) impede a percepção de que o surgimento de uma nova formação econômico-social por lá nos obriga a construir novos marcos teóricos, conceituais e categoriais. Sem isso, não se surpreende tomar a nuvem por Juno e aplicar à China a alcunha de país imperialista. Ora, se o conceito se manifesta no movimento real, a ideia não pode vir antes da matéria. Essa nova formação econômico-social enseja o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica capazes de elevar a capacidade do Estado, via grande produção e grande finança públicas, de intervir rapidamente sobre a realidade (“Nova Economia do Projetamento”) via execução de milhares de projetos simultaneamente; eleva-se o domínio humano sobre a natureza; novas regularidades econômicas surgem e urgem descoberta, currente calamo.

A questão que nos cabe é que essa capacidade não se circunscreve aos marcos nacionais chineses, mas nas possibilidades desta Nova Economia do Projetamento ser a base fundamental ao surgimento de uma globalização alternativa à neoliberal patrocinada pelos Estados Unidos (3). Seu instrumento institucional: a Belt and Road Initiative. Rapidamente o eixo da economia internacional está migrando do Atlântico Norte à Ásia centrada na República Popular da China. Afora o peso do referido país em nossas pautas de exportações e importações, o esforço de nossa inteligência nacional deve se remeter à criação de instituições capazes de potencializar as relações entre os dois países, tendo como marco uma agenda que priorize nossos interesses estratégicos, sendo o principal deles a reconstituição de nossa base física a novos e superiores esquemas de divisão social do trabalho. É fato que o grau de deterioração de nossas infraestruturas embute um risco à própria integridade territorial do Brasil. Esse é um ponto fundamental e que deveria ser motivo per se para reflexões que vão além dos investimentos em si.

O desafio das relações Brasil-China em seu futuro imediato e não imediato demanda certo esforço de elaboração teórica que escapa muitas vezes àqueles envolvidos neste tipo de discussão. O campo desta elaboração é a história. A planificação em um país como o Brasil não tem nada a ver com o que vemos, por exemplo, na experiência chinesa. Portanto, nessas condições o nosso papel é o de nos organizar no sentido de aproveitar os movimentos impostos pela vida. Aqui urge uma necessidade essencial ao que se tem chamado tanto de “reconstrução nacional” quanto de “volta do Brasil ao mundo”. A nosso ver a volta do Brasil ao mundo deve ter um preço claro: a nossa reindustrialização. Seu instrumento fundamental: a planificação do comércio exterior. A percepção dos movimentos que a vida nos entrega e como aproveitar ao máximo as possibilidades do mundo.

Exemplos abundam. No final da década de 1950, o Brasil aproveita a tendência do automóvel emanado dos Estados Unidos. Na verdade, dada as condições incipientes de nossa industrialização àquela época, a opção pela rodovia mostrou-se a mais correta diante de uma realidade onde o Brasil mal se constituía em um marco nacional unificado, com as próprias ferrovias existentes espelhando a realidade de um país formado por “ilhas econômicas”. A opção pelo automóvel e o caminhão foi parte fundamental da constituição de uma imensa indústria metalmecânica em nosso país.

O desenvolvimento das forças produtivas no país nos últimos tempos, sobretudo em nossa agroindústria, e o aumento dos fluxos inter-regionais de transporte têm demonstrado os limites da opção rodoviária, colocando na ordem do dia a substituição da rodovia pela ferrovia no Brasil. Logo, diante de tarefas como a de resgatar toda a capacidade produtiva destruída pela Operação Lava-Jato, é imperativo de futuro planificar o nosso comércio exterior no sentido de negociar e operar a instalação de centenas de milhares de quilômetros de trens de média e alta velocidade por parte dos chineses.

Assim, a “volta do Brasil ao mundo” passa a ter sentido com a necessidade de escalar as relações com esse gigante asiático em patamares superiores, nos mesmos moldes ao que testemunhamos por parte do Irã (4), que, em uma troca de petróleo por obras públicas e transferência de tecnologias (criação de um departamento novo na economia do referido país), inaugura a viragem para uma época em que a lei da degeneração dos termos de troca não é algo mais absoluta. O ambiente internacional de acirramento das rivalidades entre EUA e China amplia as possibilidades do Brasil e da precificação de nossa volta ao mundo. Aos EUA não interessa a presença chinesa operando a unificação física do Brasil e da América do Sul. Aos chineses não interessa um Brasil fraco, desintegrado e com seu tecido social esgarçado. O Brasil é fundamental ao sucesso da empreitada de um mundo multipolar.

O momento é de elevar a um patamar muito superior as nossas relações com a China. Toda uma plasticidade institucional deverá ser construída com a presença das mentes mais capazes do país, subordinadas ao gabinete da presidência da República, com o intuito de pensar nossas relações com os chineses como parte fundamental do resgate do esforço iniciado com a Revolução de 1930. Temos reservas imensas de petróleo. Os chineses, os bens públicos e suas capacidades produtivas anexas que o Brasil precisa para a nossa reconstrução. Superar a “nova dependência” e construir uma industrialização pela planificação de nosso comércio exterior: estão postas as contradições e as múltiplas formas de superá-las. Parece, mas não é. O mundo anda tão perigoso quanto propício aos interesses nacionais brasileiros. Temos quatro anos para construir um verdadeiro casamento de dois grandes projetos nacionais.

Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj e autor, com Alberto Gabriele, de China: O Socialismo do Século XXI (2021) e Socialist Economic Development in the 21st Century: A Century after the Bolshevik Revolution (Routledge, 2022). Vencedor do Special Book Award of China 2022.

Notas:

1 Brasil concentra vendas na China como nenhuma outra grande economia e isso pode ser um problema. Valor Econômico. 22/10/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/07/10/brasil-concentra-vendas-nachina-como-nenhuma-outra-grande-economia-eisso-pode-ser-um-problema.ghtml.

2 China é maior responsável por exportação recorde. Valor Econômico. 14/01/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/ noticia/2022/01/14/china-e-maior-responsavelpor-exportacao-recorde.ghtml.

3 Sobre isto, ler Jabbour, E.; Dantas, A.; Vadell, J. (2021). Da nova economia do projetamento à globalização instituída pela China. Estudos Internacionais, v. 9, n. 4, p. 90-105.

4 Watkins, S. China Inks Military Deal with Iran Under Secretive 25-Year Plan. Global Research, jul. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/china-inks-military-deal-iran-under-secretive25-year-plan/5718940.

Publicado originalmente no Jornal dos Economistas

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Futebol bandido

O caso Daniel Alves e a falência do futebol brasileiro.
De uma geração de jogadores que vê o bolsonarismo com indisfarçável simpatia, não se pode esperar um repúdio enfático à cultura do estupro. E não convém esperar mais nada nem dentro de campo. Leia mais https://bit.ly/3XSj19o

Minha opinião

Previsões precipitadas

Luciano Siqueira

 

No meio do caminho tem a eleição das duas mesas diretoras e o ambiente inaugural dos trabalhos legislativos.

Parece óbvio, mas para muita gente não é.

Pois não são poucos os que ocupam o espaço na mídia convencional e nos sites políticos com previsões antecipadas a propósito da agenda e das consequências dos trabalhos legislativos, que ainda não se iniciaram.

Há uma nova composição na Câmara e se renova um terço no Senado. Com uma presença significativa de parlamentares eleitos pela extrema direita, na esteira do ex-presidente.

Mas agora a página vira. E há que considerar o caráter “multicolorido” da representação parlamentar situada ao centro e à direita, excessivamente movida por interesses paroquianos e assistencialistas.

A base de sustentação de cada um em seus estados espera ações do governo federal que, de uma forma ou de outra, contemplem microrregiões e municípios.

Então tem muito jogo pela frente. 

E ao governo caberá o equilíbrio necessário entre o que há de programático e o que pode haver de concessões.

Nesse cenário de expectativas, melhor analisar a partir do instante em que os times entraram em campo e o jogo começar.

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Para onde estamos indo?

Lula acerta na economia?

O Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica
Paulo Nogueira Batista Jr./Vermelho www.vermelho.org.br

 

Nas primeiras semanas de governo, o Presidente da República agiu com rapidez na área econômica. Autorizou diversas medidas e emitiu opiniões sobre a política econômica, dando sequência ao que fez na campanha eleitoral. Se ele vem acertando ou não, é objeto de intensa controvérsia.

A ortodoxia econômica, inclusive e destacadamente a turma da bufunfa e seus numerosos porta-vozes na mídia, parece cada vez mais inquieta. Esperavam um Lula mais dócil, mais parecido com o Lula 1 do tempo da dupla Antônio Palocci/Henrique Meirelles – período em que os economistas desenvolvimentistas, por sua vez, estavam furiosos, criticando publicamente o governo. Eu mesmo mandava ver, até com certo exagero, diria em retrospecto.

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O Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica, e mesmo mais do que o Lula 2, do período Guido Mantega, que já causava certos arrepios. O barulho é atualmente bem intenso. Fazer o quê? A insatisfação nas hostes mercadistas deve ser enfrentada com paciência e tranquilidade. Com diálogo e medidas consistentes, essas reações talvez possam ser mitigadas. Não acredito muito, confesso, mas manifesto a esperança.

Se fosse economista, o Lula atual seria um desenvolvimentista, keynesiano e heterodoxo. Não é à toa que a turma da bufunfa dá “arrancos triunfais de cachorro atropelado”, como diria Nelson Rodrigues. Não sendo economista, é natural que o Presidente dê escorregões quando entra na seara econômica com mais especificidade. Trato de alguns deles na sequência. No fundamental, porém, ele está acertando.

A controvérsia suscitada pelos primeiros passos do governo é vasta. Vou tratar apenas de certas questões relacionadas ao Banco Central (BC), à política monetária e à política fiscal.

Causou celeuma, por exemplo, a opinião do Presidente sobre a sacrossanta autonomia do Banco Central. Lula lembrou que no Brasil “se brigou muito para ter um BC independente”, mas que, com sua experiência, pode dizer que é “uma bobagem achar que um BC independente vai fazer mais do que do que quando era o Presidente da República quem indicava”.  E acrescentou: “Duvido que o atual presidente do BC seja mais independente do que foi Meirelles’’, observando ainda que o BC, embora independente, não tem cumprido as metas de inflação nos anos recentes.

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Está certo o Presidente? Basicamente, sim, ainda que não em alguns pontos mais específicos. O BC brasileiro se tornou autônomo, não independente. Na literatura acadêmica – que presidente nenhum tem obrigação de conhecer – “independente” é o BC que fixa as próprias metas de inflação; “autônomo” o que busca as metas fixadas pelo governo. No Brasil, é o Conselho Monetário Nacional (CMN) que fixa as metas e o intervalo em torno do centro das metas.

Mas isso é, em parte ficção, o que dá razão a Lula. A influência do BC no CMN é grande, pois tem um dos três votos e exerce a secretaria. Na prática, o BC fixa as metas para si mesmo, pelo menos em certos períodos. Já escrevi sobre isso (ver “Conselho Monetário e Banco Central – uma revisão necessária”, 30 de maio de 2022). Agora, pelo que sei, o CMN será integrado pelo ministro Fernando Haddad, que o preside, pela ministra Simone Tebet e pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Admitindo-se que a Tebet siga uma linha mais conservadora, Haddad será minoria no CMN. E o BC talvez tenha condições, na prática, de continuar fixando as próprias metas.

Outro ponto é que, diferentemente do que sugere a fala de Lula, o presidente e os diretores do BC continuam sendo indicados pelo Presidente da República. O que mudou? Com a lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro, o comando da autoridade monetária tem mandatos fixos, não coincidentes com o do Presidente da República. Lula sabe disso, com certeza. O que ele quis dizer?  A meu juízo, que o atual presidente do BC não será mais independente do que foi Henrique Meirelles, presidente do BC durante o Lula 1 e o Lula 2. Lei de autonomia ou não, Roberto Campos Neto terá de coordenar a política monetária com a política fiscal e outros aspectos da política econômica, como ocorre, aliás, em todos ou quase todos os países. Espero que isso aconteça realmente. Veremos.

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Lula declarou, ainda, que uma meta de inflação excessivamente ambiciosa atrapalha o crescimento econômico. “Por que não estabelecer 4,5%, como fizemos nos meus mandatos anteriores?”, indagou. A controvérsia a esse respeito é internacional e ocorre também nos países desenvolvidos, onde também se questiona se os bancos centrais não fixaram metas de inflação excessivamente ambiciosas. A opinião do Presidente da República é defensável – conta com apoio de muitos especialistas tanto aqui como no exterior.

No Brasil, as metas atuais são de 3,25% para 2023 e de 3% para 2024. Este é o centro das metas, que têm um intervalo de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo em torno desse centro. Seria perfeitamente razoável, na próxima ocasião em que o CMN se reunir para tratar do tema, aumentar um pouco o centro da meta de 2024 e 2025, digamos para 3,25% e o intervalo para 2 pontos percentuais. O teto da meta ficaria assim em 5,25%. Um ajuste minimalista que, entretanto, reduziria a pressão para que o BC mantivesse juros altos demais, prejudicando o crescimento, o emprego e as finanças públicas. Repare, leitor(a), que a taxa básica de juro fixada pelo BC afeta as finanças públicas direta e indiretamente, por pelo menos dois canais: diretamente, via custo da dívida pública interna; indiretamente, via produto e emprego.

No campo fiscal, o governo Lula tem tomado decisões importantes. Destaco duas. Primeira: no conjunto de iniciativas fiscais anunciadas pelo ministro Fernando Haddad em janeiro, foram propostas, por Medida Provisória, mudanças o âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que corrigem distorções gritantes. A mudança mais significativa foi a volta do chamado voto de qualidade, isto é, voto de desempate da União. Durante o governo Bolsonaro, havia sido aprovada no Congresso uma medida que suprimia o voto de qualidade e dava ganho de causa ao contribuinte em caso de empate no CARF. Num Conselho paritário, com número igual de membros da Fazenda e dos contribuintes, essa medida vinha levando a derrotas sucessivas da União. A Medida Provisória de Haddad suscitou protestos das grandes empresas e dos advogados tributaristas que ganham fortunas defendendo essas empresas. Bom sinal? Ou ótimo?

Segunda decisão: a manobra inteligente e habilidosa de eliminar o famigerado teto de gastos, criado no governo Temer, já na PEC de transição. Ficou estabelecido que nova regra ou âncora fiscal, definida em lei complementar, substituirá o teto constitucional de gastos. Ponto. De 2024 em diante, o teto Temer deixa de existir. Um drible sensacional, daqueles de deixar o adversário no chão.

Em resumo, Lula está batendo um bolão como economista.

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Covid-19, emergência global

Covid-19 ainda é emergência global, mas está em “ponto de transição”

Decisão do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional é apoiada pelo diretor-geral da OMS; grupo sugere mecanismo alternativo para manter foco internacional na doença.
ONU News

 

A Organização Mundial da Saúde, OMS, considera a Covid-19 ainda uma emergência de saúde global, mas afirma que a pandemia está num ponto de transição.

Em nota, a agência anuncia as decisões da 14ª reunião o Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional sobre Covid-19.

Emergência de saúde pública de interesse internacional

No pronunciamento desta segunda-feira, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, disse concordar com a recomendação sobre a continuação da declaração da Covid-19 como emergência de saúde pública de interesse internacional.

Os especialistas recomendam à OMS que adote “mecanismos alternativos para manter o foco global e nacional no Covid-19 após o término da emergência.

Estima-se que acima de 170 mil pessoas perderam a vida devido à pandemia nas últimas oito semanas. No total, 752,5 milhões de casos foram confirmados e 6,8 milhões de mortes em todo o mundo. Ao todo, foram aplicadas mais de 13,156 milhões de vacinas contra a doença.

Ação de saúde pública de longo prazo

Tedros Ghebreyesus lembrou que o número real de mortes pode ser muito maior. Ele acredita que mais pode ser feito para lidar com as vulnerabilidades das populações e dos sistemas de saúde.

O comitê indica como medidas “atingir níveis mais altos de imunidade populacional globalmente, seja por meio de infecção e/ou vacinação tanto na morbidade como na mortalidade”. Para os especialistas, há poucas dúvidas de que o “vírus continuará sendo um patógeno estabelecido permanentemente em humanos e animais para um futuro próximo”.

Nestas circunstâncias, Tedros diz que uma ação de saúde pública de longo prazo é extremamente necessária.

Para os especialistas, embora “a eliminação do vírus de humanos e animais seja altamente improvável, a mitigação de seu impacto arrasador na morbidade e mortalidade é alcançável e deve continuar a ser uma meta prioritária”.

Evitar um ciclo de pânico e negligência

Em relação às recomendações temporárias, o chefe da OMS reiterou que os países devem continuar vacinando e fazendo da imunização contra a Covid-19 um cuidado de rotina.

O chefe da agência apoia ainda a melhora da vigilância, manutenção de um forte sistema de saúde para evitar um “ciclo de pânico e negligência” e que siga o combate à desinformação e ajuste de medidas de viagens internacionais com base na avaliação de risco.

Em janeiro de 2020, a OMS declarou a Covid-19 uma emergência de saúde pública internacional, cerca de seis semanas antes de apontar a doença como uma pandemia.

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Fotografia: cena rural

 

Welly Freitas*

*Professora, fotógrafa amadora
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30 janeiro 2023

Punição exemplar

A nossa Noite dos Cristais e um Tribunal de Nuremberg

É imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia.
Luiz Werneck Viana/Vermelho www.vermelho.org.br

 

O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que seus poemas nasciam do espanto a que era acometido diante dos incidentes da vida, daí lhe viria a inspiração em que o inesperado deflagrava nele o impulso para fixar num poema a sua percepção do que sentia sobre a experiência vivida. Gullar nos deixou uma obra genial, mas o tamanho do espanto que sentimos com os fatos calamitosos desse inesquecível dia 8 de janeiro que não abandonam a nossa memória não nos têm conduzido às sendas da criação, e já se ouvem vozes que nos sugerem ir em frente, passar um pano e voltarmos ao regaço do cotidiano de sempre.

O dia 8 de janeiro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito um pogrom num bairro judeu destruindo suas lojas.

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Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.

Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988. Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto Schartz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.

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O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.

Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de janeiro ocorra mais uma vez.

Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tf

Palavra de poeta: Chico de Assis

O TUDO OU NADA

Chico de Assis*
 
Que pranto me espera
para além da travessia?
Nem sei bem do que preciso
para enfrentar a tormenta.
 
Só sei que sinto o amargor
de um tempo dissipado
entre loucuras do desejo
e a recusa de um beijo.
 
Talvez fosse só isso o que eu queria.
Ou talvez nada quisesse.
Senão sentir que o nada
as vezes pode ser tudo.


[Ilustração: Gil Vicente]


*Advogado, poeta
O mosaico da vida que segue https://bit.ly/3Ye45TD

Humor de resistência: Miguel Paiva

 

Miguel Paiva

O caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD

Nova vacina contra covid

Saiba se você tomará a nova vacina da Pfizer no fim de fevereiro. Ministério da Saúde anunciou que a aplicação das vacinas de segunda geração começa em 27 de fevereiro. Leia aqui https://bit.ly/3RkPkeB

Espionagem

Emirados Árabes, laboratório mundial da vigilância cibernética
Em duas décadas, os dirigentes da federação dos Emirados Árabes Unidos adquiriram importantes meios digitais para fiscalizar e controlar sua população, inclusive a mão de obra estrangeira. A ponto de, hoje em dia, exportar essa tecnologia
Éva Thiébaud/Le Monde Diplomatique



O telefone do taxista toca novamente. Seguimos pela rodovia de quatro pistas entre Abu Dhabi, cidade conservadora e riquíssima capital dos Emirados Árabes Unidos, e a liberal Dubai, meca do turismo e hub do comércio internacional. Agora é meu telefone que vibra. Uma mensagem avisa que acabou de acontecer um acidente na rodovia. Nem eu nem o motorista nos inscrevemos em lugar nenhum para sermos avisados em caso de problemas, mas o alerta chegou. Observamos a estrada: o acidente foi do outro lado.

O recebimento da mensagem ajuda a ilustrar o permanente controle digital, supostamente com o objetivo de oferecer conforto e tranquilidade, que faz parte da vida cotidiana dos Emirados, cujos habitantes são os maiores consumidores de dados móveis do mundo, com uma média de 18 GB por pessoa ao mês.1

“A tecnologia digital está muito integrada à vida dos emiradenses”, explica James Shires, pesquisador de seguran&ccedi l;a cibernética da Universidade de Leiden, nos Países Baixos. “Fascinados pela modernidade, eles se apresentam como líderes tecnológicos, vangloriam-se de suas cidades conectadas (smart cities) e da facilidade do cotidiano pela tecnologia digital. O outro lado da moeda é que tudo é rastreado e coletado.” O constrangimento não passa despercebido aos emiradenses, mas alguns o consideram necessário em um país exposto a inúmeras ameaças geopolíticas. “A digitalização leva à prosperidade econômica ao mesmo tempo que melhora a segurança”, avalia o professor universitário emiradense Abdulkhaleq Abdulla. “Nesse contexto, muitas pessoas estariam di spostas a fazer concessões entre isso e seu direito à privacidade.” O controle é facilitado por uma população de tamanho limitado – 10 milhões de habitantes, sendo 10% emiradenses, 30% árabes ou iranianos, 50% sudeste-asiáticos e 10% ocidentais. “Os emiradenses são uma minoria em seu próprio país. A tecnologia de vigilância também os ajuda a criar uma onipresença”, comenta Andreas Krieg, pesquisador especializado em segurança do King’s College de Londres.

Os entraves que a vigilância em massa impõe à liberdade de expressão são facilmente reconhecidos por nossos in terlocutores. Muitos preferem desligar o telefone quando falam sobre assuntos delicados, enquanto outros acreditam que nem essa precaução é suficiente. “Supomos, ou sabemos, que estamos sob vigilância permanente e que não devemos enviar mensagens de teor político, inclusive pelo WhatsApp”, explica um expatriado europeu que prefere manter o anonimato. A exigência de discrição é a mesma para dois pesquisadores que vivem ali. “Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos foram um ponto de inflexão neste país”, explica um deles. “O evento fez surgir uma rejeição categórica de qualquer forma de islã político e acirrou a vigilância sobre as mesquitas.” Dependentes da mão de obra estrangeira, os Emirados Árabes também mudaram sua política migratória. “Até então, o pa ís recebia muitos migrantes oriundos de países árabes”, continua o segundo pesquisador. “Após o 11 de Setembro, foram reforçadas as verificações de antecedentes de alguns deles, sobretudo quando se trata de profissões ligadas aos setores educacional e religioso. Já os migrantes do Sudeste Asiático, considerados mais dóceis, passaram a obter visto com muito mais facilidade.”

Mas não basta monitorar o islã e as migrações. Por meio do controle majoritário dos dois operadores nacionais , o governo exerce o direito de fiscalizar as comunicações, que se tornam acessíveis a seus serviços de segurança. “A Etisalat e a Du [antiga Emirates Integrated Telecommunications Company] são obrigadas a filtrar o conteúdo que circula em suas redes de acordo com as prioridades do Estado”, observa a esse respeito o escritório de advocacia Simmons & Simmons.2 Na internet, essa filtragem é realizada por meio de sondas e softwares que verificam o tráfego: a inspeção profunda de pacotes de dados dá acesso aos metadados, ou seja, a quem se conecta com quem ou a quê e quando, bem como ao conteúdo das comunicações não criptografadas. 

Comprometimento a longo prazo

As tecnologias necessárias são compradas pelos Emirados Árabes no Ocidente, por exemplo, da empresa norte-americana McAfee. 3 “Assim como se passa em relação às armas convencionais, as vendas de ferramentas de vigilância não são simples operações comerciais”, explica Tony Fortin, do Observatório dos Armamentos, uma associação que milita por mais transparência para a questão dos equipamentos de guerra. “Elas são parcerias de inteligência que comprometem os países envolvidos a longo prazo.” E é por causa dessas parcerias e do grande número de cabos digitais que passam pelo território dos Emirados Árabes que Shires acredita ser provável “que Abu Dhabi tenha passivamente coletado dados e os tenha fornecido ao governo dos Estados Unidos&rdq uo; no contexto da luta contra o terrorismo.

Após os atentados do 11 de Setembro, os levantes populares árabes de 2011 reforçaram nas autoridades o desejo de monitorar e reprimir tudo o que designam pela expressão inimigo interno. Em março de 2011, mesmo com a renúncia dos presidentes da Tunísia e do Egito, uma petição pela reforma democrática nos Emirados Árabes foi dirigida ao líder do país, Khalifa bin Zayed al-Nahyan. Pouco depois, um de seus signatários, Ahmed Mansoor, um engenheiro que milita pela defesa dos direitos humanos, e quatro de seus companheiros foram presos e condenados – em seguida, acabaram recebendo perdão da pena. “O ano de 2011 foi um ponto de inflexão brutal na segurança”, recorda um pesquisador universitário. “Para lutar contra o que se considerava um risco de contágio das revoltas no mundo árabe, os Emirados Árabes lançaram mão do espantalho do extremismo religioso para endurecer ainda mais a segurança e legitimar a repressão”. A Irmandade Mu çulmana, muito ativa no Egito e com muitos contatos na Península Arábica, foi particularmente visada. Popular e com chances de vencer eventuais eleições em diversos países árabes em caso de transição democrática, a Irmandade era então apoiada pelo Catar, com quem os Emirados Árabes mantêm uma forte rivalidade.

Para reforçar a vigilância e cortar pela raiz qualquer forma de contestação política, em 2012 foi criada a Aut oridade Nacional de Segurança Eletrônica (Nesa), com possibilidade de acessar todas as comunicações do país. A instância está sob a autoridade do Conselho Supremo de Segurança Nacional, cujo diretor adjunto é ninguém menos que Tahnoun bin Zayed al-Nahyan (TBZ), meio-irmão do presidente da federação, irmão do príncipe herdeiro e verdadeiro homem forte dos Emirados Árabes, Mohammed bin Zayed al-Nahyan (MBZ). Além do controle das telecomunicações, as redes sociais foram colocadas sob um pente fino e passaram a ser constantemente monitoradas. “Na época da Primavera Árabe, essas redes permitiam a livre expressão dos povos e foram percebidas como uma tecnologia de libertação”, comenta Krieg. “Então passaram a ser altamente regulamentadas.” A vigilância visual também está se d esenvolvendo, com a instalação de milhares de câmeras nas ruas de Abu Dhabi, Dubai e nos outros cinco emirados.

A defesa que as autoridades fazem desse sistema de vigilância de todos e em todos os momentos é clássica. Ela permitiria reg ular o comportamento dos indivíduos – nos comportamos de maneira diferente quando sabemos ou acreditamos estar sendo observados. No caso de um ataque “terrorista”, ela ofereceria a possibilidade de retomar os eventos a posteriori e identificar os autores. A vigilância em massa também permitiria detectar pessoas que devem ser monitoradas, com a ajuda de ferramentas de inteligência artificial que percorrem e cruzam as massas de dados coletados para localizar comportamentos considerados suspeitos. “No entanto, as ferramentas analíticas usadas para extrair informações ditas ‘utilizáveis’ a partir de grandes conjuntos de dados ainda não deram resultado [contra o terrorismo]”, alerta o criminologista canadense Stéphane Leman-Langlois.4 Porém, ainda que sua eficácia seja questionada, essas ferramentas são muito populares nos Emirados Árabes. E, entre os softwares de processamento de grandes massas de dados, está o Gotham, produzido pela norte-americana Palantir, uma fornecedora das agências de inteligência dos Estados Unidos, bem como da Direção-Geral de Segurança Interna (DGSI) francesa, que se instalou em Abu Dhabi. “Esse software foi vendido sem nenhuma transparência para muitos consumidores em todo o mundo e tem um forte mercado no Golfo”, continua Shires. “É preciso observar que o software sozinho não resolve: ele precisa ser manuseado por especialist as.”

Técnicas sofisticadas

As empresas que fornecem ferramentas para os serviços de inteligência dos Emirados Árabes precisam treinar os agentes para u tilizar esses instrumentos altamente técnicos. No caso dos Emirados, os especialistas em inteligência ocidentais foram ainda mais longe: Lori Stroud, ex-agente da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, revelou à Reuters que a divisão da Nesa especializada em ciberofensiva – isto é, na implantação de programas espiões nos telefones ou computadores de alvos – contratou para executar suas atividades a CyberPoint, empresa norte-americana na qual Stroud foi contratada em 2014. Assim, segundo ela, entre dez e vinte ex-agentes da NSA tinham de cumprir sua missão por alguns anos, até que os agentes dos Emirados fossem suficientemente qualificados para assumir.5

E esses mesmos cidadãos norte-americanos dedicados à luta contra o terrorismo aderiram aos objetivos anti-Primavera Árabe d os Emirados Árabes, lançando inclusive ataques recorrentes contra Mansoor. Mas a CyberPoint não podia ultrapassar certos limites, como hackear o material de cidadãos ou de empresas norte-americanas. Para se libertar desses limites, os Emirados Árabes decidiram, em meados da década de 2010, criar sua própria estrutura, a Darkmatter, que desviou a preço de ouro alguns dos ex-agentes dos Estados Unidos que trabalhavam para a CyberPoint. Três deles – Marc Baier, Ryan Adams e David Gericke – foram condenados, em setembro de 2021, por um tribunal federal norte-americano, a multas de várias centenas de milhares de dólares, correspondentes aos emolumentos dos Emirados Árabes recebidos no âmbito das operações de desestabilização do Catar, como também por operações de vigilância contra alvos dos Estados Unidos. No julgamento de setembro de 2021 do tribunal norte-americano de Columbia contra os três ex-agentes que tinham trabalhado para a Darkmatter, foi observado que “os acusados obtiveram, utilizaram e possuíram de forma fraudulenta dispositivos […] para acessar computadores protegidos localizados nos Estados Unidos”.

Ao longo do tempo, a vigilância foi sendo reforçada com técnicas cada vez mais sofisticadas. Agora sob os holofotes por caus a do escândalo de espionagem de diversos políticos e jornalistas ocidentais, o software Pegasus, da empresa israelense NSO Group, foi usado contra Mansoor, que em 2017 foi condenado a dez anos de prisão por “atentar contra a reputação do Estado”.6 O software incriminado foi a priori vendido com conhecimento de causa por Israel. “Tudo o que fazemos, fazemos com a permissão do governo de Israel”, disse à revista The New Yorker o fundador da NSO, Hulio Shalev.7

“Essa vigilância não serve apenas para extrair informações. Ela funciona também e principalmente como um a tática de intimidação e repressão. Infiltrar-se na vida privada, espionar as comunicações com familiares e entes queridos, isso constitui uma forma de violência psicológica que tem o objetivo de silenciar”, estima Marwa Fatafta, da associação de defesa dos direitos civis digitais Access Now. “O que eu falei? Como as informações pessoais que eles têm podem ser um dia usadas contra mim? As mulheres são particularmente vulneráveis nesse ponto”, insiste a militante de origem palestina que hoje vive na Europa. A jornalista da Al Jazeera Ghada Oueiss ficou consternada ao descobrir imagens suas de maiô no Twitter – fotos hackeadas de seu próprio telefone. Ela apresentou uma queixa em um tribunal dos Estados Unidos contra o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman (MBS), contra MBZ – que se tornou o homem forte dos Emirados Ár abes desde o acidente vascular de seu meio-irmão Khalifa em 2014 – e contra a companhia Darkmatter.

Quem pode ser alvo da vigilância dos Emirados Árabes? As várias respostas obtidas para essa pergunta convergem antes de mais nada para uma incerteza habilmente mantida pelas autoridades. Nada é claro, o que alimenta uma sensação de onipresença da vigilância. Assim, conforme diz um professor universitário, “pesquisadores e jornalistas trabalham com medo de cruzar linhas vermelhas que nem sempre são fáceis de identificar. Também é possível que, além do conteúdo, o idioma usado seja importante e que um texto publicado em árabe ou em inglês seja considerado mais sensível do que um escrito em alemão ou em francês”. 

Sem segredo para o governo

Após a reportagem da Reuters, as atividades da Darkmatter podem ter sido transferidas para novas estruturas. “Essa é uma est ratégia clássica desse tipo de empresa”, explica Fatafta, da Access Now. “Ela se desintegra… depois reaparece com outro nome.” Uma nova empresa dos Emirados Árabes, a Groupe 42 (G42) logo chamou a atenção. Presidida por TBZ, que nesse meio-tempo se tornou conselheiro supremo de Segurança Nacional, a G42 se apresenta como especializada em inteligência artificial e computação em nuvem (cloud computing). Ela está por trás do sistema de mensagens ToTok, que desde 2019 oferece um serviço de chamadas telefônicas pela internet (VoIP), enquanto os aplicativos internacionais clássicos, como WhatsApp e Skype, são proibidos nos Emirados Árabes. O ToTok já tinha sido baixado milhões de vezes quando uma reportagem do jornal The New York Times revelou que as infor mações compartilhadas pelos usuários não eram segredo para o governo emiradense.8

De passagem, o jornal observa que o aplicativo de mensagens foi projetado com base no aplicativo chinês YeeCall. Para desgosto dos Estados Unidos, os emiradenses recorrem cada vez mais ao gigante asiático para saciar sua sede de tecnologia digital. E a escolha feita pelos Emirados Árabes de confiar sua futura rede 5G à operadora chinesa Huawei chegou a acirrar as tensões com os Estados Unidos. Em 2020, na Conferência de Segurança de Munique, Mike Pompeo, então secretário de Estado dos Estados Unidos, lançou um aviso inequívoco: “A Huawei e outras empresas de tecnologia apoiadas pela China são cavalos de Troia da inteligência chinesa”. Os norte-americanos então pressionaram os Emirados Árabes: o país só poderia adquirir seus aviões de guerra de última geração, os F-35, se abrisse mão da parceria com a China. Esforço em vão. “O desafio da digitalização era muito importante para nós”, explicou Abdulla. “Foi uma esc olha difícil, mas preferimos o 5G chinês.” Quem saiu ganhando com a briga foi a França, que colocará oitenta aeronaves do tipo Rafale no lugar dos F-35.

As relações entre os Emirados Árabes e a China poderiam se desenvolver ainda mais? “Os Emirados Árabes veem os Estados Unidos como uma potência em declínio e a China como uma potência em ascensão. Além disso, esta não se deixa embaraçar pelo respeito à privacidade, podendo coletar enormes massas de dados nas quais baseia sua pesquisa sobre inteligência artificial”, explica Krieg. “Os Emirados Árabes acreditam que a guerra do futuro será acima de tudo digital, por isso apostam no desenvolvimento dessas tecnologias chinesas.” E, para mostrar ao mundo seu desejo de estar na vanguarda da vigilância, no fim de novembro o país sediou uma reunião de especialistas em inteligência geoespacial para fins militares e securitários.

Um eldorado para os vendedores de programas espiões

Os dirigentes dos Emirados Árabes Unidos sonham com uma sociedade totalmente digitalizada, na qual a maior quantidade possível de atos da vida cotidiana seja informatizada. Para isso, planejam investir maciçamente em tecnologias de informação e comunicação: segundo Frédéric Szabo, diretor da Business France nos Emirados Árabes, os gastos nessa área devem chegar a US$ 23 bilhões em 2024, o que implica uma taxa de crescimento anual de 8% no período 2019-2024.1 As empresas internacionais do setor, claro, correm para se instalar e crescer dentro da federação – e, entre elas, as que fornecem serviços ou equipamentos de vigilância. Além das empresas norte-americanas ali estabelecidas, como a IBM e a Palantir, a recente normalização das relações com Israel permitiu um estreitamento dos laços com empresas israelenses, como a Rafael Advanced Defense Systems. Empresas chinesas como a SenseTime e a Hikvision também estão se estabelecendo… e não podemos esquecer os grupos franceses. A grande empresa de eletrônicos de defesa Thales planeja fortalecer uma de suas unidades nos Emirados Árabes Unidos, a Thales Emarat Technologies. Reunindo cerca de uma centena de colaboradores, a filial tem hoje inclusive um centro de serviços de defesa; para “desenvolver as capacidades soberanas dos Emirados”, sua atividade deve ser reforçada e complementada por um centro de segurança digital capaz de lidar com as áreas da “cibernética, crip tografia e identificação” – com a previsão de um total de trezentos colaboradores até 2024.

“Centenas de empresas estão se instalando nos Emirados com objetivos comerciais. Algumas também aproveitam as fragilidades d a regulamentação para reexportar”, comenta Cathryn Grothe, que trabalha com tecnologia e democracia no Oriente Médio para a ONG Freedom House. Vários modelos foram criados: empresas de importação-exportação podem servir de ligação entre países difíceis de acessar diretamente e fornecedores de tecnologias ocidentais. Assim, para obter os produtos da empresa norte-americana Blue Coat Systems, que permitem observar e filtrar o tráfego de internet, a Síria de Bashar al-Assad passou pela intermediária Computerlinks FZCO, uma unidade na zona franca de Dubai da empresa de origem alemã Computerlinks.2 Com a revelação do caso, a unidade dos Emirados Árabes foi condenada pelo Bureau of Industry and Security dos Estados Unidos em abril de 2013 por violar as regras de exportação nacionais; e foi multada em US$ 2,8 milhões. Em 2013, a Computerlinks foi comprada pela norte-americana Arrow Electronics; em 2019, a atividade na região foi finalmente assumida por uma filial do Midis Group (que reúne muitos distribuidores de produtos de informática), chamada Mindware. Seu diretor, Philippe Jarre, no entanto, garante que as práticas passadas não existem mais. Outra empresa presente no local, a Digital Forensic Dubai, revende equipamentos e programas computacionais legais de diversos fabricantes, a exemplo da israelense Cellebrite. Para quem? Mistério. “Não há regulamentação para controlar o que acontece nas zonas francas”, comenta Grothe.

“Os Emirados são uma zona cinzenta, onde ninguém se mete em seus negócios. Os países fingem combater esse tipo de lugar, mas na verdade precisam deles”, avalia o pesquisador em cibersegurança Sébastien Larinier. “As unidades instaladas nos Emirados permitem ‘proliferar’ no Oriente Médio em total discrição”, acrescenta Tony Fortin, do Observatório dos Armamentos. Em outras palavras, permitem aumentar as vendas sem restrições. Podemos, por exemplo, comprar de Dubai os produtos oferecidos por empresas ligadas à holding francesa Boss Industries, como a Trovicor, companhia especializada em programas espiões, e a Nexa Technologies, especializada em análise de tráfego na internet? Quando essa pergunta foi feita no estande da Trovicor durante a feira de segurança Milipol Paris, em outubro de 2021, pediram gentil, mas insistentemente, que fôssemos dar uma volta. No entanto, segundo o jornalista Olivier Tesquet, foi por meio de uma subsidiária de Dubai, a Advanced Middle East Systems, que o Egipto de Abdel Fattah al-Sissi conseguiu o sistema de vigilância e filtragem na internet da Nexa Technologies3 – uma aquisição que permitiu ao regime caçar seus oponentes. Após uma denúncia apresentada pela Federação Internacional de Direitos Humanos e pela Liga dos Direitos Humanos, quatro dirigentes da Nexa Technologies foram indiciados, em junho de 2021, pelo polo de crimes contra a humanidade, crimes e delitos de guerra do Tribunal Judicial de Paris por cumplicidade em torturas e desaparecimentos forçados. Essas duas associações também apresentaram queixa contra os dirigentes dessa empresa pela venda de tecnologia de vigi lância ao regime líbio de Muamar Kadafi, em 2007.

Assim, nos Emirados Árabes, algumas empresas intermediárias garantem a transmissão de equipamentos e programas de um pa&iac ute;s para outro.

Outras se encarregam dos pagamentos. A Al Fahad, agora uma filial da empresa estatal dos Emirados Árabes especializada em soluções de segurança tecnológicas Etimad, teria servido regularmente como intermediária entre empresas ocidentais e seus clientes, em particular marroquinos e egípcios. Sem que seja possível vinculá-la a determinada venda, o nome da Al Fahad aparece em 2011 em documentos internos da empresa Qosmos – companhia francesa de softwares de análise de tráfego na internet. Suspeita em uma investigação na França de ter fornecido ferramentas de vigilância ao regime sírio, a Qosmos acabou tendo o caso contra ela cancelado pelo juiz em 2021. Documentos bancários mostram que, no início dos anos 2010, a Al Fahad teria pago diversos montantes à empresa francesa Amesys – que depois se tornou a Nexa Technologies – no âmbito da venda ao Marrocos de seu software de análise de tráfego de internet.4 Segundo Tesquet, ainda encontramos a Al Fahad, em 2013, como intermediária entre a Nexa e o Egito.

As companhias francesas, porém, não são as únicas a fazer negócios com a Al Fahad. Segundo uma série d e e-mails internos publicados no WikiLeaks, a empresa italiana Hacking Team teria também vendido, em 2011, seu programa espião à Direção de Vigilância Territorial do Marrocos por meio dessa empresa dos Emirados Árabes. Que depois pagou as faturas pela aquisição e manutenção do software, bem como pagou durante vários anos as faturas da Hacking Team submetidas a outra estrutura de inteligência marroquina, o Conselho Superior de Defesa Nacional. Por que os emiradenses pagariam pelas despesas de equipamentos e programas de vigilância de países como o Marrocos ou o Egito? “Os Emirados Árabes Unidos estão fazendo projetos no Marrocos por meio da Al Fahad”, explica sucintamente um vendedor da Hacking Team a seus superiores por e-mail. “É uma forma de fazer diplomacia com um país terceiro”, sugere o pesquisador James Shires. “No caso do negócio da Nexa com o Egito, é provável que o apoio financeiro dos Emirados tenha sido acompanhado do compartilhamento de dados”, acrescenta. Dados que podem ser explorados pelos serviços dos Emirados, bem como pelos da França. (É.T.)
 
1 Sarah Pineau, “L’orient, nouvel eldorado du cyber?” [Oriente, o novo eldorado cibernético?], S&D Magazine, Denguin, 22 out. 2021.
2 Jennifer Valentino-DeVries, Paul Sonne e Nour Malas, “U.S. Firm Acknowledges Syria Uses Its Gear to Block Web” [Empresa dos Estado s Unidos reconhece que a Síria usa seu equipamento para bloquear a web], The Wall Street Journal, Nova York, 29 out. 2011.
3 Olivier Tesquet, “Amesys: les tribulation égyptiennes d’un marchand d’armes numériques français” [Amesys: as tribulações egípcias de um traficante de armas digitais francês], Télérama, Paris, 5 jul. 2017.
4 “Maroc: Popcorn, le projet qui n’existait pas” [Marrocos: Popcorn, o projeto que não existia], Reflets.info, 15 nov. 2017. 

Uma regulamentação permissiva

Ao expor, em 2013, a captura generalizada de metadados de chamadas telefônicas nos Estados Unidos, bem como diversos programas de escuta e controle em massa da internet pelos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido, Edward Snowden foi o primeiro a revelar a extensão da vigilância em massa. Em 2021, o escândalo Pegasus mostrou o uso generalizado de softwares de vigilância direcionada pelos países – democracias ou não. Multiplicaram-se as ações judiciais contra a empresa israelense incriminada, a NSO Group, e contra os países presumidamente por trás dessas escutas.

No entanto, para além das ações jurídicas, o escândalo Pegasus revelou principalmente as lacunas da legisla&cc edil;ão nacional e internacional sobre a compra e a venda de ferramentas de vigilância. Geralmente diferenciados das armas convencionais, esses softwares e equipamentos são considerados “bens de uso duplo” – isto é, produtos ou tecnologias que podem servir tanto para uso civil quanto militar, como a energia nuclear e os produtos químicos. Apesar dessa classificação, é preciso observar que o papel das ferramentas de cibervigilância consiste essencialmente em monitorar a atividade dos usuários em uma óptica de controle.

Para regulamentar as exportações internacionais de bens de uso duplo, o Acordo de Wassenaar (1996) propõe uma lista evoluti va de produtos e tecnologias que seus 42 Estados signatários devem monitorar. Mas esse acordo não é obrigatório e está longe de ser adotado por todos os países do mundo, o que pode ser ilustrado pela ausência da China e de Israel. Na União Europeia, cujos países são todos signatários, a lista foi transposta para um regulamento de 2009 sobre itens de uso duplo, revisado em 2021. A revisão melhorou a transparência no assunto: os membros agora devem tornar públicas informações sobre as licenças de exportação, aprovadas ou recusadas. Porém, as ONGs permanecem céticas. “A regulamentação deveria impor garantias contra a violação dos direitos humanos, revogações de licenças de exportação para empresas que contribuem para abusos, bem como mecanismos para que as vítimas poss am buscar reparação”, avalia Likhita Banerji, do programa Tecnologia e Direitos Humanos da Anistia Internacional.

Do outro lado do Atlântico, o escândalo Pegasus levou o Departamento de Comércio dos Estados Unidos a adicionar a NSO Group, além de vários outros fabricantes de programas espiões, a uma lista de entidades cujas atividades são consideradas violadoras da segurança nacional ou dos interesses da política externa dos Estados Unidos. A partir de agora, um mecanismo de licenciamento regulará as trocas entre empresas norte-americanas e a empresa israelense.

Uma medida bem menos drástica do que a moratória sobre os programas espiões reivindicada por diversas ONGs até que seja estabelecido um marco regulatório que proteja os direitos humanos. Apenas a Costa Rica se pronunciou a favor dessa medida até o momento. (É.T.)
 
*Éva Thiébaud é jornalista.
 
1 “Les pays du Golfe, laboratoires de la 5G” [Países do Golfo, o laboratório do 5G], Les Échos, Paris, 21 out. 2021.
2 Simmons & Simmons, “In brief: telecoms regulation in United Arab Emirates” [Resumo: regulamentação das telecomun icações nos Emirados Árabes Unidos], Lexology, 24 jun. 2021.
3 Helmi Noman e Jillian C. York, “West censoring East: the use of western technologies by Middle East censors, 2010-2011” [Ocidente censura o Oriente: o uso de tecnologias ocidentais pelos censores do Oriente Médio, 2010-2011], OpenNet Initiative, mar. 2011.
4 Ler “Big data against terrorism” [Big data contra o terrorismo]. In: David Lyon e Davi d Murakami Wood, “Big data surveillance and security intelligence: The canadian case” [Vigilância de big data e inteligência de segurança: o caso canadense], University of British Columbia Press, Vancouver, 2020.
5 Christopher Bing e Joel Schectman, “Inside the UAE’s secret hacking team of American mercenaries” [Por dentro da equipe secr eta de hackers mercenários norte-americanos mantida pelos EAU], Reuters, 30 jan. 2019.
6 Cf. “The Persecution of Ahmed Mansoor. How the United Arab Emirates silenced its most famous human rights activist” [A persegui&cc edil;ão a Ahmed Mansoor. Como os Emirados Árabes Unidos silenciaram seu mais famoso ativista de direitos humanos], Human Rights Watch, 27 jan. 2021.
7 Ronan Farrow, “How democracies spy on their citizens” [Como as democracias espionam seus cidadãos], The New Yorker, 18 abr. 2022.
8 Mark Mazzetti, Nicole Perlroth e Ronen Bergman, “It seemed like a popular chat app. It’s secretly a spy tool” [Parecia um ap licativo de bate-papo popular. É uma ferramenta secreta de espionagem], The New York Times, 22 dez. 2019.

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