31 outubro 2023

Minha opinião

O voto e a luta política

Luciano Siqueira

Seria desperdício de tempo especular sobre os múltiplos fatores que influenciam o voto, tendo como referência os processos eleitorais como os conhecemos no Brasil, tentando tornar um deles "decisivo".

Entretanto, é de se supor — como bem atestava o ultra conservador e hábil Marco Maciel — que o desempenho da economia seja um dos fatores determinantes do ambiente eleitoral, favorável ou adverso às forças que governam.

Daí a estranheza de analistas de ocasião, que pululam na grande mídia, quanto ao resultado do primeiro turno no pleito presidencial na Argentina.

Quanto mais profunda e quase inadministrável a crise econômica, mais certeza haveria de que o candidato governista, Sergio Massa, atual ministro da economia, ficaria para trás.

O dito "voto econômico", como apressadamente denominam, favoreceria o ultra diretista e neoliberal Javier Milei.

Óbvio que a parada ainda não está resolvida, porém é significativo que Massa tenha passado ao segundo turno na dianteira.

O comportamento do eleitor — dado subjetivo que tem tudo a ver com a sua vida material — é mais complexo do que se imagina. 

Entre a consciência, superficial ou consistente, de cada cidadão e as suas condições de existência interfere o embate de ideias.

Ou seja, eleição é um episódio de luta política, em que dialogam realidade objetiva e fatores subjetivos permeados pela tática e pela ação de cada corrente litigante.

A simplificação reducionista não permite compreender o pleito argentino nem o que ocorreu há um ano atrás no Brasil, quando Lula ressurgiu qual Fênix e suplantou o atabalhoado e incompetente Bolsonaro, tido como fortíssimo para a reeleição, pois patrocinado pelo núcleo hegemônico da elite dominante, o rentismo e o agronegócio, e montado na máquina estatal.

Mesmo na era da comunicação cibernética, da superficialidade e do imediatismo e das fake news, a luta política bem orientada taticamente e corajosamente travada dá resultados.

O universo na mente humana https://bit.ly/3Ye45TD

Arte é vida

 

Joaquin Sorolla

A vida é uma interminável obra de arte https://bit.ly/3Ye45TD


Palavra de poeta: Conceição Evaristo

FI
LHOS NA RUA

Conceição Evaristo


O banzo renasce em mim.
Do negror de meus oceanos
a dor submerge revisitada
esfolando-me a pele
que se alevanta em sóis
e luas marcantes de um
tempo que aqui está.
O banzo renasce em mim
e a mulher da aldeia
pede e clama na chama negra
que lhe queima entre as pernas
o desejo de retomar
de recolher para
o seu útero-terra
as sementes
que o vento espalhou
pelas ruas…

[Ilustração: Francisco Rebolo]

A vida não se resume a um samba curto https://bit.ly/3Ye45TD

No meu Twitter

Zero para o Halloween e 10 para o Dia do Saci! Sou brasileiro.

Separar o joio e o trigo ttps://bit.ly/3Ye45TD

Humor de resistência: Ellus

 

Cellus

As voltas que o mundo dá https://bit.ly/3Ye45TD


Desigualdades no Brasil

Metade de todo crescimento do Brasil fica com os 5% mais ricos, diz autor de livro sobre desigualdade
Mariana Schreiber/BBC

Que o Brasil é extremamente desigual não é novidade para ninguém. Mas como exatamente essa desigualdade se distribui na sociedade? E o que isso significa para traçar melhores estratégias de distribuição de renda e redução da pobreza?

Essas são algumas das questões centrais do livro “Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade” (Companhia das Letras), nova obra do sociólogo Marcelo Medeiros, pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que há décadas estuda o tema e atualmente é professor visitante na Universidade Columbia, em Nova York.

Ao tentar explicar quem, afinal, são os ricos e os pobres brasileiros, Medeiros constata que o Brasil é formada por uma grande massa de pessoas de baixa renda, que compõe cerca de 80% da população.

Dentro desse grupo, descreve o sociólogo, a desigualdade é relativamente pequena. Há, claro, diferenças de renda dentro dessa massa, mas numa proporção muitíssimo menor do que a desigualdade que se vê no topo da pirâmide.

Para se ter uma ideia, analisando a distribuição de renda em valores de 2021, o livro destaca que metade dos adultos brasileiros não ganha mais de R$ 14 mil ao ano (menos de R$ 1.200 na média mensal).

Mesmo entre os “mais ricos” dentro dos 80% mais pobres o ganho anual não supera R$ 31 mil (cerca de R$ 2.600 na média mensal). Isso significa que quatro quintos da população adulta ganham menos que a média de um adulto brasileiro (cerca de R$ 33 mil ao ano).

Isso acontece porque o topo da pirâmide tem renda tão mais alta que puxa a média da renda para muita acima do que a maioria ganha de fato.

No caso do grupo dos 10% mais ricos, a renda não começa tão elevada. Os “mais pobres” desse grupo ganham em torno de R$ 50 mil por ano. Isso equivale ao salário aproximado de R$ 3.800 mensais de um trabalhador formal, que recebe décimo terceiro e adicional de férias, ressalta o autor.

A partir daí, porém, os patamares de renda começam a crescer num ritmo super acelerado, constata o livro. O 1% mais rico, por exemplo, é um grupo de pouco mais de 1,5 milhão de pessoas que ganham, no mínimo, R$ 340 mil por ano – quase sete vezes mais que aqueles que estão no começo dos 10% mais ricos. Mas as rendas do topo desse grupo vão muito além, enfatiza o autor.

“A maior parte da desigualdade do Brasil está nos 10% mais ricos. Eles são um grupo terrivelmente desigual”, resumiu, em entrevista à BBC News Brasil.

E a desigualdade no topo não é apenas de nível de renda, mas de como essa renda é taxada, destaca Medeiros. Trabalhadores assalariados, por exemplo, tendem a pagar um imposto mais alto que profissionais liberais ou investidores.

“Algumas dessas pessoas (no grupo dos 10% mais ricos) estão pagando bastante Imposto de Renda, por exemplo, e outras estão pagando muito menos Imposto de Renda”, afirma.

Aumentar a progressividade da tributação – ou seja, cobrar mais de quem ganha mais – é uma das medidas necessárias para promover a distribuição de renda, defende o sociólogo, mas nem de longe é suficiente. Na sua visão, enfrentar a colossal desigualdade brasileira tem que estar em toda a política de governo.

O próprio crescimento da economia, defende, precisa ser pensado como um crescimento pró-pobre. Ou seja, um crescimento que puxe a renda da base ao invés de beneficiar essencialmente o topo, como vem ocorrendo.

“Mais ou menos metade de todo o crescimento brasileiro está indo para as mãos só de 5% da população”, crítica.

Medeiros reconhece que é uma tarefa para décadas, que provocará muita resistência das elites e depende de “mobilizar um capital político monstruoso”.

“Reduzir dramaticamente a desigualdade e a pobreza no Brasil vai envolver muita mobilização política porque o problema é político antes de ele ser enfrentado do ponto de vista econômico”.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista, feita por telefone e editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil - É amplamente sabido que o Brasil é muito desigual. O que maioria das pessoas não sabe sobre a desigualdade brasileira?

Marcelo Medeiros - O ponto de partida desse livro é a constatação de que o Brasil é extremamente desigual e há uma grande massa de população de baixa renda que é separada de uma elite que é pequena, mas é bem mais rica do que a maior parte da população.

Algo como 80% da população são muito parecidos. A maior parte da desigualdade brasileira está na diferença entre os 10% mais ricos e o resto da população e as desigualdades internas dentro desse grupo dos 10% mais ricos.

Talvez não falte informação técnica (sobre a desigualdade), talvez falte interpretar o que isso significa. Eu vou lhe dar um exemplo. Estatisticamente a gente tem definições com linhas de pobreza. Quando você diz que uma linha de pobreza de 1,9 dólar ppp (taxa de câmbio que leva em conta o poder de compra do dinheiro local) define pobreza globalmente e essa linha aplicada no Brasil (o equivalente à cerca de R$ 5 por dia por pessoa, em valores de 2020) dá 12% da população, as pessoas sabem disso. O que elas não conseguem muito bem é ver o que isso significa.

Então eu tentei no livro traduzir essa noção estatística para algo concreto, como dar uma dimensão das privações gigantescas que uma mãe vai ter que fazer para comprar o material escolar da sua filha porque ela é pobre. Quantos dias ela vai precisar parar de comer para comprar um livro de matemática, por exemplo.

Então, talvez não seja uma questão de saber (que há muita desigualdade), talvez seja mais uma questão de incorporar isso de forma concreta e de começar a exigir a incorporação dessas coisas na formulação das políticas.

BBC News Brasil – Você diz que há uma grande massa de pessoas de baixa renda não muito diferentes entre si, enquanto há muita desigualdade entre os 10% mais ricos. Qual a implicação para o desenho das políticas contra a desigualdade?

Marcelo Medeiros - Isso traz duas implicações iniciais. A primeira é lembrar que uma linha de pobreza (no Brasil) divide uma população muito parecida de forma bastante artificial. E, porque existe pouca diferença entre os pobres e as pessoas de baixa renda, a gente não deve desenhar política ignorando que, ainda que as pessoas não sejam pobres, elas precisam muito das políticas públicas para tudo que elas fazem. Precisam muito da Previdência, dos serviços de saúde, dos serviços educacionais. Em alguma medida, elas também precisam de assistência (social).

Então, a gente não deve separar de maneira artificial demais os pobres das pessoas de baixa renda porque, na verdade, a massa de população brasileira é de baixa renda.

Outra coisa é importante é que as pessoas não são pobres, a maior parte das pessoas está pobre. Existe muita entrada e saída continuamente em torno da pobreza (pessoas cuja renda oscila abaixo e acima da linha de pobreza), e a gente também tem que aprender a lidar melhor com isso.

Isso do lado dos pobres. Do lado dos ricos, é importante parar de achar que existe um ponto a partir do qual se identifica claramente quem são as pessoas ricas. Não é a partir dos 10% (com maior renda), não é a partir dos 5% (com maior renda), não é a partir do 1% (com maior renda), porque todos esses grupos são extremamente heterogêneos.

Uma das implicações disso é que a gente deve focar melhor na progressividade de algumas políticas como, por exemplo, a tributação. Temos que melhorar nosso sistema tributário para lidar com o fato de que você está arrecadando renda de uma população extremamente desigual.

Tratar uma pessoa que está no 1% (de maior renda) da mesma forma que se trata a pessoa que está nos 10% (de maior renda) não é bom, assim como tratar uma pessoa que está no 0,1% (de maior renda) da mesma forma que você trata uma pessoa que tá no 1% (de maior renda), também não é bom. A gente tem que melhorar os nossos mecanismos de progressividade em tudo, inclusive no Imposto de Renda.

BBC News Brasil – Como avalia as ações do governo Lula nesses dez primeiros meses para combater desigualdade?

Marcelo Medeiros - Eu não estou fazendo acompanhamento das políticas no detalhe que precisaria para te dar uma resposta minimamente sólida sobre isso, e algumas medidas vão ser de longo prazo também. Eu tenho feito muito pouco avaliação de conjuntura pelo fato de ter saído do Brasil.

BBC News Brasil – O que deveria ser priorizado pelo governo para reduzir desigualdade no Brasil?

Marcelo Medeiros - Achar que há uma solução simples para um problema dessa magnitude não ajuda a resolver o problema. É um problema incrivelmente difícil, vai levar muito tempo, vai mobilizar um capital político monstruoso, porque, no fundo, você não produz um país com o nível de desigualdade brasileira só com um conjunto de fatores isolado.

Toda política tem que levar desigualdade em conta. Portanto, não existe uma prioridade. Não é uma questão, por exemplo, de educação, não é uma questão de apenas tributar as pessoas mais ricas, é uma combinação de uma série de políticas que vai tornar o Brasil um país menos desigual.

A ideia de fazer o livro é trazer conhecimentos sobre a desigualdade no Brasil para que esses conhecimentos possam ser incorporados em todas as políticas, e não apenas um conjunto específico de políticas.

BBC News Brasil – No livro, você aponta que a redução da pobreza e da desigualdade exige ações em várias frentes, como mais acesso à educação, mais serviços de proteção social, mudanças na tributação, além de crescimento econômico. Como fazer isso com as restrições fiscais que o governo enfrenta?

Marcelo Medeiros - Uma coisa que você mencionou, na verdade, não é importante para combater a desigualdade, que é a necessidade do crescimento econômico. Isso porque não existe o crescimento econômico do país. No Brasil, quem cresce (economicamente) são algumas pessoas e outras não, umas mais e outras menos. Então, é errado falar do Brasil crescendo, o certo é falar de quem no Brasil está crescendo mais e quem está crescendo menos.

Um crescimento pró-pobres é completamente diferente de um crescimento pró-ricos, embora o resultado final possa ser a mesma taxa de crescimento (do PIB). Então, na verdade, o que o Brasil precisa não é de crescimento, o que o Brasil precisa é de um crescimento pró-pobres. No sentido amplo da palavra, pró-pobres significando toda a população de baixa renda.

BBC News Brasil – O que fazer para o crescimento ser mais pró-pobre?

Marcelo Medeiros - Realmente, não existe uma resposta simples para isso. A gente vai ter (que enfrentar) barreiras de natureza política, barreiras no conflito distributivo, vai ter limitações de natureza fiscal, muita coisa para ser administrada aí.

Talvez, parte dos nossos problemas de natureza política é acreditar nesse simplismo. Isso resulta, às vezes, em algum populismo, seja ele populismo de direita, seja ele populismo de esquerda, seja populismo tecnocrático, de adotar essas soluções que aparentemente são simples para problemas que são monstruosos.

Vou fazer uma analogia: como a gente enfrenta o problema da criminalidade no Brasil? Qual a solução simples para um problema dessa magnitude? A resposta de qualquer pessoa vai ser: eu não sei.

BBC News Brasil – Ao longo da história, geralmente o crescimento foi pró-rico?

Marcelo Medeiros - Teve momentos de crescimento pró-pobre e crescimento pró-ricos. O que a gente pode dizer é que ao longo das últimas duas décadas, arredondando um pouco, um quarto de todo o crescimento foi apropriado só por 1% da população.

Ou, se quiser outro número que é equivalente a esse, mais ou menos metade de todo o crescimento brasileiro está indo para as mãos só de 5% da população.

Ou seja, temos um crescimento que extremamente concentrado e a implicação disso é que nossa discussão sobre o crescimento, no fundo, é uma discussão que está sendo apropriada por um grupo que não chega a um décimo da população brasileira.

BBC News Brasil - Voltando à pergunta anterior: como o governo pode atuar contra a desigualdade em várias frentes em um cenário de restrição fiscal?

Marcelo Medeiros - Sempre vai haver uma restrição fiscal, por isso negociar dentro do orçamento é tão importante. O Brasil precisa liberar recursos por um lado, ou seja, precisa reorganizar alguns gastos, precisa aumentar a eficiência de algumas políticas, mas também precisa aumentar arrecadação. Um problema dessa magnitude vai precisar de algum aumento de arrecadação.

Inclusive, o problema fiscal brasileiro (para além do combate à desigualdade) vai precisar de mais arrecadação. Simplesmente, porque há um ponto onde cortar gastos se torna extremamente difícil, demora tempo demais. Há coisas, por exemplo, que você não pode fazer. Não pode cortar previdências no Brasil, porque isso implicaria violações importantes de contratos e abriria precedentes para outras violações de contratos muito importantes.

Então há limites no que pode e não pode ser feito para qualquer governo, independente da sua matriz ideológica. E um bom governante tem que lidar com esses limites o tempo inteiro. Mas, em termos gerais, há muita coisa que pode ser feita no Brasil. Eu não quero fazer uma lista. Acho que a discussão é mais sofisticada do que um indivíduo pode fazer isoladamente.

BBC News Brasil - Então, para reduzir desigualdade precisa aumentar a carga tributária?

Marcelo Medeiros - Na verdade, para resolver o problema fiscal o Brasil precisa ter redução de gastos, realocação de gastos e aumento de arrecadação. Se isso vai ser via aumento de carga ou se vai ser simplesmente aumento de base, que é outra alternativa, cobrar imposto de quem tá pagando pouco, também é uma possibilidade.

Não vamos subestimar. Se fosse fácil, alguém já tinha feito. Isso passa por enfrentar o conflito distributivo gigante. Vai haver reação. Reduzir dramaticamente a desigualdade e a pobreza no Brasil vai envolver muita mobilização política porque o problema é político antes dele ser enfrentado do ponto de vista econômico.

BBC News Brasil – O governo está enfrentando dificuldades para aprovar medidas pontuais, como aumentar impostos sobre fundos de super ricos que hoje são pouco tributados. Qual seu otimismo sobre reduzir a desigualdade do Brasil quando isso depende não apenas de algumas ações pontuais, mas de um caminhão de medidas a serem aprovadas no Congresso?

Marcelo Medeiros - Não sou nem otimista, nem pessimista. Acho que ninguém deve ser otimista ou pessimista. As pessoas têm que ser realistas diante da magnitude do problema que está sendo enfrentado. Elas têm que entender que essas coisas são decisões que vão exigir muito mais metas de longo prazo que de curto prazo.

E que essas metas passam por mobilização política, por escolher bem os representantes políticos e assim, sucessivamente, por várias outras coisas. E, inclusive, por criar, literalmente, jogo de força na política.

BBC News Brasil – Quando você fala longo prazo quer dizer décadas?

Marcelo Medeiros - Décadas. Na verdade, são décadas, a não ser que você queria tomar medidas muito dramáticas. Mas a pergunta é se a gente está disposto a tomar medida muito dramáticas. Houve casos de quedas radicais de desigualdade no mundo, mas elas são resultados de medidas muito dramáticas, como, por exemplo, as quedas que aconteceram durante a Segunda Guerra Mundial na Europa, ou nos Estados Unidos com uma mobilização gigantesca, uma regulação tremenda da economia, ou o que aconteceu nos países soviéticos. Isso faz a desigualdade cair de maneira rápida.

Mas, obviamente, toda a política tem um preço, todo o benefício tem um custo.

BBC News Brasil - Nos Estados Unidos, por exemplo, que tipo de regulação dramática na economia foi adotada?

Marcelo Medeiros - Toda, geral, não foi uma regulação, foi uma montanha de regulações, primeiro no pós-Grande Depressão (após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929) e, segundo, no esforço de guerra (durante a Segunda Guerra Mundial). Você controlava salários, controlava lucros, controlava a economia inteira. Então, controlou muita coisa, não foi uma medida isolada, foi uma coisa gigantesca.

Se você não regula (a economia), obviamente quem tem poder vai replicar esse poder com velocidade mais alta.

BBC News Brasil – O livro aborda quem são os pobres e quem são os ricos no Brasil. O que seria a classe média?

Marcelo Medeiros - Eu te respondo com outra pergunta: são essas as divisões certas? Ricos, pobres, e classe média? E a pergunta subsequente é: para que a gente quer dividir a população?

A divisão de uma população em grupos é uma ferramenta. Essa ferramenta vai ser usada para quê? Porque dependendo do que a gente fizer, uma ferramenta pode ser melhor do que a outra. A gente pode querer dividir a população em três grupos, como pode querer dividir a população em 300 grupos.

E esse que é o argumento central do livro: não é dado que existe um grupo de pobres, um grupo de ricos, e um grupo de classe média. Isso é só um uma maneira de dividir a sociedade de classes, e a gente tem que pensar para que a gente quer dividir a sociedade em classes, primeiro. E, segundo, (pensar) o que significam essas divisões.

Se a gente não tem uma definição substantiva do que é ser rico, uma definição substantiva do que é ser classe média, uma definição substantiva do que é ser pobre, isso vai ser simplesmente uma classificação de borboletas, onde você atribui arbitrariamente a classe das borboletas por cor, por exemplo.

Não vamos deixar de lado, que, por trás da definição de classe média, existe uma decisão de natureza política do significado daquilo, porque, no fundo, a nossa cultura política, nosso sistema legal, ele é baseado em ideias que não são precisamente definidas. E a gente não deve deixar de lado jamais que essas classificações são classificações políticas.

BBC News Brasil – Fiz essa pergunta para introduzir outra questão: uma pessoa com renda individual de R$ 10 mil por mês já está no grupo dos 10% mais ricos do país. Mas essa pessoa provavelmente não se vê como rica. Possivelmente, ela se vê como classe média.

Marcelo Medeiros - Há estudos no mundo sobre isso. No geral, as pessoas não gostam de se autoclassificar como pobres nem como ricas. Elas geralmente se classificam como classe média, nesses esquemas só de três classes, e elas usam qualificadores: classe média baixa para os pobres, classe média alta para os ricos. É isso que você vai ver no mundo inteiro, o Brasil não é uma exceção.

BBC News Brasil - Como as políticas de distribuição devem agir sobre esse grupo, que está no topo da pirâmide, mas não são os mais ricos? São pessoas que vivem confortavelmente, mas não estão necessariamente esbanjando dinheiro. Elas deveriam contribuir mais de alguma forma, dada a distribuição de renda do Brasil?

Marcelo Medeiros - Não dá para dizer isso porque esse grupo que você definiu é muito grande e heterogêneo. Algumas dessas pessoas (no grupo dos 10% mais ricos) estão pagando bastante Imposto de Renda, por exemplo, e outras estão pagando muito menos Imposto de Renda. Então, não podemos esquecer que esse grupo é muito heterogêneo. Na verdade, a maior parte da desigualdade do Brasil está nos 10% mais ricos. Eles são um grupo terrivelmente desigual.

BBC News Brasil - Um grupo que estaria pagando pouco impostos, na visão de economistas como Armínio Fraga e Samuel Pessoa, seriam profissionais liberais de renda alta que costumam ter empresas em regimes especiais de tributação, caso de médicos e advogados, por exemplo. Isso deveria mudar?

Marcelo Medeiros - Não porque é para esse grupo. Tem que mudar porque um bom sistema tributário tributa da mesma forma a renda, independente da sua fonte, claro, com algumas poucas exceções. Então, seria importante, por exemplo, que as pessoas físicas e as pessoas jurídicas… ou melhor, que os rendimentos do trabalho e os lucros e dividendos (distribuídos pelas empresas aos acionistas) fossem tributados da mesma maneira.

Assim como também seria muito importante, porque não está na pauta, mas deveria estar, que os rendimentos de capital, que no Brasil se chama rendimento de tributação exclusiva, também fossem tributados como o rendimento do trabalho.

No fundo, tudo tem que ser tributado da mesma maneira. Hoje, no Brasil, a gente paga menos tributos nesse caso, bem menos, 15%, quando muito 22%, se você for sacar rápido demais, mas geralmente paga menos.

Isso também não é nenhuma panaceia. Isso não vai aumentar a arrecadação dramaticamente, mas é o que precisa ser feito. É bom para não criar mecanismos artificiais de reorganização da economia. Ou seja, as pessoas começam a se organizar para ser CNPJ, por exemplo, no lugar de ser pessoa física só por causa disso.

BBC News Brasil – O livro ressalta que mais educação não é solução mágica pra reduzir desigualdade. Por que essa medida tem impacto limitado?

Marcelo Medeiros - Primeiro, porque educação é um investimento de longo prazo. Leva muito tempo para fazer uma reforma educacional, muito tempo para educar uma criança e, mesmo que isso fosse feito num sistema perfeito, o que a gente vai fazer com todos os trabalhadores que já estão no mercado de trabalho e que vão ficar no mercado de trabalho por 40 anos? Então, só vai ser uma solução para alguma coisa talvez daqui a meio século.

A segunda questão é: educação é um termo genérico de mais. Que educação que a gente está falando? Ensino básico primário, ensino médio, ou ensino superior? A diferença salarial entre trabalhadores de ensino primário e de ensino médio é muito pequena. A educação que realmente afeta desigualdade é o ensino superior.

Se a nossa estratégia for usar a educação para reduzir desigualdade, isso vai requerer uma massificação do ensino superior no Brasil, o que vai custar muito caro e vai levar muito tempo. Então, não é que a educação não seja necessária, educação é insuficiente para resolver esse problema.

BBC News Brasil – Os governos do PT promoveram expansão do ensino superior com mais universidades públicas e programas como Fies e Prouni. Esse caminho está correto? Precisa ser ampliado?

Marcelo Medeiros - O Brasil já vem expandindo seu ensino superior desde pelo menos meados da década de 90. E expandiu muito rapidamente a partir dos anos 2000, mas baseado basicamente no ensino à distância, não uma expansão das universidades públicas como algumas pessoas acreditam.

O problema não é o ensino à distância, o problema é que o ensino à distância tal como ele foi implementado é de baixíssima qualidade. Então, a gente tem problemas importantes de qualidade e de quantidade para enfrentar. E não vai ser um conjunto pequeno de medidas que vai resolver isso.

BBC News Brasil - O Congresso acaba de aprovar a revisão da Lei de Cotas. A reserva de vagas para negros no ensino superior é uma política importante para reduzir desigualdade?

Marcelo Medeiros - É uma política extremamente importante por uma razão simples: uma alternativa as cotas seria simplesmente investir em educação de base. O problema é o tempo gigantesco que isso vai levar.

Dois, (outro problema é) o conjunto enorme de obstáculos que os negros vão enfrentar à medida que eles sobem. Os negros têm mais dificuldade para avançar na educação porque a vida (dos negros) é cheia de obstáculos, inclusive dentro da escola.

E a educação dos negros é menos valorizada que a educação dos brancos. Um homem branco e um homem negro com exatamente a mesma educação, o homem negro tenderá a ter um salário mais baixo. Portanto, os caminhos têm que ser outros. O sistema de cotas é um complemento a outras medidas que precisam ser tomadas.

BBC News Brasil – Além de dar acesso a profissões de maior renda, as cotas também são importantes por aumentar o acesso dessas pessoas a espaços de poder e liderança?

Marcelo Medeiros - Existe um fator de sinalização muito importante que é as pessoas negras poderem se projetar em lideranças negras: nos artistas, nos intelectuais, nos políticos, nos empresários. Porque parte do problema passa pelas barreiras relacionadas a isso.

Existe um outro fator que é o de representatividade. Nem todos vão ser representantes de causas negros, mas alguns serão representantes de causas negras e, ao acontecer isso, obviamente isso favorece pessoas que não estão na mesma posição que eles.

BBC News Brasil – Você defende que o combate à desigualdade tem que permear todas as ações do governo. O presidente Lula disse que gênero e raça não são critérios para escolher o próximo ministro do STF, um corte dominada por homens brancos. A representatividade do Supremo tem reflexos pra redução de desigualdade?

Marcelo Medeiros - Eu sou favorável a ter mais representatividade racial e de gênero no Supremo, como de resto em qualquer elite. Agora não sei dizer qual impacto isso vai ter, em qual desigualdade e por qual caminho.

BBC News Brasil – Idealmente, Lula deveria levar em conta raça e gênero ao indicar uma pessoa para a Corte?

Marcelo Medeiros - Idealmente, a sociedade inteira, não só o presidente, todo mundo tem que levar em conta. Os partidos têm que fazer isso, as empresas têm que fazer isso, a televisão tem que fazer isso. A desigualdade racial está em todos os lugares.

Há sempre uma escolha alternativa https://bit.ly/3Ye45TD 

No meu Twitter

Nos primeiros nove meses de 2023 1,6 milhão de empregos formais foram criados no Brasil. Mas ainda é pouco.

Não pode ser rápido feito um raio https://bit.ly/3Ye45TD 

EUA x China

As fantasias tecnológicas do Pentágono

Para dissuadir a China, armas com IA, como “enxames de drones”, são alardeados pelos EUA. Em sua maioria, irreais ou ineficazes – e uma trilionária mina de ouro para a indústria bélica. Jogada pode acirrar disputas e pavimentar a Grande Guerra
William D Hartung, no Consortium News/OutrasPalavras


 

No dia 28 de agosto, a vice-secretária de Defesa, Kathleen Hicks, escolheu a ocasião de uma conferência de três dias, organizada pela Associação Industrial de Defesa Nacional (NDIA, na sigla em inglês), o maior entidade comercial da indústria de armas, para anunciar a “Iniciativa Replicador”. Entre outras coisas, envolveria a produção de “enxames de drones” que poderiam atingir milhares de alvos na China num curto espaço de tempo. Chame isso de lançamento em máxima escala da guerra tecnológica.

O seu discurso aos fabricantes de armas reunidos foi mais um sinal de que o complexo militar-industrial (CMI), sobre o qual o presidente Dwight D. Eisenhower nos alertou há mais de 60 anos, ainda está vivo, passa muito bem e está tomando um novo rumo. Pode chamá-lo de CMI da era digital.

Hicks descreveu o objetivo da Iniciativa Replicador nos seguintes termos:

“Para nos mantermos à frente [da China], vamos criar um novo estado da arte… alavancando sistemas autônomos atritáveis [attritable] em todas as áreas, pois são menos caros, colocam menos pessoas em risco e podem ser alterados, atualizados ou melhorados com prazos de entrega substancialmente mais curtos… Iremos combater o ELP [Exército de Libertação Popular] com a nossa própria massa, mas a nossa será mais difícil de figurar, mais difícil de atingir e mais difícil de vencer.”

Pense isso como se a inteligência artificial (IA) fosse para a guerra – e, bem, a palavra “atritável” (attritable), um termo que não funciona bem na língua e que não quer dizer muita coisa para o contribuinte médio, é puro “pentagonês” para falar da capacidade de reposição pronta e rápida de sistemas perdidos em combate. Vamos verificar adiante se o Pentágono e a indústria de armas sequer são capazes de produzir os sistemas de guerra tecnológica do tipo que Hicks elogiou no seu discurso: baratos, eficazes e facilmente replicáveis. Porém, em primeiro lugar, gostaria de me concentrar no objetivo de um tal esforço: confrontar a China.

Alvo: China

Independentemente da avaliação que se tenha quanto ao apetite da China por um conflito militar – em vez de confiar com mais força em suas ferramentas de influência política e econômica cada vez mais poderosas –, o Pentágono está claramente propondo uma solução militar-industrial para o desafio representado por Pequim.

Como sugere o discurso de Hicks aos fabricantes de armas, a nova estratégia se baseará em uma premissa crucial: a de que qualquer corrida tecnológica armamentista futura estará fortemente calcada no sonho de construir sistemas bélicos cada vez mais baratos e mais poderosos, baseados no desenvolvimento rápido de comunicações quase instantâneas, em inteligência artificial e na capacidade de implantar tais sistemas num curto espaço de tempo.

A visão que Hicks apresentou à NDIA é, como você deve ter notado, desvinculada do mínimo desejo de responder pela via diplomática ou política ao desafio de Pequim como uma grande potência em ascensão. Pouco importa que essas seriam, sem dúvida, as maneiras mais eficazes de evitar um futuro conflito com a China.

Um tal abordagem não militar se basearia em um recuo claramente articulado em relação à longa e permanente posição chinesa em sua política “Uma China”. Nesse cenário, os EUA renunciariam a qualquer traço de reconhecimento político formal da ilha de Taiwan como um Estado separado, enquanto Pequim se comprometeria a limitar a meios pacíficos os seus esforços por absorver essa ilha.

Há inúmeros outros temas em que a colaboração entre as duas nações poderia conduzir os EUA e a China de uma política de confronto para uma de cooperação, tal como apontado em artigo recente pelo meu colega Jake Werner do Quincy Institute:

“1) desenvolvimento no Sul Global; 2) enfrentar as mudanças climáticas; 3) renegociar as regras comerciais e econômicas globais; e 4) reformar as instituições internacionais para criar uma ordem mundial mais aberta e inclusiva.”

Alcançar esses objetivos neste planeta, hoje, pode parecer uma tarefa difícil, mas a alternativa – a retórica belicosa e as formas agressivas de competição que aumentam o risco de guerra – deve ser considerada perigosa e inaceitável.

Do outro lado da equação, os proponentes do aumento dos gastos do Pentágono para enfrentar os supostos perigos da ascensão da China são mestres em inflacionar a ameaça. Para eles é fácil e satisfatório exagerar tanto as capacidades militares de Pequim como as suas intenções globais, com o propósito de justificar a manutenção do complexo militar-industrial amplamente financiado até um futuro distante.

Como observou Dan Grazier, do Projeto de Supervisão Governamental, em um relatório de dezembro de 2022, embora a China tenha feito progressos militares significativos nas últimas décadas, a sua estratégia é “inerentemente defensiva” e não representa nenhuma ameaça direta aos Estados Unidos. Atualmente, de fato, Pequim está consideravelmente atrás de Washington tanto em despesas militares quanto em capacidades militares essenciais, incluindo ter um arsenal nuclear muito menor (embora ainda sem dúvida devastador), uma Marinha menos capaz e menos aviões de combate importantes. Contudo, nada disso soa minimamente óbvio se os únicos a serem ouvidos são os alarmistas do Capitólio e dos corredores do Pentágono.

Mas, como salienta Grazier, isto não deverá surpreender ninguém, uma vez que “a inflação da ameaça tem sido há décadas o instrumento preferido dos ‘falcões’ dos gastos com defesa”.

Para citar um exemplo, esse foi notadamente o caso do final da Guerra Fria no século passado, após a derrocada da União Soviética, quando o então presidente do Estado-Maior Conjunto, Colin Powell, disse, em discurso antológico:

“Pensem bem sobre isso. Estou ficando sem demônios. Estou ficando sem vilões. Estou reduzido a [Fidel] Castro e Kim Il-sung [o falecido ditador norte-coreano].”

Desnecessário dizer que isso representava uma grave ameaça para o futuro financeiro do Pentágono e, de fato, o Congresso insistiu na ideia de reduzir significativamente o tamanho das forças armadas, oferecendo menos fundos para gastar em novos armamentos nos primeiros anos pós-Guerra Fria.

Mas o Pentágono foi rápido em destacar um novo conjunto de supostas ameaças ao poder americano para justificar a retomada dos gastos militares. Sem nenhuma grande potência à vista, começou a concentrar-se nos perigos que poderiam representar as potências regionais como Irã, Iraque e Coreia do Norte. Também exagerou fartamente a força militar desses países no esforço de obter financiamento para vencer, não um, mas dois grandes conflitos regionais ao mesmo tempo. Este processo de mudança de foco para novas alegadas ameaças, como justificativa para majorar o establishment militar, foi capturado de forma impressionante no livro de Michael Klare de 1995, Rogue States and Nuclear Outlaws [Estados malfeitores e bandidos nucleares].

Após os ataques de 11 de Setembro, a lógica dos “Estados malfeitores” foi, durante algum tempo, substituída pela desastrosa “Guerra Global ao Terror”, uma resposta claramente equivocada a esses atos terroristas. O resultado disso foram gastos de trilhões de dólares em guerras no Iraque e no Afeganistão e uma presença global antiterrorista que incluiu operações dos EUA em 85 – sim, 85! – países, processo notavelmente documentado pelo Costs of War Project [Projeto Custos da Guerra] da Brown University.

Todo esse sangue e tesouro, incluindo centenas de milhares de mortes diretas de civis (e muito mais mortes indiretas), bem como milhares de mortes de estadunidenses e enormes quantidades de danos físicos e psicológicos devastadores ao pessoal militar dos EUA, resultaram na instalação de regimes instáveis ​​ou repressivos, cuja conduta – no caso do Iraque – ajudou preparar o cenário para a ascensão de uma organização terrorista como o Estado Islâmico (ISIS).

No final das contas, essas intervenções provaram ser tudo menos o “passeio” ou o florescer da democracia previstos pelos defensores das guerras estadunidenses pós-11 de Setembro. No entanto, eles estão de parabéns. Provaram ser uma máquina de dinheiro extraordinariamente eficiente para os habitantes do complexo militar-industrial.

Construindo a “Ameaça Chinesa”

Quanto à China, o seu estatuto de “ameaça do dia” ganhou especial força durante os anos do ex-presidente Donald Trump. Na verdade, pela primeira vez desde o século XX, o documento de estratégia de defesa do Pentágono de 2018 apontou a “competição entre as grandes potências” como a onda do futuro.

Um documento particularmente influente daquele período foi o relatório dessa comissão com mandato do Congresso, a Comissão de Estratégia de Defesa Nacional. O órgão criticou a estratégia de então do Pentágono, afirmando bravamente (sem sustentação em informações significativas) que o Departamento de Defesa não estava planejando gastar o suficiente para enfrentar o desafio militar colocado pelas grandes potências rivais, com foco principal na China.

A comissão propôs aumentar o orçamento do Pentágono entre 3% e 5% acima da inflação nos próximos anos – uma medida que o elevou a um nível inédito de US$ 1 trilhão (ou mais) dentro de poucos anos. Esse relatório seria tão fartamente citado pelos defensores dos gastos do Pentágono no Congresso, e com especial ímpeto pelo ex-presidente do Comitê de Serviços Armados do Senado, James Inhofe, que costumava literalmente acenar às testemunhas nas audiências e pedir-lhes um juramento de fidelidade às suas duvidosas conclusões.

Esse índice de crescimento real de 3% a 5% pegou muito bem para os proeminentes falcões no Congresso e, até o recente caos na Câmara dos Representantes, as despesas enquadravam-se efetivamente nesse padrão.

O que não foi muito debatido foi a pesquisa feita pelo Project on Government Oversight [Projeto de Supervisão do Governo] demonstrando que a comissão que redigiu o relatório e deu gás a esses aumentos de gastos estava pesadamente nas mãos de indivíduos ligados à indústria armamentista. O seu co-presidente, por exemplo, fez parte do conselho de administração da gigante fabricante de armas Northrop Grumman, e a maioria dos outros membros eram ou haviam sido conselheiros ou consultores dessa indústria, ou trabalharam em think tanks fortemente financiados precisamente por essas empresas. Portanto, nunca houve propriamente uma avaliação que fosse mesmo vagamente objetiva das necessidades de “defesa” dos EUA.

Cuidado com o “tecnoentusiasmo” do Pentágono

Só para garantir que ninguém perdesse o ponto central de seu discurso no NDIA, Hicks reiterou que a proposta de transformar o desenvolvimento de armas com a futura guerra tecnológica em mente visava, direta e precisamente, Pequim. “Devemos”, disse ela, “garantir que o líder da República Popular da China acorde todos os dias, considere os riscos de agressão e conclua: ‘hoje não é o dia’ – e não apenas hoje, mas todos os dias, de agora a 2027, de agora a 2035, de agora a 2049, e além… Inovação é o modo como fazemos isso.”

A noção de que a tecnologia militar avançada poderia ser a solução mágica para desafios complexos de segurança vai diretamente contra o registro real do Pentágono e da indústria de armamento ao longo das últimas cinco décadas. Naqueles anos, novos sistemas supostamente “revolucionários” como as aeronaves de combate F-35, o Sistema de Combate Futuro do Exército (FCS) e o Navio de Combate Litoral da Marinha têm sido notoriamente atormentados por custos excessivos, atrasos de cronograma, problemas de desempenho e desafios de manutenção que, na melhor das hipóteses, limitam severamente suas capacidades de combate. Na verdade, a Marinha já está planejando aposentar cedo vários desses navios de combate litorâneos, e todo o programa FCS foi abertamente cancelado.

Em suma, o Pentágono põe agora suas fichas em uma transformação completa da forma como ele e a indústria fazem negócios na era da IA ​​– uma aposta remota, para dizer o mínimo.

Mas de uma coisa podemos estar certos: a nova abordagem provavelmente será uma mina de ouro para os fornecedores de armas, mesmo que o armamento resultante não apresente nem o cheiro do desempenho anunciado. Essa busca não será isenta de desafios políticos, tais como a obtenção dos muitos bilhões de dólares necessários para dar prosseguimento aos objetivos da Iniciativa Replicador, evitando ao mesmo tempo o lobby dos fabricantes dos produtos atuais de grande valor, como porta-aviões, bombardeiros e aviões de combate.

Os membros do Congresso irão defender os sistemas da geração atual para manter os gastos com armas a fluir para grandes empresários fornecedores e, assim, para os principais distritos eleitorais. Uma solução para o potencial conflito entre o financiamento dos novos sistemas alardeados por Hicks e os dispendiosos programas existentes que atualmente alimentam os titãs da indústria armamentista: aumentar o já enorme orçamento do Pentágono e rumar para aquele pico de um trilhão de dólares, que seria o mais elevado nível desses gastos desde a Segunda Guerra Mundial.

O Pentágono há muito constrói a sua estratégia circundando supostas maravilhas tecnológicas como o “campo de batalha eletrônico” na era do Vietnã; a “revolução nos assuntos militares”, divulgada pela primeira vez no início dos anos 1990; e as munições guiadas com precisão, elogiadas pelo menos desde a Guerra do Golfo Pérsico, em 1991.

Pouco importa que tais armas maravilhosas nunca tenham funcionado como anunciado. Por exemplo, um relatório detalhado do Gabinete de Responsabilidade Governamental sobre a campanha de bombardeios na Guerra do Golfo descobriu que “a afirmação do DOD [Departamento de Defesa] e dos fornecedores de que as munições guiadas por laser ofereceriam o poder ‘cada alvo, uma bomba’ não foi demonstrada na campanha aérea em que, em média, 11 toneladas de munições guiadas e 44 toneladas de munições não guiadas foram despejadas em cada alvo destruído com sucesso.”

Nas situações em que esses sistemas de armas avançados podem funcionar, com enormes dispêndios de tempo e dinheiro, revelam-se quase invariavelmente de limitada valia, mesmo contra adversários relativamente mal armados (como no Iraque e no Afeganistão, neste século).

No caso da China, uma grande potência rival com uma base industrial moderna e um arsenal crescente de armamento sofisticado, a questão é completamente outra. A busca por uma superioridade militar decisiva sobre Pequim e a capacidade de vencer uma guerra contra uma potência com armas nucleares deveria ser (mas não é) considerada uma missão insensata, com maior probabilidade de estimular uma guerra do que de impedi-la, com consequências potencialmente desastrosas para todos os envolvidos.

Talvez o mais perigoso de tudo seja o fato de um esforço para a produção em grande escala de armamento baseado em IA apenas aumentar a probabilidade de futuras guerras poderem ser travadas de forma demasiado desastrosa sem intervenção humana.

Como Michael Klare apontou em um relatório para a Associação de Controle de Armas, confiar em tais sistemas também aumentará as probabilidades de falhas técnicas, bem como de decisões equivocadas de seleção de alvos baseadas em IA, que poderão estimular o abate não intencional e a tomada de decisões sem intervenção humana. O mau funcionamento potencialmente desastroso de tais sistemas autônomos poderá, por sua vez, apenas aumentar a possibilidade de um conflito nuclear.

Ainda seria possível controlar o entusiasmo tecnológico do Pentágono desacelerando o desenvolvimento dos tipos de sistemas destacados no discurso de Hicks e, ao mesmo tempo, criando regras internacionais para o seu desenvolvimento e implantação futuros. Mas o momento de começar a se opor a mais uma “revolução tecnológica” equivocada é agora, antes que a guerra automatizada aumente o risco de uma catástrofe global. Enfatizar o novo armamento em detrimento da diplomacia criativa e das decisões políticas inteligentes é uma receita para o desastre nas próximas décadas. Tem que haver uma maneira melhor.

Pressões midiáticas pró-mercado financeiro https://bit.ly/3Ye45TD

Fotografia: cena urbana

 

Tatiana Vasconcelos*


A História ensina https://bit.ly/3Ye45TD


No meu Twitter

Desnecessária qualquer resposta a insinuações de que haveria dificuldade entre Lula e Haddad. Não passam de escamuruça midiática em defesa do mercado financeiro.

Déficit zero em favor do mercado e contra o povo https://encr.pw/AzHFh

Uma crônica de Urariano Mota

Graciliano Ramos, um escritor clássico, um camarada

Graciliano Ramos, um dos maiores escritores da língua portuguesa, completaria hoje 131 anos. E por isso a ele retornamos.
Urariano Mota*/Vermelho


 

Circulemos então em torno de O Velho Graça, a ótima biografia de um dos nossos clássicos, que teve reedição da Boitempo em 2012. Se os adjetivos não estivessem tão gastos, diria que foi um lançamento oportuno e necessário. Mas em atenção a Graciliano Ramos, procurarei evitar o excesso de adjetivações. E vamos ao trabalho.

Da velha edição que tenho comigo, de 1992, é que retiro os trechos e reflexões que reúno agora. A primeira delas é que deveria haver no momento uma suspensão das notícias que são um alarido de baixa animalidade, do massacre de palestinos em Gaza, que fazem passar as horas angústia e revolta. Assim como devemos esquecer por minutos o arremedo de justiça de todos os dias, porque neste 27 de outubro é aniversário de Graciliano Ramos. Diria Camões, “cesse tudo o que a musa antiga canta”, mas em relação ao noticiário, que musa? Melhor, esse “que musa?” soaria aos ouvidos dos repórteres como um “que música?”. E para evitar a musa que se confunde com música, vamos ao primeiro trecho que destaco da biografia O Velho Graça, escrita por Dênis de Moraes:

“Na safra de livros aparecerão A bagaceira, de José Américo de Almeida; Menino de engenho, de José Lins do Rego; O país do carnaval e Cacau, de Jorge Amado; Os corumbas, de Armando Fontes; Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.

Em artigo no Diário de Pernambuco, de 10 de março de 1935, sob o título O romance do Nordeste, (Graciliano Ramos) escreveu:

‘Era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação. (…) Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.’”

Notem o quanto é impressionante como escritores tão distintos, José Lins, Graciliano Ramos, Jorge Amado, sem comunicação entre si, em estados e cidades diferentes, tenham escrito romances como se estivessem em um só movimento literário. Isso, que para os professores de cursinhos vestibulares, e até em certas cátedras universitárias, ganha feições de prato feito, é mais que coincidência. Esses homens inquietos não escreviam o que escreveram por método ou influência de escola estética. O que os unifica é o espírito do tempo, que no caso eram as ideias de esquerda, a influência socialista, o movimento comunista no Brasil, que refletia ecos de 1917, até mesmo em Palmeira dos Índios, onde Graciliano Ramos vivia. E neste ponto, de passagem, cabe uma brevíssima ponderação, que deixo para estudiosos mais capazes que eu: pensa-se que a influência do partido comunista se deu em suas estritas fileiras, ou, de outro modo, nos tenentes e movimentos de massa e de operários. Nada mais inexato. A partir de 1930 a força das ideias socialistas se alastrou no Brasil entre comunistas organizados, comunistas de simpatia (mas simpatia é quase amor, diz um bloco do carnaval do Rio), socialistas, e, de modo geral, em artistas que refletiam o povo brasileiro como se manifestassem uma nova independência. De certo modo, de certo modo, não, de todos os modos, o pensamento que avançou entre nós, da ciência à literatura, recebeu a fecundação do diálogo com o mundo de esquerda. De passagem ainda, mas em outro lugar, deveria ser observada a influência desses escritores nordestinos sobre a literatura dos africanos que se libertaram de Portugal.

Mas no momento chamo a atenção para o que me parece um engano, que por força do hábito se tornou um gênero de texto. Penso em Vidas Secas, livro sobre o qual a pesquisa de Dênis de Moraes informa:

“Cem dias depois de ter sido posto em liberdade, Graciliano iniciaria um novo projeto literário. Escrevera um conto baseado no sacrifício de um cachorro, que presenciara, quando criança, no Sertão pernambucano… As opiniões favoráveis o incentivariam a prosseguir a história, esboçando o perfil dos donos de Baleia.

O processo de composição do romance – o único que escreveu na terceira pessoa – seria, por razões de ordem financeira, dos mais originais da literatura brasileira. A conta da pensão e as despesas duplicadas com a vinda da família para o Rio o obrigariam a escrever os capítulos como se fossem contos. Era um artifício para ganhar dinheiro, publicando-os isoladamente em jornais e revistas, à medida que os produzia. Às vezes, republicaria o mesmo conto, com título alterado, em outros periódicos. Dos 13 capítulos, oito sairiam nas páginas de O Cruzeiro, O Jornal, Diário de Notícias, Folha de Minas e Lanterna Verde, além de La Prensa, de Buenos Aires…

Um romance desmontável, cujas peças podem ser destacadas para a leitura e seriadas de mais de uma maneira. Como telas de uma exposição que têm vida própria, independente dos demais”.

Mas Vidas Secas não é um romance! E as razões para isso vêm não só da ordem financeira do escritor, quero crer. Um romance exige – ainda que a sua realização seja rebelde a linhas de fronteira – algo mais que a repetição de personagens em diferentes relatos. Se assim fosse, A Comédia Humana, de Balzac, seria um só livro. No romance, há uma organicidade de pessoas, digo, personagens, que crescem e se diluem em um destino em bloco. E de tal modo que as suas partes autônomas, ainda que seccionadas e vendidas como contos, ganham pleno sentido no conjunto. O todo é a iluminação do particular. O magnífico relato da cachorra Baleia, unido a páginas magistrais pelos personagens que o gênio de Graciliano Ramos acrescentou, jamais teria autonomia absoluta se pertencesse a um romance. Na verdade, Vidas Secas é uma vitória do talent o do escritor sobre as condições difíceis de tempo e lugar em que escreveu o livro, e o seu valor não cai nem um bilionésimo, quando se nota nele um exemplar conjunto de contos em vez de um romance. E aqui, sobre a genialidade do artista, em mais de uma página de sua biografia recebemos lições:

“A qualidade essencial de quem escreve é a clareza, é dizer uma coisa que todos entendam da forma que você quis. Para escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum”.

Muito Bom!!!! é o comentário mais ponderado que me ocorre. Para o escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum, ensina o mestre provado. Me acompanhem por favor: em que oficinas de literatura podem se formar escritores essenciais? Em que oficina de escritor se forma a vida? Em que oficinas, a seu modo laboratórios de bebês de proveta, se conseguirá a clareza que só a malhação fora das academias de todo tipo e gênero dá? Em que local se aprenderá a observação que o instinto e a mente e a experiência concebem?

Em Graciliano Ramos, se o compreendemos bem, há uma teoria da arte, há uma teoria da literatura, há uma lição de sabedoria que deveria ser luz para todo escritor digno do nome. Todos, novos e velhos, escritores livres ou escravos ladinos. Como neste passo, do diário de Paulo Mercadante, citado em O Velho Graça:

“Graciliano falou de sua experiência. Escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é alguma coisa que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo. Não se trata apenas de saber a sintaxe, de dominar um grande vocabulário, mas de ser fiel à ideia e domá-la em termos de uma precisão formal. Por isso, a experiência é essencial, só escapando dessa condição o poeta. Talvez com relação ao escritor haja uma conjugação, Graciliano concluiu, da pessoa como individualidade, do ponto de vista de uma psicologia determinada com o meio onde cresceu e viveu”.

Entendam. O entusiasmo ponderado acima não significa que da sua escrita venha uma norma, uma lei que diga a um homem que deseje “apenas” (!) expressar o seu pensamento: – olha, fora deste caminho nenhuma salvação é possível. Não é isso. Na literatura só existe um regra: não existe regra. Só existe uma maneira: de todas as maneiras. O reconhecimento da grandeza de Graciliano Ramos não implica a busca do caminho único da escrita escorreita, limpa e enxuta do mestre. Pois como ficaria a gordura de José Lins? Em que plano assomaria o bolero em forma de letras de Gabriel García Márquez? Ou os torneios vocabulares de Proust? E os delírios de matar de Gogol? Não. Trata-se apenas de retirar da experiência curtida, no sentido de pele enrugada de muitos sóis de Graciliano, aquilo que serve a gordos e magros, altos baixos, desbocados ou contido s. A saber: escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é um trabalho imenso que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo.

E aqui, sem sair do capítulo da excelência da sua escrita, e como nem tudo são flores, entramos em um terreno mais pedregoso. Entramos no embate político do mestre, dentro do partido e fora do partido ao mesmo tempo, até como uma prova de que a vida partidária não é uma estufa. A sociedade e a história passam pelos partidos comunistas, onde quer que estejam. Refiro-me ao cume da obra de Graciliano Ramos, o Memórias do Cárcere. Para mim, a literatura política no Brasil tem um pico, cujo nome é Memórias do Cárcere. Até hoje, nada li melhor como retratos de homens comunistas no coletivo de um presídio. É curioso como até acadêmicos não veem as Memórias como o melhor livro de Graciliano. Dizem: “não é ficção”, e com isso desprezam para a lata de lixo uma prosa madura, grande, de denúncia, porque “não é ficção”. Mas ela é tão boa ou melhor que a sua melhor ficção. Da primeira edição que tenho, da Livraria José Olympio em 1953, com fac-símiles do manuscrito e retrato do autor no desenho de Portinari, digitei com paciência há treze anos, para publicação no espanhol La Insignia, a página imortal que narra a deportação de Olga Prestes. Está aqui http://www.lainsignia.org/2006/septiembre/cul_014.htm

Pois bem, essa obra não se fez sem conflitos os mais sérios, mais particularmente com Diógenes de Arruda Câmara, o homem que seguia com rigor, digamos excessivo, a disciplina partidária. Diz a biografia:

“Arruda pedira para folhear os originais de Memórias do Cárcere, aborrecendo-se, logo na primeira lauda, com a afirmação de que, no Estado Novo, ‘nunca tivemos censura prévia em arte’… No decorrer da reunião, cobrariam (Arruda, Astrojildo e Floriano Gonçalves) novamente a Graciliano o seu distanciamento do realismo socialista e a falta de vigor revolucionário de seus livros. Um dos presentes, em tom inflamado, diria que ele persistia num realismo crítico ultrapassado e citaria Jorge Amado como escritor empenhado em dar conteúdo participante a suas obras. Ao ouvir o nome de Jorge, Graciliano romperia o silêncio:

– Admiro Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas o que sei fazer é o que está nos meus livros”.

Conta a biografia que em outra oportunidade, anos antes desse dia, Diógenes, em uma reunião com escritores, entre os quais estavam Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Osvaldo Peralva, e o próprio Graciliano Ramos, teria feito, segundo o biógrafo Dênis de Moraes, “uma apologia à literatura revolucionária, exigindo que os presentes se enquadrassem nos ditames zdanovistas. A certa altura, citaria como exemplo os poemas de Castro Alves, que a seu ver encaravam os problemas sociais numa perspectiva revolucionária. E o que era mais importante: com versos rimados”!!!

A propósito de conflitos de Graciliano Ramos coma direção do partido, escreveu o crítico conservador Wilson Martins, a respeito da censura que Memórias do Cárcere sofrera, e que teria adulterado o original do autor para sempre:

“Houve também na história dessas relações, a grande crise provocada por Memórias do Cárcere. Sabia-se que o PCB exerceu forte pressão sobre a família de Graciliano Ramos para impedir-lhe a publicação, acabando por aceitá-la à custa de cortes textuais e correções cuja verdadeira extensão jamais saberemos. Nas idas e vindas entre a família e os censores do Partido, resultaram, pelo menos, três “originais”, datilografados e redatilografados ao sabor das exigências impostas. Supõe-se que o último deles recebeu o imprimatur canônico, acontecendo, apenas, que, na confusão inevitável de tantos ‘originais’, as páginas escolhidas para ilustrar os volumes diferiam sensivelmente das impressas, suscitando dúvidas quanto à respectiva autenticidade”

Mentira, falsidade de Wilson Martins. A viúva do escritor, Heloísa Ramos, e os filhos de Graciliano, Ricardo e Clara, mais tarde confirmaram a autenticidade do livro publicado com o texto original. Tenho comigo a primeira edição de Memórias do Cárcere, com “fac-símile” de páginas dos manuscritos do livro. Manuscritos! Aqui, numa imagem da internet:


https://isteam.wsimg.com/ip/6729aeff-1b28-4b99-9a5c-c3a5500d3aeb/Ilustra%20Mem%C3%B3rias.jpg

E aqui, fotos do manuscrito na edição rara de 1953 que possuo:


Em um outro ponto da biografia:

“Em conversas posteriores com Heráclio Salles, Graciliano enfatizaria a aversão ao romance panfletário.

– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista.

– Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.

– Qual a principal objeção que o senhor faz?

– Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de um romance?! Tomei horror.

– Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?

– Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.

Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:

– Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”

A relação de Graciliano Ramos com o PCB (sigla do Partido Comunista do Brasil naquele tempo), nos últimos anos do escritor é conflituosa, aqui e ali em aberta crise. Mas se destaca nessa relação, por isso mesmo, uma expressão da grandeza de Graciliano Ramos, que não saiu da sua escolha pelo comunismo, mesmo em luta contra a estreiteza da direção na época. Nessa biografia emerge um comunista à velha maneira, à maneira que julgamos clássica, modelar. Olhem só como agia, e no que agia ele era, o comunista Graciliano Ramos:

“Recusava assinar artigos (no Correio da Manhã, onde trabalhava como revisor), alegando para os mais íntimos que não concordava com a linha editorial dos jornais burgueses. O máximo que admitia era colaborar com o suplemento literário. Relutava em aceitar aproximação maior com os proprietários do Correio da Manhã, embora mantivesse uma relação cordial com Paulo Bittencourt (o patrão). A ortodoxia política o levaria ao exagero de não comparecer ao jantar pelo aniversário de Bittencourt. A José Condé, que passava a lista de adesões, afirmaria:

– Não me sento à mesa com patrão. Todo patrão é filho da puta! O Paulo é o que menos conheço, mas é patrão.

No dia seguinte, Bittencourt se queixaria:

– Mas, Graciliano, como é que você me faz uma coisa dessas?

– Paulo, eu o respeito, mas você é patrão …

– Mas eu sou um patrão diferente.

– Não, Paulo. Todo patrão para mim é …,

– … filho da puta. Já sei que você xingou minha mãe.

O comunista e o burguês acabariam rindo juntos.

Paulo Bittencourt gostava de provocar Graciliano por suas ideias socialistas. Quando o Correio da Manhã recebeu novas máquinas, Paulo o alfinetaria:

– Imagine se vocês fizessem uma revolução e vencessem. Todo esse parque gráfico seria destruído.

Graciliano o cortaria:

– Só um burro ou um louco poderia pensar isto. Se fizéssemos a revolução e vencêssemos, só ia acontecer uma coisa. Em vez de você andar por aí, viajando pela Europa, gastando dinheiro com mulheres, teria que ficar sentadinho no seu canto trabalhando como todos nós”.

Essa biografia O Velho Graça tem uma característica até hoje pouco destacada. Em vez da pura leitura de uma vida em livro, desperta no leitor uma simpatia profunda pelo biografado. Nele, Graciliano Ramos cresce como escritor em uma rara empatia, como um irmão mais que amigo, ou como um amigo mais que irmão. Enfim, como um camarada, fraterno, admirável. Um mestre e companheiro de jornada de todo escritor brasileiro, até estes dias.

E agora ao fim: Graciliano Ramos, genial, indispensável, fundamental, inspirador e luz para hoje. Que nos perdoe o mestre tantos adjetivos.

*Jornalista, escritor

Nas águas do tempo https://bit.ly/3Ye45TD