31 julho 2022

Uma crônica de Rubem Braga

Falamos de carambolas

Rubem Braga

 

Falamos sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado um ótimo, de carambola.

– Não sei que graça você acha em carambola.

Falamos sobre carambola, discutimos sobre carambola; passamos a romã e finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o jambo cor-de-rosa, este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as mangas, a manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma carlotinha.

Lembrei a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um dia telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer molho pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais: — Vem… tem manga carlotinha…

– Manga carlotinha? Mentira!

E a moça foi. Refugaria talvez promessa de casamento, se irritaria com o presente de jóia, mas como resistir a um homem que tem galinha ao molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite tão familiar?

Ela não achou muita graça na história. Aliás não simpatizava com aquele amigo meu.

Ficamos um instante em silêncio. Comecei a mexer o gelo dentro do copo com o dedo.

É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; inclusive, para falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a pergunta, ergui os olhos e fiz: — Mas, afinal, o que foi que o médico disse?

E ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras do médico, principalmente uma: Sindroma… teve uma dúvida: — É síndroma ou sindroma?

Eu disse francamente que não sabia; apenas tinha a impressão de que a palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.

Em todo o caso — juntei — não era bem uma doença; era um conjunto de sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para mostrar incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até uma certa indiferença por essas coisas de palavras.

Confessei-lhe que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou muito seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não tivesse apenas duas letras e não fosse terra de Abraão ou cidade da Caldéia: UR. Se os charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria a capital teria de ser UR. Eu falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo, quando tem uma doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.

Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.

– Não é pessimismo não. É…

Senti que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo estaria perdido se ela pronunciasse aquele nome; seria intolerável.

– Você sabe muito bem o que é.

Chamei o garçom, pedi mais um uísque e mais um Alexander’s.

– Sabe quem eu vi hoje?

Era ela que mudava de conversa; senti um alívio. E falamos, e falamos… Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a testa, sua graça tocante.

Era insuportável pensar que alguém assim pudesse estar condenada. Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.

– Acho que o bale russo precisa se renovar…

Ela achava que não era justo falar em virtuosidades acrobáticas; o que havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a beleza do bale puro… E no meio da discussão me chamou de literato; mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivessse dito uma vez: — Foi uma pena você não ter estudado bale.

Pensava no seu corpo de pernas longas, na linha dura das ancas, nos seios pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou por beber tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora está horrível.

– Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?

Ela riu, e deu uma risada tão alegre como antigamente.

Como as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre, tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.

[Ilustração: Henri Matisse]

Veja: Literatura: uma agulha na estupidez https://bit.ly/3Pz31ot

Reforço

Caetano, Gil, Gal e Bethânia assinam Carta pela Democracia. Haverá leitura em vídeo com artistas. É a leveza e a sensibilidade reforçando a resistência democrática.

A gente se junta no WhatsApp e depois nas ruas https://bit.ly/3LcXQYD

Esperneia e ameaça

Bolsonaro apela ao golpismo diante da derrota que se anuncia

Clareza trazida por pesquisas exige reação redobrada aos riscos do regime
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo

 

Bolsonaro já está convencido de que não se reelege, e tem medo. Há dois meses até a eleição, tempo que não levaria um candidato esperançoso a providências de desespero.

Paulo Guedes e outros estão acionados em duas linhas avançadas. Uns têm feito sondagens nos tribunais superiores sobre possível contenção dos processos criminais de Bolsonaro.

Outros são portadores de propostas em que atitudes positivas de Bolsonaro e o encerramento dos processos se compensariam.

Mesmo que parte do Supremo Tribunal Federal argumente com a conveniência de instituições pacificadas e eleições tranquilas, não há sinal de maioria aberta a acordo.

Por diferentes modos, está muito presente o entendimento de que Bolsonaro avançou demais nos ataques à legalidade democrática, e o regime cobra atitudes.

Diante da derrota que se anuncia e da recusa de desvios no roteiro legal e moral dos processos, o que os medos de Bolsonaro têm a oferecer é a covardia travestida, que apela ao mais estúpido, ao mais violento —no caso, o golpismo, sua cloroquina política.

Com isso, a clareza trazida pelas pesquisas mais confiáveis tanto distensiona o ambiente quanto exige reação redobrada aos riscos do regime.

Nela incluídas atenções redobradas com a proteção de Lula: os estímulos à posse de arma visam ao seu uso.

Entre as precauções, uma das principais está esquecida. É a de interferência externa. Sua ocorrência nem seria novidade, apenas de procedência diferente.

No seu despreparo abobalhado, o recém-eleito Collor informou publicamente a ida imediata aos Estados Unidos para um agradecimento pessoal ao então presidente Bush-pai pela ajuda —não esclarecida, porém.

Bill Clinton mandou ao Brasil o que chamou de estrategista, para propor espertezas à candidatura de Fernando Henrique.

Sergio Moro poderia dizer algumas coisas sobre a eleição presidencial de 2018, seja quanto a funcionários americanos mandados a Curitiba, seja sobre suas próprias idas aos Estados Unidos e contatos por lá, durante a Lava Jato.

Leia também: Em busca de uma reeleição improvável, os muitos remendos de um barco furado https://bit.ly/3akDj7Q

Putin não terá menos sem-cerimônia aqui do que na eleição em que "os serviços" russos contribuíram para a eleição de Trump.

Ter a seu favor um país como o Brasil é proveitoso para Putin em vários sentidos. Apesar disso, o eleitorado brasileiro está despreparado, por falta total de informação, para ser tão impermeável quanto possível a manipulações via internet.

Interessado, como diz o ministro da Defesa, na segurança das eleições, o Exército e seus inesperados experts em informática eleitoral deveriam ter estudado, e feito aplicarem-se, barreiras às redes internacionais de interferências que se expandem também por pequenos países asiáticos. Não conviria a Bolsonaro.

Substituta da ex-ministra Damares Alves, Cristiane Britto cometeu a útil gafe de uma prova da possível interferência externa pró-Bolsonaro.

Diz ela que ouviu do ministro do exterior húngaro apenas uma "mensagem de apoio e simpatia entre autoridades".

É mentira. Seu relatório da conversa diz que ele "questionou se haveria algo que o governo húngaro poderia fazer para ajudar na reeleição do presidente Bolsonaro". Frase translúcida.

Viktor Orbán, que golpeou a democracia e encabeça o governo ultradireitista da Hungria, foi visitado por Bolsonaro em seguida à visita a Putin e então chamado de irmão pelo brasileiro fascinado.

Visto como eixo da conexão internacional do autoritarismo originado em novo modelo de golpe, pelo confronto entre os poderes, Orbán concedeu encontros e comunicações à distância com Eduardo Bolsonaro.

Já foi dito que veio dele o conselho a Bolsonaro para ir a Putin, um apoio às vésperas do ataque russo à Ucrânia. Lógica e óbvia, pois, a pergunta revelada por Cristina Britto.

As manifestações recentes contra todo golpismo, com inclusão até do sistema bancário iniciada por controladores do Itaú Unibanco, mudaram o cenário. As pesquisas desinquietam.

Mas o que é capaz de conter os ímpetos tumultuosos de Bolsonaro, mais exacerbados pela derrota prevista e pelo medo, não dá nem dará garantias de respeito à democracia.

Declarações e acordos assinados antecederam todos os tantos golpes militares, tentados e consumados, do passado sinuoso e mediocrizado pelos tanques e fuzis.

[Charge: Aroeira]

Veja: Bolsonaro age como derrotado https://bit.ly/3wzziDL

30 julho 2022

Manifesto

Adesão a carta pela democracia ultrapassa meio milhão de assinaturas

Incomodado com o amplo apoio ao documento, Bolsonaro chegou a fazer, pelas redes sociais, o que seria seu próprio “manifesto”
Priscila Lobregatte, www.vermelho.org.br

 

A “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, elaborada por ex-alunos da Faculdade de Direito da USP, já ultrapassou, neste sábado (30), 552 mil assinaturas desde o seu lançamento público, ocorrido na terça-feira (26). O resultado, inesperado pelos organizadores, indica a insatisfação dos mais variados segmentos e matizes ideológicos da sociedade com a escalada golpista do presidente Jair Bolsonaro (PL) e o desejo de defender a democracia e o sistema eleitoral brasileiro. 

O documento resgata o espírito da carta original de 1977, redigido e lido pelo professor Goffredo da Silva Telles contra a ditadura militar, quando a faculdade completava 150 anos. 

Leia também: Campanha Fora Bolsonaro volta às ruas “em defesa da democracia e por eleições livres”

“Agora não estamos na ditadura, mas estamos num risco muito grande de cair em uma ditadura, porque não tenho a menor dúvida de que um golpe de Estado está sendo urgido pelo presidente Jair Bolsonaro. O sentido do ato é defendermos a democracia, que está periclitante”, disse, ao Terra, José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns de Defesa os Direitos Humanos e ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Inicialmente, o atual diretor da faculdade, Celso Campilongo, planejava que o novo manifesto fosse a público com ao menos 300 assinaturas, mas já na largada, constavam 3 mil, que se multiplicaram rapidamente.

Outro que não esperava tamanha adesão foi o presidente Jair Bolsonaro. Primeiro, ele tentou minimizar o apoio ao manifesto dizendo que não precisava de “cartinha” para demonstrar seu suposto apreço pela democracia. 

Leia também: Ato dia 1º/8 reúne ao menos 11 partidos em defesa da democracia

Depois, tentou atribuir o sucesso à adesão dos banqueiros, que estariam se vingando do presidente devido à implantação do Pix. Detalhe: a modalidade de transferência sem cobrança de taxa já era pensada desde 2016 e começou a ser criada em 2018. Além disso, os bancos seguem ganhando muito dinheiro — apenas nos três primeiros meses de 2022, os quatro maiores tiveram o lucro líquido mais parrudo da história: R$ 24,3 bilhões. 

E na quinta-feira (28), em mais uma de suas sacadas patéticas, Bolsonaro fez seu próprio “manifesto pela democracia”, pelas redes sociais”: “Carta de manifesto em favor da democracia. Por meio desta, manifesto que sou a favor da democracia. Assinado: Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil”. Só faltou colocar, ao final, o célebre “é verdade esse bilhete”. 

Para ler e assinar o manifesto, clique aqui. 

Veja: O inferno astral de Jair Bolsonaro https://bit.ly/3Pf8TTy

"Negra e periférica"

Hoje é dia de Maria

Cícero Belmar*

 

Sempre que ouço as expressões “mulher, negra e periférica”, penso de imediato que se tratam de um clichê; ou de palavras que eventualmente viram moda e se adaptam aos discursos da hora. Mas, eu juro, essa é a precisa descrição de minha amiga, residente no bairro de Santo Amaro, noroeste do Recife, que criou os dois filhos praticamente sozinha. O companheiro foi embora quando as crianças eram pequenas e ela enfrentou uma realidade difícil. Precisou dos programas sociais do governo, que contribuíam com pouco, mas eram melhores do que nada.

Trabalhou de manicure e vendedora. É claro que contou, também, com a ajuda de algumas poucas pessoas; a barra pesava demais e cada um sabe de si. Foi assim, tirando leite de pedras, que superou dias, meses e anos, ganhando um salário mínimo por mês para garantir o básico dentro de casa. Nas ocasiões em que teve emprego com carteira assinada, enfrentava drama de consciência, todas as manhãs, quando precisava sair de casa para o trabalho: corria o risco de deixar os filhos pequenos expostos às tentações das ruas, quando eles largavam da escola e enquanto ela estava ausente, cumprindo oito horas de jornada.

Não é exclusividade de minha amiga. A grande maioria das mães pobres e moradoras de comunidades criam filhos sozinhas. E na hora de ir trabalhar, é sempre a mesma coisa. Como não têm escolha, enfrentam o mesmo dilema: ou saem de casa para o serviço ou não têm dinheiro para comprar comida. No Brasil, são milhares de mulheres nessa mesma situação, excluídas e oprimidas, mas que merecem uma vida plena e digna. Essa realidade, inclusive, foi transformada numa das mais belas músicas do cancioneiro brasileiro, criada há mais de 40 anos. Maria, Maria fez parte do disco Clube da Esquina, em 1978.

O curioso é que a primeira gravação não tinha letra, só lá, lá, laiá, lá, lá. Essa só veio depois quando o Grupo Corpo, de teatro, encenou o espetáculo cujo título foi Maria, Maria. Com roteiro de Fernando Brandt, falava de uma personagem chamada Maria, mulher preta, mãe solo, batalhadora. Era um musical com várias canções de Milton Nascimento e coreografia de Oscar Araiz. Foi um sucesso. No espetáculo, Maria, Maria ganhou letra, que era cantada pelos atores em cena. É essa versão que hoje conhecemos e que foi imortalizada por Elis Regina, quando gravou o disco Saudades do Brasil, em 1980.

Resgato essas histórias para negritar este 25 de julho. É o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha. Se o 8 de março é o Dia Internacional, a efeméride de hoje exige uma reflexão mais focada nas marias negras, periféricas e desassistidas. Se você conhece uma dessas mulheres, não tem dúvidas: a narrativa de todas se assemelha com a saga das heroínas e guerreiras. Parecem de ferro e coração de melão. No Brasil, o 25 de julho é comemorado desde 2014, quando a data foi adotada no mandato de Dilma. Nós também prestamos homenagem para a líder quilombola Tereza de Benguela. Na época da escravidão, ela liderou o Quilombo de Quariterê, localizado no atual estado do Mato Grosso, quando o marido morreu. A sua liderança fez história e ela se tornou símbolo de luta para as mulheres negras brasileiras.

Por tudo isso hoje é um dia de luta, reflexão e resistência. De se reverenciar Tereza, “uma certa magia”; de refletirmos sobre todas as Maria, Maria, essa “força que nos alerta”; de darmos salve a Regilane, minha amiga, e a todas assim como ela, que merecem “viver e amar como outra qualquer do planeta” Brasil. Os versos da música são precisos, sensíveis, belos e duros: “Uma gente que ri quando deve chorar”. Na leitura desse poema de Milton e Brandt, essas mulheres são tão fortes que parecem dotadas de um misticismo. “É preciso ter força, ter raça, ter gana, sempre”. Mulheres que, apesar das dificuldades para sobreviver e criar suas famílias, apenas aguentam firme. “Quem traz no corpo esta marca, possui a estranha mania de ter fé na vida”.

*Jornalista e escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

Leia também: O ódio às mulheres desmascarado https://bit.ly/3NAdNch

Humor de resistência: Enio

 

Enio


A gente se encontra em várias trincheiras https://bit.ly/3vhYCww


Mais apoios

Possível apoio de Bivar e Janones, a confirmar, se situa na tendência persistente de ampliação da frente política e eleitoral reunida em torno de Lula. O mote é a defesa da democracia e a reconstrução nacional.

O povo ajuda a quem pela unidade luta https://bit.ly/3n47CDe     

Mesquinhez

Esse pessoal que fica falando em "perigos" da aproximação do empresariado com a candidatura de Lula não tem a menor noção do tamanho da empreitada que é vencer as eleições e iniciar a reconstrução nacional.

Nem tudo o que reluz é ouro https://bit.ly/3n47CDe     

Varíola

Não dá para subestimar a varíola dos macacos: com alta de casos, Nova York declara estado de emergência.

Janelas abertas para o mundo https://bit.ly/3n47CDe

Fotografia: Cena urbana

 

Luciana Vaz*

*Pernambucana de Olinda, fotógrafa amadora
As muitas cores da vida https://bit.ly/2YAK3IJ

Coisa de criança

Mais uma da minha neta Alice, agora com 9 anos: — Criança ainda não tem memória, tem só lembrança.

Atenção tanto vale que esclarece https://bit.ly/3n47CDe

Armadilha

Bolsonaro se vê preso à própria armadilha: mantém o discurso radical e odioso para segurar a base eleitoral que ainda lhe resta e não consegue reconquistar apoios por causa desse mesmo discurso radical e odioso.

Atenção aos fatos e tendências https://bit.ly/3n47CDe

Como assim?

Em entrevista no rádio, grande empresário diz que o ideal de suas empresas é um "capitalismo inteligente, que oferece oportunidades iguais para todos".

Para todos quem, cara pálida!?

Nem tudo o que reluz é ouro https://bit.ly/3n47CDe     

29 julho 2022

Palavra de Lula

Adesão a Manifesto pela Democracia é sinal de que sociedade está cansada de mentiras, diz Lula

Urna eletrônica já provou eficácia, seriedade e rapidez na apuração das eleições como em nenhum país do mundo
www.lula.com.br

 

Em discurso na tarde de hoje, durante convenção do PSB que oficializou o ex-governador Geraldo Alckmin como vice na disputa à Presidência da República, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva parabenizou os organizadores do Manifesto pela Democracia e opinou que a adesão é uma demonstração de que a sociedade está cansada das mentiras e não acredita mais nos rompantes do presidente Jair Bolsonaro.

“Eu acho que nós deveríamos começar aqui, parabenizando os empresários, os intelectuais, os professores da USP e de tantas outras universidades que resolveram fazer um manifesto em defesa da democracia, que, em apenas 3 dias, juntou mais de 400 mil assinaturas, numa demonstração de que ninguém acredita mais nos rompantes do presidente que governa esse país”, afirmou.

De acordo com o ex-presidente, com o manifesto, a sociedade refuta as suspeições do presidente com relação as urnas eletrônicas. O que a sociedade está dizendo é para ele tomar cuidado, que ele não tem que ter medo da urna eletrônica, porque ela já provou eficácia, seriedade e rapidez na apuração das eleições como em nenhum país do mundo. O que ele tem que ter medo é que o povo brasileiro está saturado, está enjoado, está cansado de tanta mentira, de tanta fake news e de tanta destruição nesse país. Nós não suportamos mais”.

Lula criticou a ideia do atual presidente de convidar embaixadores para levantar suspeitas sobre o processo eleitoral brasileiro, sendo ele próprio e toda a família, eleito há anos pelo mesmo sistema sobre o qual, agora, ele levanta dúvidas. “Eu nunca imaginei, nos meus 76 anos de idade, nos meus 50 anos de participação política no movimento sindical e nos partidos, que nós iríamos ver um presidente da República cometer a idiotice de chamar os embaixadores de quase 70 países para fazer o pior papel que um presidente da República pode fazer, que é mentir para os embaixadores e vender uma ideia falsa de que no Brasil a democracia corre risco por conta das urnas eletrônicas”.

De acordo com Lula, em três anos e nove meses, o atual presidente demonstrou não estar preparado para ser deputado nem para ser presidente. “Quando um homem como ele chega à Presidência da República é resultado da destruição da política. (…). Na história da humanidade, toda vez que se negou a política, o resultado sempre é isso, é o fascismo, é o nazismo”.

Veja: O inferno astral de Jair Bolsonaro https://bit.ly/3Pf8TTy

Quem foi Antonio Maria?

Cida Pedrosa fala sobre uma figura que marcou as noites cariocas. Difícil de resumir em um ofício, considerado o primeiro "multimídia" brasileiro, o recifense Antônio Maria foi um reconhecido cronista, compositor e locutor de rádio, considerado um dos reis do samba-canção.

Veja: Cartas a um jovem poeta https://bit.ly/39XDD8D

Insegurança alimentar

“ESPOCA-BUCHO” COM SALSICHA, RECEITA PRA FICAR DOENTE DE COMIDA

Vilões da obesidade infantil, alimentos ultraprocessados aprofundam desnutrição e criam fome oculta entre os mais pobres
Camille Lichotti, revista piauí

Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Camille Lichotti (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).

No fim de maio passado, Silvana Freitas viu o filho empalidecer depois de comer sozinho dois pacotes de macarrão instantâneo. Marcos André, de 10 anos, teve tontura, vomitou, reclamou de dores no abdômen e pediu que a mãe o levasse ao hospital. Não era a primeira vez que ele sentia aquela sensação nauseante. Quando a médica perguntou o que ele havia comido naquele dia, a resposta foi um cardápio repleto de produtos ultraprocessados e alimentos de alto teor calórico. O diagnóstico foi idêntico ao que o menino recebera tantas vezes antes. “A doutora falou que ele tinha que parar de comer besteira porque estava doente de comida”, lembra a mãe. 

Silvana Freitas, de 32 anos, está desempregada e recebe 400 reais do Auxílio Brasil para pagar as contas, comprar comida e criar dois filhos. Como o dinheiro é curto, ela precisou voltar a morar na casa dos pais na periferia de Trizidela do Vale, no interior do Maranhão, num bairro onde há casas de taipa, casas de tijolo sem reboco e terrenos abandonados. Com o preço da comida nas alturas, a carne sumiu do prato da família. “Antes, com 7 reais de carne, dava para almoço, janta e eu ainda mandava para os meus pais. Hoje eu tenho até vergonha de ir com 7 reais pro açougue”, diz ela. A família substituiu a carne por salsicha – uma proteína ultraprocessada com alto teor de gordura – ou linguiça. Verduras e legumes, já escassos, são os primeiros a desaparecer quando o orçamento aperta. “Isso não enche a barriga, não. A gente procura comprar comida que dê para matar a fome e [que nos permita] ficar muito tempo sem comer de novo”, diz. 

O filho mais novo de Silvana, Marcos André, enche a barriga com fritura, salgados, biscoitos e lanches. Às vezes o café da manhã do menino é pão, refrigerante e duas bombas – bolas de massa frita recheadas com queijo e presunto que ele compra na padaria no fim da rua. O salgado, criado na capital do Piauí e popular nas cidades do Maranhão, pode chegar a pesar 1 kg – e é, de fato, uma bomba calórica. Também é comum que ele troque a refeição por pacotes de macarrão instantâneo, que custam apenas 1,50 real numa venda ao lado da casa dos avós. Apesar de ainda ser uma criança, Marcos André já está com colesterol alto – o que leva ao acúmulo de gordura no interior dos vasos sanguíneos e aumenta o risco de complicações cardiovasculares. O menino, que usa roupas largas de adulto, muito maiores que seu tamanho, pesa quase 60 kg. Segundo a OMS, o peso ideal de uma criança com 10 anos completos é 31 kg. 

Nem tudo o que reluz é ouro https://bit.ly/3n47CDe

Trizidela do Vale é um município pobre de 22 mil habitantes, segundo a estimativa do IBGE. A cidade tem quase 66% da população inscrita no cadastro único do governo federal para famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza. De acordo com informações da própria prefeitura, mais de 8 mil pessoas são beneficiárias do Auxílio Brasil. Na cidade, o índice de obesidade infantil (somando a moderada e a grave) mais do que triplicou: subiu de 4% em 2008 para 16% em 2021 entre as crianças de 5 a 10 anos. 

Os dados foram compilados pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde. O Sisvan registra peso e altura de crianças que chegam à rede de atenção primária do sistema público de saúde, a maioria atendida por programas sociais. As informações se referem prioritariamente a crianças em situação de vulnerabilidade social, e, por isso, o sistema serve de guia para todas as estratégias e ações do Ministério da Saúde na área de alimentação e nutrição.

Como mostrou a primeira reportagem da série Má alimentação à brasileiraa proporção de crianças de 5 a 10 anos acima do peso explodiu nos últimos treze anos em todo o país: a taxa de crianças com obesidade subiu 70% de 2008 a 2021. Isso significa que praticamente uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema público de saúde está obesa. Ao mesmo tempo, a fome persiste: os números do Sisvan mostram que a taxa de crianças abaixo do peso adequado para a idade parou de cair em 2021, interrompendo a tendência de queda registrada desde 2008. E, em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. A cidade maranhense de Trizidela do Vale é um microcosmo desse cenário. Ao mesmo tempo que a obesidade infantil disparou, a fome persiste. Em 2021, o índice de crianças abaixo do peso, que vinha caindo nos últimos anos, voltou ao mesmo patamar de 2008. A fome deixou de ser o principal problema nutricional em Trizidela do Vale – mas não porque tenha deixado de existir. Agora, desnutrição e obesidade são problemas que se somam. 

Na mesma rua onde mora o menino que enche a barriga com alimentos supercalóricos, uma família vive em insegurança alimentar grave. A desempregada Verônica Coelho, de 27 anos, mora algumas casas adiante, na mesma calçada, com as filhas de 9, 6 e 4 anos. O local onde ela mora é na verdade uma adaptação nos fundos da casa da mãe. Sala e cozinha dividem o mesmo ambiente, separados por um lençol, e o banheiro é improvisado do lado de fora. Coelho também recebe os 400 reais do Auxílio Brasil, que não são suficientes para pagar todas as despesas. Quando vai ao mercado, ela só consegue comprar três pacotes de leite em pó, que custam 7 reais a unidade. Mas isso só é suficiente para duas semanas. No último mês de junho, as meninas ficaram o resto do mês sem beber leite. “Elas pediam e eu não tinha pra dar”, conta a mãe. 

As muitas cores da vida https://bit.ly/3n47CDe

A comida sempre acaba antes que Coelho consiga dinheiro para comprar mais. No fim do mês passado, por exemplo, ela só tinha feijão e café em casa. As crianças só não passaram fome porque comeram na escola e pediram comida na casa da avó. Mas Coelho está acostumada a passar os últimos dias do mês só bebendo café. Segundo ela, isso espanta a fome. “Eu tenho vergonha de pedir pra comer na minha mãe e fico pensando que a comida lá pode acabar. Não dá para ficar nós duas sem nada”, explica. “Às vezes eu pergunto pra minha mãe por que a nossa vida é tão ruim. E ela responde que tá assim para todo mundo aqui.” 

Tanto a fome quanto a crescente epidemia de obesidade atingem em cheio a população mais vulnerável hoje porque os dois fenômenos têm as mesmas causas: pobreza, desigualdade e má alimentação. Graças à alta prevalência de obesidade infantil, a cidade de Trizidela foi um dos 1.320 municípios brasileiros a entrar na Estratégia Nacional de Prevenção e Atenção à Obesidade Infantil (Proteja), lançada em agosto de 2021 pelo Ministério da Saúde. Ao todo, a pasta vai transferir 32 milhões de reais para que os municípios coloquem em prática ações de vigilância. Quando a piauí esteve na cidade, no fim de junho, o município estava na fase de levantamento de dados.

Crianças obesas têm mais chance de se tornarem adultos obesos – e podem adquirir ao longo da vida uma série de doenças relacionadas ao excesso de peso, como hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares. E quanto mais precoce o início da obesidade, maior é o impacto na saúde do indivíduo. Enquanto a obesidade infantil traz uma nova carga de vulnerabilidade aos mais pobres, o Brasil caminha para ter uma população doente no futuro. “A consequência disso é a mortalidade prematura, aumento de gastos na área da saúde e sobrecarga do sistema hospitalar”, explica a nutricionista Daniela Neri, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP. 

Um grupo de pesquisadores coordenado pelo pesquisador Leandro Rezende, do departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo, estimou que só em 2019 foram gastos mais de 1,4 bilhão de reais com doenças crônicas não transmissíveis relacionadas ao excesso de peso no Brasil. Naquele ano houve 128 mil mortes, 496 mil hospitalizações e 32 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados pelo SUS atribuíveis ao sobrepeso e obesidade. E a tendência é que esse quadro piore nos próximos anos. 

Mas antes de se tornarem adultos doentes, crianças com excesso de peso estão começando a ter a qualidade de vida prejudicada ainda na infância. Nos últimos anos, a endocrinologista Maria Edna de Melo, chefe da Liga de Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da USP, começou a notar uma diferença no padrão de atendimento de crianças com sobrepeso: elas chegam ao hospital mais jovens e com quadros cada vez mais graves. Também se tornou assustadoramente comum atender meninas e meninos que têm colesterol alto, hipertensão e diabetes antes de chegar à adolescência. “Eu nunca tinha visto isso antes”, diz a especialista. “O mais triste é que essas crianças não tiveram praticamente nenhum tempo de vida saudável.” 

Em 2021, o Brasil registrou número recorde de internações de crianças de até 14 anos por causa de diabetes na rede pública de saúde. Segundo dados do Ministério da Saúde, só na faixa etária de 5 a 9 anos foram mais de 2 mil internações – 22% a mais que no ano anterior. O tipo mais comum de diabetes está relacionado ao excesso de peso e sedentarismo. Enquanto a tendência geral foi de queda na quantidade de internações por pela doença, entre as crianças essa é uma curva que só cresce. 

Silvana Freitas conta que o filho, Marcos André, o menino que nem entrou na adolescência e já está com o colesterol alto, tem peso acima do ideal desde muito novo. Mas ela sempre viu nisso um sinal de saúde. Esse tipo de pensamento é uma espécie de herança cultural entre as pessoas que já passaram fome, como a própria Silvana. Durante a infância, na mesma Trizidela do Vale, ela chegou a dividir dois ovos com os nove irmãos – porque não havia mais o que comer. Naquela época, diz ela, os salgadinhos de pacote baratos não ficavam amontoados nas prateleiras do mercado e biscoito era coisa de criança rica. Certa vez, Freitas e os irmãos precisaram catar mangas no vizinho para enganar a fome de um dia inteiro. Por isso, diz ela, o medo era que os filhos crescessem muito magros e desnutridos. 

Agora Freitas teme pela saúde do filho mais novo. A família tem histórico de diabetes – uma doença relacionada ao excesso de peso. O pai do menino, que também é obeso, toma remédios contra a doença e teve que parar de trabalhar por complicações. “Eu fico pensando que isso pode dar no meu filho também, então tenho que ficar controlando”, diz. Mas as idas ao hospital e as orientações dos médicos não impedem o garoto de continuar comendo os salgadinhos e pacotes de macarrão instantâneo. “Ele só faz uma pausa quando sente essas gasturas e vai para o hospital. Mas assim que ele melhora, volta a comer tudo de novo”, conta a mãe. 

A gente se encontra em várias trincheiras https://bit.ly/3vhYCww

Marcos André precisa dar apenas alguns passos para chegar ao mercadinho mais próximo de casa. A venda improvisada na varanda do vizinho é um oásis para as crianças do bairro, que passam a maior parte do tempo livre na rua. O balcão é repleto de potes de bala, doces e bombons. Mas ao eleger seu produto favorito, Marcos André aponta para um salgadinho de pacote sabor carne seca que custa 50 centavos. Um único pacote desses contém praticamente toda a quantidade de sódio que a OMS recomenda para crianças em um dia. O salgado de milho, produzido em Imperatriz, no Maranhão, a 333 km de Trizidela do Vale, é a única marca de biscoito oferecida na pequena venda. 

O refrigerante que Marcos compra, que também é produzido no estado, é a cópia da cópia da marca mais famosa – o que lhe rende a alcunha de “espoca-bucho”, porque só serve mesmo para fazer engordar. A garrafinha de 250 ml custa 1 real. Doce e barata, a bebida é campeã de vendas entre as crianças, diz o dono da venda, um senhor de cabelo grisalho e óculos grossos. Mercadinhos desse tipo se espalham por toda a cidade de Trizidela, até nas ruas sem calçamento da área rural. É praticamente impossível encontrar as grandes marcas de biscoito nessas vendas. Mas nas prateleiras sempre há macarrão instantâneo – uma febre entre as crianças da cidade –, refrigerantes “espoca-bucho” e salgadinhos de pacote mais baratos que frutas.

De carne seca, o salgadinho favorito de Marcos só tem o aroma. No verso da embalagem, em letras miúdas, estão listados os ingredientes: grits [uma espécie de papa] de milho, gordura vegetal hidrogenada, sal refinado iodado e glutamato monossódico – um intensificador de sabor responsável por uma explosão no paladar – além de corante de urucum. O menino de 10 anos não sabe o que significa nenhuma dessas coisas – muito menos que o consumo exagerado de glutamato monossódico pode elevar os níveis de estresse e agitação porque essa substância se comporta como um neurotransmissor no cérebro. “Aqui na rua todas as crianças são viciadas nessas pipocas”, diz Silvana Freitas, referindo-se ao salgadinho de pacote.

Marcos diz que quando come dois pacotes se sente um pouco “pesado”, mas às vezes troca o almoço pelo petisco porque é gostoso. Os ultraprocessados sequer são considerados comida de verdade – o Guia Alimentar para a População Brasileira classifica como “formulações industriais” –, mas são ingrediente central do cardápio de má nutrição das crianças brasileiras. E o maior perigo desses produtos está justamente na dificuldade de parar de consumi-los. Isso porque os ultraprocessados são basicamente uma mistura de sal, açúcar, gordura e conservantes que rapidamente ativam o sistema de recompensa do cérebro, explica a endocrinologista Maria Edna de Melo. “Depois que o corpo se acostuma a isso, a pessoa vai querer comer sempre e cada vez mais. É muito difícil negociar com esses alimentos hiper palatáveis porque não existe racionalidade na hora de comê-los, é quase um reflexo”, diz ela. 

Os aditivos industriais usados para tornar os ultraprocessados mais palatáveis também os tornam mais baratos, práticos e acessíveis – uma combinação perigosa num país empobrecido e cada vez mais faminto. “As pessoas mais pobres estão comendo comida de baixa qualidade porque é mais barato”, diz o economista Arnoldo de Campos, ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Um levantamento feito por ele mostra que, das 20 maiores altas de preços acumuladas este ano até o mês de abril, 19 foram de alimentos in natura. 

Na casa de Silvana Freitas, em Trizidela do Vale, não há variedade de frutas: ela só compra quando o dinheiro sobra, o que dificilmente acontece. Legumes e verduras, que as crianças já não costumavam comer antes, agora se tornaram um luxo praticamente inacessível. Com o valor do Auxílio, Freitas diz que agora mal consegue comprar o básico. Mas quando pensa em uma refeição  saudável, o prato obrigatoriamente tem uma colher de arroz, feijão, carne assada e salada. “O que impede de fazer é o dinheiro mesmo”, justifica ela. 

Relatório publicado pelo Unicef no final de 2021 revelou um alto consumo de ultraprocessados entre crianças integrantes do programa Bolsa Família (substituído em novembro passado pelo Auxílio Brasil). Em metade dos domicílios, as crianças com menos de 6 anos consomem salgadinho de pacote, macarrão instantâneo e refrigerante de uma a três vezes por semana. O estudo concluiu que a vulnerabilidade socioeconômica das famílias é um fator que influencia no consumo de ultraprocessados, e a maior dificuldade para melhorar os hábitos alimentares foi o alto custo dos alimentos saudáveis. 

Além das doenças crônicas relacionadas ao excesso de peso, muitas crianças com obesidade – incluindo os níveis mais severos – não escapam da desnutrição. Não porque elas não têm o que comer, mas porque as dietas baseadas majoritariamente em produtos ultraprocessados costumam ser pobres em nutrientes essenciais. “As pessoas sentem uma falsa sensação de saciedade porque na verdade não estão se alimentando quando comem esses produtos”, diz a endocrinologista Zuleika Halpern, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). 

Isso aparece na ponta do sistema de saúde de Trizidela do Vale, nos postos espalhados pela região. “Muitas crianças obesas chegam aqui com um quadro grave de deficiência nutricional”, relata a enfermeira Isabel Brandão, responsável pela Unidade Básica de Saúde do bairro Jerusalém, próximo ao Centro da cidade. “Geralmente a criança já está pálida, com as mucosas dos olhos embranquecidas e a palma da mão amarelada. Os pais acham que elas são saudáveis porque estão gordinhas, mas elas têm deficiência de ferro, de vitaminas B, B12, B6.” É o que os especialistas chamam de “fome oculta”. Esses são nutrientes facilmente adquiridos com uma alimentação saudável, mas as crianças não conseguem ter acesso a eles por causa das dietas pobres.

A enfermeira conta que os pais procuram o serviço de saúde quando os filhos com sobrepeso reclamam de cansaço e já estão com a imunidade baixa. Alguns até pedem suplementos vitamínicos no posto de saúde para introduzir nutrientes na rotina das crianças. As vitaminas são as mesmas usadas no atendimento de pessoas desnutridas, em situação de insegurança alimentar grave, ou doentes. “Eles querem substituir a alimentação pela vitamina que eu dou no posto, mas isso não pode substituir a comida. A criança tem que comer carne, arroz, feijão, verdura, fruta, leite e ovo”, diz a enfermeira. 

Mas diante do cenário catastrófico de crianças obesas que acumulam doenças, as enfermeiras distribuem sachês de micronutrientes em pó para reverter os casos de desnutrição. Cada pacotinho contém quinze micronutrientes e é adicionado na refeição, sem alterar o gosto ou a cor da comida. “A gente tenta suprir a carência dessa forma porque as crianças comem menos arroz e feijão que o necessário. Elas comem mais é besteira mesmo”, diz Brandão. 

A enfermeira concorda que a obesidade infantil é atualmente o principal problema de saúde entre as crianças de Trizidela do Vale. Sentada à mesa de sua sala, ela se estica para alcançar algumas folhas dispostas no escaninho. É o último relatório de acompanhamento de sua equipe de saúde, uma das dez que atuam em Trizidela. “Na nossa região temos 8 crianças abaixo do peso ideal. As obesas são 45”, diz ela, lendo as páginas. Mesmo que Brandão tente, com os outros agentes de saúde, organizar campanhas de conscientização para uma alimentação melhor, ela reconhece que é quase impossível disputar com o preço, o sabor e o marketing dos alimentos ultraprocessados. “A gente tá enxugando gelo”, lamenta.

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