Xadrez
do rascunho de arcabouço fiscal e suas limitações
Luis Nassif/Jornal GGN
Peça 1 – a visão
univôltica da economia
Como ensina o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, não se pode
analisar medidas econômicas per si, isoladas do contexto. Política monetária
afeta atividade econômica, que afeta a arrecadação fiscal, assim como mudanças
na economia real podem afetar a política monetária e a própria governabilidade.
Por isso, não pode ser discutida isoladamente.
Anote esses princípios
na hora de analisar a proposta de arcabouço fiscal.
Peça 2 – a lógica do arcabouço fiscal
O que propõe o novo arcabouço fiscal:
Em vez de utilizar como variável as despesas (como na Lei do
Teto) utiliza metas para o resultado primário. São meramente hipóteses:
1. Este ano, haverá um déficit equivalente a 0,5% do
PIB.
2. Em 2024, um equilíbrio.
3. Em 2025 um superávit de 0,5 ponto.
4. Em 2026, superávit de 1 ponto.
Tudo
o demais gira em torno dessa linha.
1. Para não torná-la rígida demais, há uma banda
variando de -0,25% a +0,75%. Por exemplo, para o próximo ano (de meta zero), o
resultado fiscal poderá variar de um déficit de 0,25% para um superávit de 0,25%.
2. Independentemente do resultado, a despesa sempre
crescerá um mínimo de 0,6% – equivalente ao crescimento populacional do país.
Pela Lei do Teto, o resultado do ano anterior seria reajustado apenas pelo
IPCA.
3. Se a Receita crescer, superando a meta prevista, os
gastos poderão crescer no máximo até 70% do aumento da receita. Por exemplo, se
a arrecadação subir 2% em termos reais, as despesas poderão aumentar 1,4% (70%
de 2%). Se o crescimento da receita for inferior à meta, fica mantido o nível
da despesa do ano anterior, corrigido pela inflação, mais 0,6%. Esses são os
elementos anti-cíclicos anunciados pela Fazenda.
4. Há a promessa de recomposição dos gastos com
educação e saúde, garantia para o Novo Bolsa Família, elevação do Salário
Mínimo e elevação da isenção do Imposto de Renda.
5. Para obter equilíbrio no próximo ano, terá que
conseguir uma receita fiscal extra da ordem de R $150 bilhões – que, segundo o
anúncio, seria obtida apenas com o fim de privilégios fiscais. Pode ser que
existam estudos embasando esses hipóteses. Se existem, ninguém sabe, ninguém
viu.
6. Não há meta para investimentos. Há a possibilidade
de destinar arrecadação excedente, mas ontem mesmo o Secretário do Tesouro
analisava a sugestão do tal mercado, de colocar um teto para investimentos.
Peça
3 – um rascunho de plano
É
um plano que mexerá com a vida do país, com o nível de atividade, com o
emprego, com a maior ou menor disponibilidade de recursos para programas
sociais, com o financiamento das pesquisas, com a recomposição do orçamento das
universidades e com o futuro político e econômico do país. Não é pouca coisa.
Mas,
objetivamente falando, em que consiste o projeto?
O
plano apresentado se limita a 12 páginas de Powerpoint, um rascunho com um
apanhado de gráficos e copia-e-cola, mostrando a pressa com que foi preparado.
Apesar de se destinar também à comunidade financeira internacional, não tem uma
versão sequer, um paper em inglês.
A
rigor, tem uma ideia e um conjunto de hipóteses – sem a menor indicação de como
as hipóteses serão alcançadas.
O
rascunho de plano tem o seguinte conteúdo:
- 3 páginas com títulos e logotipos do governo;
- 1 com gráficos copia-e-cola do Observatório
Fiscal da FGV, sem a menor contextualização;
- 1 com copia-e-cola do Ato de Redução da
Inflação do governo Biden, com copia e cola de alguns gráficos, também sem
a menor contextualização (sobre isso, falo mais adiante);
- 1 dedicada à “Reparação Social do Brasil”,
lembrando o Novo Bolsa Família, a Elevação do Salário Mínimo, da Isenção
do Imposto de Renda, e da Elevação dos Recursos da Saúde, sem uma
quantificação sequer. Meramente para abrandar o fogo amigo.
- 1 explicando a nova regra.
- 3 com simulações sobre Resultado Primário do
Governo Central e Dívida Bruta do Governo Geral, um mero exercício
matemático onde as únicas variáveis são o resultado líquido das contas do
governo e a relação dívida/PIB.
- A página final mostra o mundo novo que virá
pela frente, com menos inflação, mais estímulo ao investimento privado,
menos juros da dívida pública, atração de investimentos internacionais,
recuperação do grau de investimento (que é repetido duas vezes, mostrando
a pressa com que foi montado.
É em cima
desse rascunho que mercado, governo e economistas passaram dias discutindo,
numa autêntica Torre de Babel.
Peça
4 – o Plano Biden
O
rascunho reserva uma página para o Ato de Redução da Inflação (ARI) do governo
Biden. Além do copia-e-cola de alguns gráficos, sem nenhuma explicação ou
contextualização maior, coloca um link solto. Clicando-se nele, chega-se a uma
análise dos objetivos principais do Plano Biden. Mas só se fica sabendo depois
de clicar, porque o Powerpoint não indica nada.
- O Plano Biden prevê a melhoria na arrecadação
fiscal, aparelhando a Receita para analisar operações complexas de
engenharia fiscal. Haddad promete o mesmo e estima um ganho de R$ 150
bilhões, ou US $30 bilhões em um ano. O ARI prevê de US $441 bi a US $1
tri por ano.
- O plano Biden instituiu um novo imposto mínimo
de 15% sobre a renda contábil corporativa, para empresas com ganhos
superiores a US $1 bilhão, e um novo imposto de 1% sobre as empresas que
fazem recompras de ações. Haddad tem promessa vaga de acabar com o estado
patrimonialista.
- No Plano Biden, há metas de financiamento
preferencial: US$ 401 bilhões para o financiamento verde, que permitirão
alocar subsídios para compras de aparelhos domésticos mais eficientes,
veículos elétricos e painéis solares. Também apoiará pesquisa e
investimento na geração de energia renovável e atualizações nas redes
elétricas do país. No plano Haddad, não há uma meta sequer de
investimentos.
- No plano Biden, haverá também US $98 bilhões
para subsídios à saúde. Essa alocação servirá principalmente para limitar
os aumentos de custos para os inscritos na Lei de Cuidados Acessíveis e
beneficiários do Medicare, dando ao plano o poder de negociar diretamente
preços de medicamentos mais utilizados – algo que o SUS já faz aqui.
No
Powerpoint do arcabouço fiscal, a única meta com visibilidade é a do
déficit público e relação dívida/PIB. Como ação objetiva, o plano Haddad fala
apenas em recuperar receitas com o melhor aparelhamento da Secretaria da
Receita Federal.
Para
uma discussão democrática, o Plano Haddad teria, no mínimo, que estimar e
colocar em discussão as seguintes hipóteses:
- Hipóteses de desempenho do PIB, pois
condiciona todos os resultados fiscais, assim como a relação Dívida
pública x PIB. Não há uma previsão sequer de PIB previsto para cada
cenário, especialmente trabalhando a questão da Selic (provavelmente para
não melindrar Campos Neto).
- Não existe sequer uma meta para investimentos.
Havia uma possibilidade, caso a receita supere a despesa de forma
significativa. Mas, ontem, o Secretário do Tesouro já admitia um teto para
os investimentos.
Trabalha-se
exclusivamente em cima de hipóteses para resultados fiscais e cenários de
dívida líquida. Ou seja, uma discussão apenas com e para o mercado.
Explicitando as demais variáveis, Haddad teria o desconforto de abrir a
discussão para outros setores da sociedade.
Alguns
economistas ousaram algumas projeções em cima dos dados apresentados.
Doutorando em economia na Universidade Nacional de
Brasil, David Deccache previu uma enorme redução de despesas e investimentos,
se tivesse sido aplicada nos dois primeiros governos Lula.
Outros economistas
preferiram ver a engenhosidade dos mecanismos anticíclicos, como se fosse uma
competição acadêmica entre o novo arcabouço e a desastrosa Lei do Teto, em uma
situação de normalidade política e econômica.
Poucos analisaram o tempo político.
Peça 5 – o quadro político
Só se entende o arcabouço fiscal analisando as limitações
políticas que atravancam o governo Lula.
Em
relação à política econômica, há três forças preponderantes:
*
Mercado
*
Congresso Nacional.
*
Banco Central
E
a mídia, refletindo inteiramente as posições do mercado.
Na
quadra atual, criou-se uma aliança férrea sob o comando de André Esteves, o
influente presidente do BTG Pactual. Ele representa os interesses do mercado,
tem ascendência total sobre a Câmara Federal – através do presidente Arthur
Lira – e sobre o Banco Central, através do presidente Roberto Campos Neto.
Essa
aliança amarra totalmente o governo Lula.
A
esta altura, nem o mais ingênuo dos analistas tem dúvidas de que o papel de
Campos Neto é o de inviabilizar o governo Lula. É patético o papel de Haddad de
prestar contas a Campos Neto, aguardando seu veredito. Na melhor das hipóteses,
os juros só começarão a cair no próximo ano, e lentamente.
No
ano passado, Lula referiu-se a 2008, na qual sua ação foi fundamental para o
país ser o mais bem sucedido no enfrentamento da crise, além de torná-lo um
personagem central da política mundial.
Contou
que, em 2008, a crise obrigou-o a se valer de bancos públicos e aumentar os
recursos do BNDES, algo que não conseguiu fazer em 2002 devido ao discurso dos
economistas sobre os riscos de instabilidade do mercado.
É evidente que entendeu a armadilha em que foi colocada até 2008, devido à ideologia ultraliberal alimentada pela imprensa.
Agora,
aparentemente optou por uma trégua, um passo atrás, aguardando, em um ponto
qualquer do futuro, juntar forças políticas para aplicar sua política
econômica. A questão é o tempo político. O arcabouço fiscal é um ensaio do
último baile da Ilha Fiscal. Foi apresentado como se o país passasse por tempos
normais.
Peça
6 – o cenário em tempos de crise
Vamos
trazer o mundo real de volta para esse cenário de planilhas ululantes
1. Há uma crise em andamento, de proporções
consideráveis, agravada pela política monetária do Banco Central. A crise se
alastrou pelo varejo, pelos planos de saúde e pelo setor de alimentos.
2. As recuperações judiciais em andamento, de centenas
de milhões de reais, não terão a menor possibilidade de sucesso devido ao nível
da taxa de juros.
3. O mercado de consumo só será reativado para a baixa
renda, estimulada pelo Bolsa Família.
4. Há um enorme contingente de passivos herdados de
Paulo Guedes, frutos do desmonte do Estado perpetrado no período.
5. Há a necessidade de recomposição de orçamento de um
grupo infindável de setores da área pública.
6. Acima de tudo, há o tempo político. Lula só
conseguirá se desvencilhar das amarras deixadas pelo bolsonarismo, com
recuperação da popularidade, que depende da melhoria da economia, que depende
do Banco Central.
Mas,
em nome de uma crise fiscal que não existe, e deixando de lado uma crise
econômica que já surgiu no horizonte, o tal arcabouço imporá à economia um
tratamento que apenas o FMI exigiria de países com problemas nas contas
externas.
Peça 7 – os cenários prováveis
Há dois cenários e uma certeza.
Os dois cenários prováveis são:
1. Dependendo
do comportamento das cotações internacionais de commodities, a agricultura
commoditizada sustentando uma economia andando de lado e perdendo mais uma vez
o bonde. Ou,
2. A
crise chegando pesada, com consequências imprevisíveis para o jogo político.
A certeza é que, seja qual for o candidato das forças
desenvolvimentistas, o fracasso econômico do governo Lula jogará de novo o país
nas mãos da ultradireita.
É esse o enigma a ser desvendado. E Haddad não conseguirá
desvendar colocando toda crítica no baú do fogo amigo ou das esquerdas,
genericamente, cortando relações com qualquer pessoa que ouse questionar o tal
arcabouço e assumindo uma atitude de submissão em relação ao mercado.
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