30 setembro 2024

Minha opinião

Conservadorismo em presumível vantagem 
Luciano Siqueira  

Com base em sondagens de intenção de votos e outras fontes, a Folha de S. Paulo, em reportagem, avalia que as forças conservadoras e de direita levarão vantagem sobre o campo popular e progressista na maioria das 103 maiores cidades do país. 

Aí estão incluídas as capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores, onde inclusive pode haver um segundo turno. 

A notícia não surpreende.

Primeiro, porque a vitória de Lula na eleição presidencial se deu por pequena margem de votos e o cenário que se desenrola desde então é palmilhado por obstáculos. O governo avança, porém a duras penas, sob combate direto das forças do conservadorismo e da extrema direita e do complexo midiático comprometido com o capital financeiro e o agronegócio exportador. Na Câmara dos Deputados e no Senado, perdura uma maioria de centro-direita e de extrema direita.

Segundo, porque o instrumento das emendas parlamentares discricionárias, nas mãos dessa maioria parlamentar, alimenta o fisiologismo eleitoral que reforça candidatos a prefeito do campo conservador. 

Terceiro, o nível do debate — mesmo em importantes capitais — revela-se muito aquém do necessário ao esclarecimento mais amplo do eleitorado. Apenas os problemas locais e de caráter administrativo, que estão no foco de quase todas as campanhas, limita o pleito a uma disputa meramente paroquial, o que favorece, nas atuais circunstâncias, candidaturas conservadoras e de direita. 

Quarto, o eleitorado constituído pela classe trabalhadora e demais segmentos populares encontra-se conjunturalmente fragilizado, disperso e carente do debate de idéias minimamente estruturado.

No instante pós eleitoral, a luta prosseguirá desafiando partidos do campo popular e de esquerda e entidades do movimento popular e progressista a elevarem o nível da luta. 

Impedir que a direita retorne ao governo da nação em 2016 é tarefa de dimensão estratégica.

Leia: Campanha eleitoral para além da paróquia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/minha-opiniao-sem-limites.html

Extrema direita hoje

A base estrutural das novas direitas
A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção
ELEUTÉRIO F. S. PRADO/A Terra é Redonda  

Para explicar o fenômeno das novas direitas, assim como a sua ascensão vertiginosa no cenário político contemporâneo, Rodrigo Nunes, num artigo de grande qualidade (Nunes, 2024), aponta para a existência e persistência de um “operador ideológico” em sua base; para que ocorresse, segundo ele, era preciso que o seu crescimento fosse impulsionado pelo “empreendedorismo”. A base do fenômeno social aqui, portanto, é uma disposição psicopolítica.

Para que a aliança tácita de classe constitutiva desse movimento fosse posta, era necessário, segundo ele, que “algumas imagens e palavras produzissem uma identificação”. Só essa mediação tornou possível que interesses tão diversos, desde aqueles dos trabalhadores informais, de setores das classes médias até dos capitalistas financeiros, fossem soldados politicamente.

Assim como o extremismo fascista, nos anos 20 e 30 do século passado, reunira indivíduos comuns – “filhos de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condicionados a manterem-se como unidades independentes” (Adorno, 2015, p. 158) –, os quais se sentiam impotente diante de uma realidade esmagadora, agora uma reunião de pequenos, médios e grandes empreendedores, movidos por um “otimismo cruel”, passou a se desenvolver como extremismo neoliberal.

Em ambos os casos barreiras estruturais ao sucesso dos indivíduos socializados como “sujeitos” econômicos se apresentam como barreiras existenciais, as quais são então manipuladas por extremismos de direita. Contudo, subsistem diferenças.

O extremismo fascista evolveu num momento em que se acirraram os conflitos imperialistas, no qual prevalecia o capital industrial já sob o domínio do capital financeiro, enquanto o segundo progrediu mais recentemente no capitalismo globalizado, sob hegemonia do imperialismo norte-americano, no qual passou a prevalecer – como se esclarecerá – a lógica do capital portador de juros e do capital fictício. Em artigo anterior, procurei distinguir esses dois momentos distinguindo o ordocapitalismo e o anarcocapitalismo (Prado, 2024-A)

No primeiro caso, note-se, o “operador ideológico” era distinto; consistia em um apelo à nacionalidade – princípio de igualdade abstrato e forma de unificação –, pois só assim era possível juntar indivíduos contrafeitos de diversas categorias sociais para formar uma massa que se projetava num líder totalitário. Os fascismos, como se sabe, surgem em potências industriais constrangidas que lutam para ampliar os seus domínios econômicos.

No segundo caso, os extremismos vem juntar indivíduos que se pensam como sujeitos dispostos a prosperar numa sociedade competitiva – posta e estabelecida já por meio de uma hegemonia imperialista global – e que se projetam em líderes arrivistas bem-sucedidos. O móvel psicológico aqui não é a realização coletiva por meio de um projeto posto pelo Estado, mas a obtenção de máxima liberdade econômica em um Estado policial que renunciou a qualquer forma de solidariedade.

A ubiquidade da “ideologia do empreendedorismo” nas últimas décadas tem diversas fontes, que vão desde o neoschumpeterianismo do teórico de gestão Peter Drucker até a generalização de “empreender” como praticamente sinônimo de toda ação humana por parte da escola austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. Em países como o Brasil, “sua difusão desde os anos 1980 se deveu principalmente ao (…) domínio absoluto das ideias neoliberais no debate público (…), mas também pesaram muito a crescente penetração das igrejas evangélicas que pregam a chamada “teologia da prosperidade” e o boom da indústria da autoajuda e do coaching” (Nunes, 2024).

Numa perspectiva marxista heterodoxa, centrada de fato no conceito de ideologia levantado por György Lukács em Para uma ontologia do ser social, Medeiros e Lima escreveram também um texto bem relevante sobre esse tema (Medeiros e Lima, 2023). Apresentando uma conexão não apontada por Rodrigo Nunes, mostraram aí que existe uma afinidade entre a concepção de trabalho como atividade empreendedora e a concepção pressuposta de que o trabalhador pode e deve ser apreendido como capital humano.

Para eles, essas duas teorias, baseadas ambas numa “mesma visão de mundo conservadora e atomista”, deram forma a um modo de pensar socialmente validado que extrapolou o campo teórico em que nasceu, que se difundiu no capitalismo contemporâneo e se tornou senso comum.

Agora é preciso notar que, em perspectiva lukacsiana, esses dois autores entendem ideologia como sistema de ideias que tem a função de dirimir, ou seja, de obstruir o desenvolvimento dos conflitos sociais (em particular, os de classe) evitando que eles produzam transformações. Na base do fenômeno da ascensão das novas direitas, para eles, encontra-se a “ideologia empreendedora”; eis que ela tem a “possibilidade de gerar uma resposta pessoal (e, eventualmente, coletiva) a problemas cotidianos numa sociedade em que os indivíduos se opõem com sujeitos de diferentes classes, raças, gêneros, etnias etc.”.

Como essa concepção julga que “a função ideológica não depende do caráter de conhecimento das ideias” postas em circulação, ela difere – apontam os autores – da concepção marxista mais difundida segundo a qual ideologia é “pensamento falso socialmente necessário”.

Nessa perspectiva, esses dois autores condensam do seguinte modo o julgamento que fazem sobre o empreendedorismo: “O sucesso da internacional capitalista tem relação com o próprio poder do capital, que hoje domina de modo muito estreito a chamada indústria cultural, de formação e difusão simbólica, do jornalismo a todas as formas de arte. (…) a prática de trabalhadores e trabalhadoras (…) configura uma reação às condições brutais do capital que, em vez de obstá-las, as reforçam deliberadamente. A rigor, esse é justamente a função ideológica das teorias que aqui examinamos: elas são, em sua versão vulgarizada, formas de consciência destinadas a desarmar impulsos revolucionários ou mesmo reformistas (…) da classe trabalhadora”. (Medeiros e Lima, 2023, p. 51).

Uma crítica amigável desses dois textos precisa partir de uma compreensão de ideologia que não seja apenas superestrutural. Para apresentá-la, é preciso convir que as ideologias, enquanto modos de selar e ocultar as contradições, têm sempre uma base objetiva e que, a partir daí, elas se levantam como construções intelectuais quase-autônomas, que ganham força quando conseguem obter grande acolhimento na esfera pública.

A base objetiva das ideologias consiste, numa perspectiva bem marxiana, na aparência da prática social que, por isso mesmo, deve ser considerada como socialmente necessária. Enquanto formações que moram na cultura, ou seja, na superestrutura, as ideologias são produtos do entendimento que apreendem as relações externas entre os fenômenos, mas que não deixam de se valer também, para realizar esse fim instrumental, de elementos apenas imaginários, ou seja, falsos.[i]

Nesse sentido, por exemplo, tenha-se em mente as noções de homo oeconomicus, algo diversas entre si mesmas, que foram formalizadas nas diversas teorias econômicas (clássicas, neoclássicas, austríacas etc.). Considere-se, também, que elas estão assentadas em características presentes nos comportamentos dos indivíduos sociais que pululam na economia mercantil generalizada. Se são noções de um saber raciocinativo – e normativo –, elas têm uma base real na realidade social a que se referem.

Ora, esse produto “puramente intelectual da ciência, que pensa o homem como uma unidade abstrata, inserida num sistema científico” – segundo Karel Kosik – “(…) é um reflexo da real metamorfose do homem, produzida pelo capitalismo”. Não se está diante, portanto, nem de uma mera ideia livre flutuante nem de uma determinação antropológica geral, mas do produto de um sistema, qual seja ele, daquele que está nucleado no automatismo da relação de capital. Eis que “o homo oeconomicus” – explica esse autor – é o homem como parte desse sistema, como elemento funcional desse sistema e, como tal, deve estar provido das características fundamentais indispensáveis ao funcionamento desse sistema” (Kosik, 1969, p. 82-83).

Na verdade, como Karl Marx já explicara em O capital, o homem econômico é o personagem por excelência da esfera da circulação mercantil, dentro qual ocorrem as vendas e as compras de mercadorias, inclusive das vendas e das compras de força de trabalho. Desse modo, os seus atributos se figuram como naturais. E ele habita um mundo concorrencial que se denota como “um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem”. Se os homens aparecem aí como iguais, livres e auto-interessados, o próprio sistema figura como um “reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (Marx, 2013, p. 185).

Na verdade, nesse trecho de O capital, Marx apresenta as contradições que movem os sujeitos assujeitados que se apresentam como homo oeconomicus. E elas são duas: uma delas se encontra no capitalista que se julga um empreendedor, mas é, na verdade, apenas personificação do capital; a outra está no trabalhador que fica obrigado a se comportar como livre contratante de sua força de trabalho, mas que é, na verdade, um elemento explorável ou não, peça possível da “grande máquina” da relação de capital. Tenha-se presente, ademais, que essas contradições estão postas tanto na condição objetiva quanto na subjetividade dos “sujeitos” em geral que “prosperam” no capitalismo.

“Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já pode-se perceber certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da… despela”. (Marx, 2013, p. 185).

Note-se, agora, que essas duas dramatis personae assim se apresentam na interface da produção e da circulação mercantil, que nada mais é do que a aparência do capitalismo industrial na pujança que adquirira em meados do século XIX e que podia ser exposto assim teoricamente. Sendo assim, como a condição de empreendedor pode ganhar generalidade no desenvolvimento deste modo de produção, apresentando-se como condição existencial e subjetiva tanto de capitalistas quanto de trabalhadores assalariados ou por conta própria?

Pode parecer uma lembrança inesperada, mas é preciso apresentá-la aqui enfaticamente: a possibilidade dessa ilusão foi explicada por Marx muito antes que a onda do empreendedorismo assomasse na história, o que, como foi visto, aconteceu apenas após os anos 70 do século XX. Para melhor compreendê-la, note-se, já de início, que tal possibilidade depende da posição do capital portador de juros como forma de sociabilidade inerente ao modo de produção capitalista.

Na seção V do Livro III de O capital, encontra o seguinte: “a forma de capital portador de juros é responsável pelo fato de que cada rendimento determinado e regular em dinheiro apareça como juros de algum capital – ou não”, isto é, como ganho associado a uma soma que rigorosamente não é capital. Se um montante de dinheiro é emprestado por um banco ou outra instituição financeira para uma empresa da esfera do capital industrial ou comercial, trata-se sim, realmente, de capital portador de juros – ao final de certo período haverá o refluxo do principal acrescido de juros e esse acréscimo – juros – responde por parte do mais-valor gerado na produção de mercadorias.

Mas se um montante é emprestado por qualquer instituição financeira ao Estado, a bancos, a consumidores, então se tem o que Marx denominou de capital fictício, que parece ser, mas não é de fato portador de juros. O que ocorre aqui é que o fluxo de pagamentos se afigura – sem ser em efetivo – um refluxo do principal acrescido de juros. Eis como ele próprio explica para os casos do empréstimo ao setor público e do usurário: “para o credor original, a parte dos impostos anuais que lhe cabe representa juros de seu capital, do mesmo modo que para o usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido despendida como capital”.

Eis que capital, a rigor – e isso é muito importante –, é a relação de exploração da força de trabalho que se manifesta de modo reificado, sucessivamente, como dinheiro, meios de produção, forças de trabalho e mercadorias.

Desse modo, Marx explica também a ilusão “capital humano” que chama de insana, sem usar, no entanto, essa nomenclatura consagrada depois. “A insanidade da concepção atinge aqui” – diz – “seu ponto culminante” – e ela já aparecera nos escritos de Willian Petty no século XVII. “Em vez de explicar a valorização do capital pela exploração da força de trabalho, procede-se de modo inverso, elucidando a produtividade da força pela circunstância de que a própria força de trabalho é essa coisa mística que se chama capital portador de juros” (idem, p. 523).

Dito de outro modo, como o ganho salarial se apresenta como um fluxo possível de remuneração futura do trabalhador, ele é tomado figuradamente como se fosse juros, os quais são então capitalizados, também de modo místico, para formar o “capital humano”.

É assim, pois, que a força de trabalho e o trabalhador passam a ser pensados, respectivamente, como capital humano e como empresário de si mesmo. Posto isso, resta explicar por que só a partir dos anos 1980 esse tipo de concepção invadiu e tomou a esfera pública nos países capitalistas em geral. A razão está em que, com a ascensão do neoliberalismo,[ii] o capital portador de juros – real ou aparente, ou seja, capital fictício – se tornou finalmente a forma por excelência do capital. Ao fim e ao cabo de um curso que se iniciou já nos primórdios do capitalismo com a criação das sociedades por ações, o que Marx denominou de processo de socialização do capital chegou então ao seu ponto de cume no Ocidente (Prado, 2024-B).

Nesse processo centenário, o grande capital industrial e comercial se tornou domínio do capital financeiro e o capitalismo como um todo se tornou financeirizado (Maher e Aquanno, 2014, contam essa história; Prado, 2024, tentou sintetizá-la). A ideologia empreendedora, agora oportunista, difunde-se na sociedade como uma nova naturalidade do homem econômico; a própria esfera da política se torna um domínio em que prosperam empreendedores políticos, eles mesmos insanos e, por isso, suicidários.

E aqui é preciso ver que uma diferença crucial entre o capital industrial e o capital de finanças em geral. Se o primeiro engendra uma sociabilidade voltada à transformação coletiva do mundo e, por isso, propensa à solidariedade (mas também ao autoritarismo), o segundo favorece um individualismo extremo que confia cegamente na capacidade do sistema econômico de gerar benefícios, como diria Friedrich Hayek, espontaneamente, a ponto de cair no ecocídio para “ganhar” mais-vida.

Eis que a perspectiva da circulação, dos mercados, domina o pensamento desse autor. Ora, se o primeiro capital cria o empreendedor construtivista, o segundo produz o empreendedorismo oportunista. Quando o segundo predomina como forma do capital, a figura central deixa de ser o industrialista para ser substituída pelo aproveitador de oportunidades de ganho, ou seja, o rentista.

De uma perspectiva global, vê-se que o imperialismo norte-americano, principal beneficiário da mundialização do capital e da dominância financeira ocorridas após o fim da II Guerra Mundial, parece disposto a destruir o mundo para manter a sua hegemonia. As novas direitas que operam nesse mundo, de qualquer modo, avançam mesmo porque a esquerda, representante do velho proletariado, parece ter perdido o rumo e a esperança. A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção.

Como encontrar uma fresta na história que leva a outro caminho? Quem pode compor um novo proletariado? Como as vítimas das catástrofes do capitalismo financeirizado podem ser mobilizadas para criar um modo de sociabilidade, superando assim as contradições dilaceradoras do modo atualmente prevalecente?

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Referências


Adorno, Theodor W. Adorno – Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora da UNESP, p. 153-189.

Kosik, Karel – Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Maher, Stephen e Aquanno, Scott – The fall and rise of American finance – From J. P. Morgan to BlackRock. Londres/Nova York: Verso, 2024.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, Tomo I: 2013; Tomo III: 2017.

Medeiros, João L. e Lima, Rômulo – Contra a ideologia empreendedora: argumentos para uma crítica marxista. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, nº 66, 2023, p. 30-57.

Nunes, Rodrigo – As declinações do “empreendedorismo” e as novas direitas. Sitio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), 20 de agosto de 2024.

Prado, Eleuterio F. S. – Ordocapitalismo e anarcocapitalismo. In: A terra é redonda, 19/06/2024-A. Blogue Economia e complexidade, 21/07/2024.

Prado, Eleuterio F. S. – Sobre a socialização do capital. A terra é redonda, 12/09/2024-B. Blogue Economia e complexidade, 22/09/2024.

Safatle, Vladimir – A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

Notas


[i] Mesmo se a perspectiva do conhecimento se mostra insuficiente compreender o empreendedorismo, aqui não se deseja ir além dela, sob a finalidade mostrar a base estrutural dessa disposição psicopolítica. Mas que fique aqui registrado que as ideologias – e isso é bem importante – conjugam-se sempre com a propagação de normatividades no meio social, as quais configuram os indivíduos de fora e por dentro, ou seja, psicologicamente. Dito de outro modo, a compreensão mais completa desse fenômeno requer a) a ciência de como ele se sela e cala as contradições; b) o saber das regras e leis que põe e que constrangem os comportamentos dos indivíduos sociais; c) o conhecimento da psicologia que produz e conforma os indivíduos a assumirem “uma figura antropológica, fortemente reguladora, a ser partilhada por todos os indivíduos que aspiram a ser socialmente reconhecidos” (Safatle, 2023, p. 33).

[ii] O neoliberalismo, como se sabe, veio a ser uma resposta à crise de lucratividade dos anos 1970, a qual permitiu uma nova onda de mundialização do capital e, assim, de expansão do imperialismo norte-americano. Enquanto tal, ele é tanto uma ideologia quanto uma normatividade, tanto uma política econômica quanto uma política social com repercussões no modo de ser dos indivíduos sociais.

Leia também: radicais ensandecidos https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/02/radicais-ensandecidos.html

O socialismo vive

O Socialismo como rumo necessário para o sucesso do desenvolvimento
Entrevista exclusiva que o Portal da FMG fez com os pesquisadores Diogo Santos, Iago Montalvão e Flávia Calé, coordenadores do Grupo de Acompanhamento e Pesquisa (GAP) sobre “Desenvolvimento nacional e socialismo” da Fundação Maurício Grabois  

Qual a relação entre o desenvolvimento e a construção do socialismo no Brasil? Esse foi o tema da entrevista concedida por Diogo Santos, Iago Montalvão e Flávia Calé, coordenadores do Grupo de Acompanhamento e Pesquisa (GAP) sobre “Desenvolvimento nacional e socialismo” da Fundação Maurício Grabois, para o Portal da FMG. Na entrevista, os pesquisadores lembraram da importância da questão ambiental para esse projeto. “Há uma grande disputa no mundo atualmente sobre como enfrentar os impactos ambientais das atividades econômicas”, avaliam. 

Diogo, Flávia e Iago, a mais recente experiência da Fundação Maurício Grabois foi a criação dos Grupos de Acompanhamento e Pesquisa (GAPs). Podem nos contar um pouco sobre o GAP – Desenvolvimento nacional e socialismo, do qual vocês são coordenadores?

Esse GAP tem foco no desafio do desenvolvimento nacional e sua relação com a luta pelo Socialismo no Brasil, que é o objetivo estratégico do PCdoB.
O trabalho de pesquisa do grupo está organizado em seis eixos de pesquisa: 1) Desenvolvimento e questão ecológica; 2) Desenvolvimento e finanças públicas; 3) Financiamento do Desenvolvimento e dominação financeira; 4) Dimensões política e ideológica do Desenvolvimento; 5) Desenvolvimento industrial, científico e tecnológico; 6) Dimensão social do desenvolvimento. Cada um desses eixos contém temas mais detalhados que direcionam o trabalho do grupo. Eles foram selecionados de acordo com o debate atual sobre desenvolvimento na sociedade, no interior do Partido, e também na Academia. Destacaria em particular a necessidade de desenvolvimento das articulações entre luta política, ideológica e a dimensão social do desenvolvimento. Esses temas são notoriamente relevantes, pois envolvem o tema da estratégia de luta pelo socialismo tendo o de senvolvimento como caminho. Nisso se inclui desvendar os caminhos necessários para envolver diretamente as camadas populares na luta pelo desenvolvimento.

Os primeiros passos do grupo será analisar a atual política industrial e tecnológica do governo federal à luz desses eixos e temas. O objetivo é fornecer ao Partido e ao campo progressista uma leitura abrangente e propositiva dos desafios de ordem econômica, política e ideológica para o sucesso de uma estratégia de modernização industrial nas condições atuais.

Um tema importante que está no radar do Gap é o da crise ambiental. Como aliar o desenvolvimento com a redução das externalidades ambientais?

Esse tema é um dos eixos de pesquisa do grupo e também é um tema central em pelo menos dois programas do governo federal, o Nova Industria Brasil e o Plano de Transformação Ecológica. Há uma grande disputa no mundo atualmente sobre como enfrentar os impactos ambientais das atividades econômicas. Existem propostas mais liberais alicerçadas na ideia de que o mercado, sobretudo financeiro, é capaz privadamente de enfrentar os desafios de mobilização de recursos, bastando o Estado conceder as garantias de lucratividade e redução de riscos, ou seja, o Estado em função da grande burguesia financeira. E existem caminhos com maior presença do Estado na coordenação do processo econômico, do qual a China é o exemplo mais claro, e que está mais alinhado aos desafios de países subdesenvolvidos como o Brasil.

A grande questão para o Brasil é que a disputa atual mundial pela transformação produtiva na direção da indústria 4.0 e de uma economia neutra em emissão de carbono, traz oportunidades, mas também grandes riscos. Sem um projeto coordenado pelo Estado, o Brasil entrará nesse processo na posição colonial em que sempre esteve, isto é, como fornecedor de matérias-primas, como minerais raros e nobres, relevantes para a produção de componentes industriais de ponta, ou como fornecedor de energia renovável para empresas multinacionais que aqui se instalem, ou exportando, indiretamente, energia renovável, sem alterar a estrutura produtiva local. Essa é a tendência deste processo. Investimentos gigantescos estão sendo feitos por EUA, Europa e China nessa direção. São valores com os quais o Brasil não consegue competir, sobretudo, dado o controle que a burguesia financeira conquistou sobre a política econômica no país. Desse modo, o Brasil deve correr contra o tempo para evitar que uma nova relação centro-periferia se consolide.

Felizmente, o governo Lula tem demonstrado clareza desse desafio. E o PCdoB, especialmente a partir do MCTI, tem sido essencial para imprimir esse rumo ao governo. Mas os obstáculos políticos, ideológicos e também econômicos são consideráveis. É crucial que esse projeto continue a frente do governo federal por vários mandatos. Para isso é imprescindível que os trabalhadores, nos quais se incluem, homens, mulheres, negros, jovens, população periférica, e também a classe média progressista, seja protagonista da defesa desse caminho. Que esses setores identifiquem o desenvolvimento como uma questão urgente. Vale lembrar Juscelino Kubitscheck quando, ainda presidente, disse que “…desenvolvimento do Brasil não é uma pretensão ambiciosa, um desvario, um delírio expansionista, mas uma necessidade vital. Desenvolver para nós, é sobreviver…”.

Em síntese, o sucesso do urgente desenvolvimento do Brasil exige a participação ativa do povo, sobretudo dadas as fragilidades políticas e ideológicas da burguesia industrial, após décadas de regressão produtiva do país. É nesse sentido, que a luta pelo desenvolvimento só pode ganhar a envergadura que precisa, se tiver o Socialismo como rumo, ou seja, o povo como protagonista político e o Estado como coordenador do processo econômico. O GAP buscará contribuir para compreendermos e encontrarmos esses caminhos.

Além desse tema, quais outros vocês consideram importante para a agenda do GAP?

O que nós estamos chamando de “dimensão social do desenvolvimento”. O que entendemos por essa expressão é exatamente como articular a estratégia de desenvolvimento com a transformação objetiva das condições de vida das classes populares. A ideia é que as classes populares devem ser as maiores e mais diretamente beneficiadas pelo desenvolvimento. Isso é um ponto chave, pois essas classes precisam necessariamente serem a base social de defesa e luta pelo desenvolvimento. Isso envolve temas como infraestrutura social e urbana; economia doméstica e de cuidados; economia assistiva e complexo industrial da saúde; desenvolvimento regional. O ponto é a vinculação entre demandas populares e desenvolvimento.

Uma das tarefas dos GAPS é contribuir com a formulação do novo programa do PCdoB que será aprovado no ano que vem, no 16º. Congresso. O que vocês imaginam que haverá de novidade nesse novo programa?

Essas novidades surgirão ao longo do percurso de pesquisa. Um tema já presente no atual programa, mas que poderá ser aperfeiçoado é justamente a relação entre desenvolvimento e Socialismo. O programa do PCdoB já é claro quanto ao papel protagonista da classe trabalhadora na luta pelo desenvolvimento nacional, contudo, talvez seja necessário aprofundar a compreensão sobre a relação reciproca entre desenvolvimento e luta pelo socialismo, ou seja, que a luta pelo desenvolvimento somente pode ser exitosa se tiver o socialismo como rumo. Veja, não é somente o desenvolvimento como caminho ao Socialismo; mas o Socialismo como rumo necessário para o sucesso do desenvolvimento.

Diogo Santos é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período na Universidade de Leeds na Inglaterra. Suas áreas principais de pesquisa são financiamento do desenvolvimento e política industrial. É da direção do PCdoB em Minas Gerais e em Belo Horizonte.

Iago Montalvão é mestrando em Economia no IE-Unicamp e pesquisador do Transforma-Unicamp. Suas áreas de pesquisas são financiamento da transformação ecológica no sul global. É da direção do PCdoB no estado de São Paulo.

Flávia Calé é Doutoranda em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Conselheira do Ctc-ES da Capes. É da direção estadual do PCdoB GO.

Leia sobre o mundo do trabalho: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/08/mundo-do-trabalho-em-metamorfose.html 

Mídia neoliberal

A Folha e os dois projetos de país em disputa
Ataques da Folha de S. Paulo contra a FINEP e a Petrobras mostram que a agenda neoliberal voltou a pressionar o governo Lula.
Teóphilo Rodrigues/Fundação Maurício Grabois 
www.grabois.org.br

A eleição presidencial de 2022 foi marcada, mais do que qualquer outra, pelo signo da chamada Frente Ampla. Contra um projeto neoliberal, autoritário, negacionista e conservador liderado pelo então presidente Jair Bolsonaro, uma larga aliança política reuniu lideranças do campesinato, da classe trabalhadora urbana e de frações de classe da burguesia, além de setores da imprensa, em torno da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da República. Nada expressou melhor essa aliança do que o fato de Lula ter como seu vice o paulista Geraldo Alckmin.

Essa chapa Lula/Alckmin foi eleita para impedir o avanço do projeto fascista no país. Ela foi vitoriosa, não obstante elementos do fascismo ainda estejam presentes na sociedade brasileira e em algumas lideranças políticas da oposição.

No entanto, para além da mudança política, a vitória de Lula também representou uma mudança de política econômica. Se os governos de Michel Temer e Bolsonaro ficaram identificados com a austeridade fiscal e as privatizações, o novo governo que teve início em 2023 trouxe consigo uma forte agenda de desenvolvimento e fortalecimento do Estado brasileiro. Sob esse registro, o programa conhecido como Nova Indústria Brasil parece ser o principal instrumento do atual governo para a intervenção econômica do Estado.

Claro, essa mudança de economia política não tem ocorrido sem contradições e conflitos. Isso é o que podemos ver nas críticas desferidas pelo jornal Folha de S. Paulo ao governo Lula desde o ano passado.

A Folha e a normalização do bolsonarismo

Em 30 de março de 2023, a Folha iniciou o processo de normalização do bolsonarismo. Em uma primeira versão online do seu editorial publicado naquele dia, o jornal concluiu o seguinte: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”.

O texto não caiu bem entre os leitores e o jornal rapidamente mudou essa frase no editorial da versão impressa, que ficou assim: “O bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é infelizmente, o desfecho mais provável”.

Independentemente da rápida correção na frase, o fato é o mesmo. Para a Folha, é possível que o bolsonarismo seja moderado, assim como é possível que canibais comam de garfo e faca.

A Folha e a privatização da Petrobras, da Caixa e do Banco do Brasil

Foi nessa toada que a Folha apresentou o seu projeto econômico para o Brasil em editorial publicado no dia 24 de agosto de 2024. Intitulado “Privatizar Petrobras, Caixa e Banco do Brasil”, o editorial defende abertamente que as três grandes empresas brasileiras entrem no programa de desestatização, ou seja, que sejam privatizadas.

Em suas palavras, “o inconcebível hoje é que tais atividades e serviços públicos já tenham estado à mercê da ineficiência da gestão pública”. Contudo, dados recentes mostram que as estatais brasileiras tiveram lucros somados de R$ 197 bi em 2023. Que ineficiência seria essa?

O que a Folha defende é um projeto de país em que os lucros das empresas retornem apenas para alguns poucos, repetindo aquilo que a literatura especializada conhece como a “teoria dos acionistas”. Como argumentava Milton Friedman, “o único propósito de uma empresa é gerar lucro para os acionistas”. Essa frase do pai do neoliberalismo parece guiar a linha editorial da Folha.

A Folha contra a Finep

Hoje (29/08) foi a vez do Grupo Folha, por meio do UOL, girar seus ataques para uma outra empresa estatal, a Finep. Em tom de denúncia, a matéria alega que “a Finep, estatal de ciência e tecnologia, se tornou uma espécie de BNDES paralelo” e que ela oferece juros “mais baixos que os do mercado”. Diz a matéria:

“Nenhum banco, privado ou público, oferece esse patamar de juros. As empresas estão pagando, em média, 5% ao ano, com um prazo de 10 a 16 anos para restituir o dinheiro à estatal. O BNDES, por exemplo, cobra pelo menos 5,9% ao ano em juros. Os bancos comerciais, de 20% a 30%, segundo levantamento do Banco Central”.

Para a Folha, um banco estatal oferecer crédito em condições vantajosas para estimular o desenvolvimento nacional parece ser um crime. Ora, mas essa não deveria ser justamente a função de um banco estatal?

Ademais, qual o problema da Finep ser “uma espécie de BNDES paralelo”? Para ficarmos em apenas um caso de sucesso, a China possui diversos bancos de desenvolvimento. Será que o Brasil não deveria seguir esse exemplo e também ter diversos outros bancos como o BNDES e a Finep? Ainda assim, cabe ressaltar: BNDES e Finep não possuem atividades exatamente semelhantes, mas sim complementares. Enquanto a Finep possui a responsabilidade de apoiar projetos de inovação para introdução no mercado, o BNDES realiza investimentos para elevar a capacidade produtiva das empresas.

Para tentar sustentar sua denúncia, o texto traz adjetivos para tentar atacar o que é justamente a função da Finep. O jornal diz o seguinte: “Para obter os empréstimos “amigáveis” administrados pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), é preciso apresentar um projeto que proponha inovação tecnológica”. Ora, mas essa é justamente a razão de ser da empresa. Pelo visto, o jornal descobriu a existência da estratégica Finep somente agora.

A oposição da Folha ao governo federal mostra claramente que existem dois projetos de país em disputa. Por sinal, é saudável em uma democracia que projetos distintos disputem espaços na esfera pública. O que não é saudável é que sejam utilizados instrumentos torpes que mascarem a realidade ou que firam deslealmente a integridade de figuras públicas como tem feito o jornal de São Paulo no caso da Finep e do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Leia também: democracia e soberania nacional https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/editorial-do-vermelho_10.html

Uma crônica de Ruy Castro

Baixarias literárias
Assim como os políticos, os escritores também resolviam suas querelas a bengaladas ou pespegando insultos xenófobos
Ruy Castro/Folha de S. Paulo  

Bate-bocas e baixarias entre políticos ou pseudos estão se tornando regra, mas não têm nada de original. Afinal, são sujeitos grossos, rudes, muitos vindos dos subterrâneos. O que os redime é que outras categorias também costumam partir para a ignorância, mesmo que, em tese, sejam pessoas educadas. Escritores, por exemplo —eu disse em tese.

Algumas das mais sangrentas querelas literárias brasileiras envolveram os engomados poetas parnasianos e eram resolvidas a bengaladas na rua do Ouvidor. Outras iam até mesmo ao duelo a floretes, como aquele entre Olavo Bilac e o jornalista Pardal Mallet, em 1889 —durou quatro segundos e os dois nunca disseram quem venceu. E trocas de insultos na porta da Colombo eram a toda hora. Os escritores se descompunham gritando "Troca-tintas!", "Suja-laudas!", "Torpe!", "Vil!", "Pelintra!", "Biltre!", "Caolho!".

Mas nem sempre as agressões verbais se davam nesse alto nível. Em 1964, o jornalista e biógrafo R. Magalhães Jr. publicou seu alentado "Rui, o Homem e o Mito", dinamitando com classe as lendas, contradições e mancadas que atribuiu a Rui Barbosa. O livro fez barulho, porque Rui ainda era mais ou menos sagrado —quase todos o admiravam, muitos sem saber por quê. Ato contínuo, dois baluartes do conselheiro baiano, cada qual com um livro, saltaram na arena para defendê-lo: os beletristas Salomão Jorge e Oswaldo Orico.

Nunca me interessei muito pelos argumentos pró ou contra Rui, mas os títulos dos livros-resposta eram fulminantes. O de Salomão Jorge, "O Piolho na Asa da Águia", referia-se ao epíteto Águia de Haia, como Rui ficou conhecido por seu suposto brilho numa conferência em Haia, em 1907. E o de Oswaldo Orico era pior ainda —num insulto hoje inadmissível por xenófobo, intitulou-se "Rui, o Mito e o Mico". O piolho e o mico eram o baixinho, cabeçudo e atarracado cearense Magalhães Jr.

Magalhães, com quem tive o prazer de trabalhar na Manchete dos anos 1970 –sabia tudo de tudo—, reagiu à sua maneira. Riu das ofensas e, enquanto seu livro teve vida longa, os de seus detratores foram direto para os sebos, de onde nunca mais saíram.

Leia sobre Machado de Assis: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/urariano-mota-opina_28.html 

Eleições & crise urbana

As eleições e o futuro das cidades brasileiras
Diante das crises econômica, política e socioecológica e das turbulências do século XXI, o que está em jogo no futuro das cidades brasileiras? Quando se trata desse futuro, que temas merecem maior atenção, sobretudo em ano de eleições municipais?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz/Le Monde Diplomatique 

Refletir sobre o futuro das cidades é um grande desafio, que tem acompanhado disciplinas como o urbanismo e o planejamento urbano desde suas origens. No entanto, a verdade é que refletir sobre o futuro em geral é sempre desafiante, especialmente quando essa reflexão é feita em períodos de expressivas mudanças históricas. Isso porque, em fases como essas, há muita incerteza e, com frequência, manifesta-se, em diferentes âmbitos, um padrão de crise e reestruturação da vida em sociedade.

Na economia, por exemplo, é comum sustentar que as grandes crises do capitalismo marcam a passagem de um velho a um novo regime de acumulação, para utilizar a linguagem dos regulacionistas. Assim, após a crise sistêmica dos anos 1970, um regime de acumulação financeirizado substituiu o regime fordista. Desde então, com a predominância do capital fictício, os processos de acumulação se tornaram muito instáveis, e as crises, mais frequentes.

No campo das relações internacionais, por sua vez, existe um amplo debate sobre como os episódios mais críticos da geopolítica, particularmente as grandes guerras, contribuem para estabelecer a divisão entre antigas e novas ordens mundiais. Hoje, diante da ascensão da China e no contexto do que parece ser uma Guerra Fria 2.0, reloca-se a polêmica sobre a estabilidade do sistema mundial, que vinha sendo hegemonizado pelos Estados Unidos. Com efeito, não se sabe muito bem para onde vai o equilíbrio de forças entre as potências mundiais.

No domínio dos estudos culturais, também se costuma fazer alusão a algo como uma crise ou, no mínimo, um mal-estar que opera como divisor de águas entre paradigmas de representação da realidade. Cabendo destacar que tudo isso não ocorre de maneira isolada, bastando mencionar, a título de ilustração, o clássico Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, de 1989, escrito por David Harvey, cuja hipótese fundamental era a seguinte: “Há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compressão do ‘tempo-espaço’ na organização do capitalismo”.

Atualmente, quando nos aproximamos do fechamento do primeiro quartel do século XXI, vivemos algo parecido. Este século tem se caracterizado, até agora, por um complexo padrão de crise e reestruturação. Há, no Brasil e no mundo, diversas crises em curso. Vladimir Safatle, em seu Alfabeto das colisões, fala, por exemplo, de uma série de crises conexas que atravessam o país. E vários outros autores e autoras defendem argumentos semelhantes, sugerindo que estamos diante de múltiplas crises (econômicas, sociais, políticas, socioecológicas etc.), as quais abrem caminho para mudanças disruptivas ou são impulsionadas por elas.

No mundo dos negócios, considera-se que inovações disruptivas são as que expressam o poder de algumas empresas de promover mudanças radicais na produção e no consumo de bens e serviços. O século XXI está repleto de inovações desse tipo, a começar por aquelas identificadas com o advento do capitalismo de plataforma, um conceito cada vez mais utilizado, desde que Nick Srnicek publicou, em 2016, seu Platform capitalism. No entanto, não é preciso conhecer a fundo a obra de Srnicek para concluir que as plataformas digitais de serviços, as empresas-aplicativo e a expansão do e-commerce transformaram significativamente as experiências típicas da sociedade de consumo. Para o que contribuiu a pandemia de Covid-19, outro episódio crítico do século XXI, que funcionou como um catalisador do ajustamento geral d as subjetividades aos imperativos das economias digitais/plataformizadas que já estavam em desenvolvimento. Também não é demais lembrar os impactos, igualmente críticos, do surgimento dessas novas economias no mundo do trabalho, cada vez mais instável e precário.

Em resumo, vivemos um momento crítico, pautado por incertezas e transformações estruturais, que se manifestam em todas as esferas da vida social. Portanto, o modo como habitamos nossas cidades, a maneira como seus problemas se expressam, o debate sobre sua solução; tudo isso, enfim, precisa ser colocado nesses termos. Ou seja, diante das turbulências do século XXI, o que está em jogo no futuro das cidades brasileiras? Quando se trata desse futuro, que temas merecem maior atenção, sobretudo em ano de eleições municipais?

Antes de tentar responder a essas questões, com base no que foi acumulado no âmbito do projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível”, é necessário recordar que estamos diante de outra crise, a gravíssima crise das cidades brasileiras.

A crise urbana brasileira

A crise das cidades, notadamente das metrópoles, está constantemente em debate. As origens do urbanismo e do planejamento urbano, na passagem do século XIX para o XX, remetem não só às projeções que então se faziam sobre o futuro das cidades, mas também às tentativas de mobilizar técnicas e saberes em nome da solução de seus problemas.

“Crise urbana” é, portanto, uma expressão antiga e muito utilizada. Porém, nem sempre é explicitamente definida. Partindo de uma perspectiva que considera sobretudo o caso de países como o Brasil, isto é, países dependentes e periféricos, defendemos que a crise urbana deve ser definida como a incapacidade de reunir nas cidades, especialmente nas grandes cidades, as condições mínimas de reprodução biossocial, em termos de segurança pública, alimentar e ambiental; de mobilidade; de acesso ao emprego, à habitação, à saúde, à educação etc. Quer dizer, à exceção dos espaços ocupados pelas classes mais abastadas, os famosos bairros nobres, as cidades brasileiras são, em geral, estruturalmente incapazes de oferecer os bens e serviços indispensáveis ao que o imagin&aacut e;rio popular chamaria de “vida digna”.

Entretanto, a crise estrutural das cidades brasileiras oscila de acordo com as conjunturas. Por exemplo, no período que se sucedeu ao golpe de 2016, mas também ao longo da pandemia de Covid-19, a crise urbana foi bastante agravada no país. No contexto de combinação entre inflexão ultraliberal e emergência sanitária, ela adquiriu níveis e formas de manifestação explosivos, como foi o caso do acentuado incremento dos índices de insegurança alimentar. Hoje, existem sinais de melhoria em alguns indicadores, quando comparados com esse momento mais crítico. Seja como for, é possível dizer que, no século XXI, agravada ou amortecida, a crise urbana brasileira diz respeito, principalmente, aos seguintes aspectos:

  • tendência ao colapso dos sistemas de mobilidade;
  • altos índices de desemprego, crescente informalidade e/ou baixos níveis de renda dos trabalhadores;
  • expansão da violência;
  • recorrentes tragédias socioambientais;
  • crescente insegurança alimentar;
  • permanência da precariedade e do déficit habitacional;
  • ausência e/ou deterioração das infraestruturas físicas e sociais elementares;
  • incremento da população em situação de rua.

É com base nesses e em outros aspectos fundamentais que se deve formular uma agenda (de pesquisa e ação) que contribua para solucionar os graves problemas das cidades brasileiras do século XXI (alguns dos quais encontram suas origens nos séculos XX, XIX ou mesmo antes). Trata-se de abrir caminho para um futuro alternativo, que não seja o da reiteração, em suas formas explosivas ou atenuadas, da crise urbana brasileira. Vejamos, então, alguns temas que merecem maior atenção. 

Temas urgentes e incontornáveis

O projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível” partiu dessa caracterização da crise urbana brasileira. Estamos aproveitando o ano eleitoral de 2024 para incidir na agenda pública e estimular o debate a respeito dos problemas e desafios das cidades do país. Desde janeiro, pesquisadores e pesquisadoras dos dezoito núcleos regionais que compõem o INCT Observatório das Metrópoles publicaram aproximadamente trezentos artigos em vários veículos da mídia corporativa, alternativa e de rede. A ideia é contemplar oito temas fundamentais.

O tema segregação urbana e desigualdades remete ao clássico problema das relações entre os padrões de segregação urbana e os mecanismos de produção/reprodução das desigualdades sociais: desigualdades de bem-estar urbano, de oportunidades (educacionais e de trabalho), de renda, raciais, de gênero etc.

O tema governança metropolitana demonstra como a falta de tratamento da “questão metropolitana” tem aprofundado a oposição entre o núcleo e a periferia das metrópoles brasileiras, ao mesmo tempo que bloqueia o desenvolvimento da rede urbana do interior do país. Cabe ressaltar que a união de municípios, com o propósito de encontrar soluções para dificuldades comuns, é uma das estratégias mais eficientes no campo do planejamento e da gestão urbanos, o que está em conexão com o tema gestão democrática e participação cidadã, com o qual chamamos a atenção para a necessidade de democratizar radicalmente os mecanismos e as vias institucionais de participa&c cedil;ão na elaboração e execução de políticas urbanas.

O tema ilegalismos e serviços urbanos pode causar estranhamento. No entanto, ainda que as políticas de segurança sejam de responsabilidade estadual, elas não devem ser negligenciadas nos debates municipais, uma vez que há muitas interfaces entre segurança pública, política urbana e justiça socioespacial. Estamos aqui claramente diante de um tema que poderíamos chamar de “emergente”.

Por seu turno, o tema moradia e política habitacional também pode ser considerado clássico. Não obstante, ainda que o direito à moradia seja amplamente reconhecido no direito internacional e tenha sido incluído na Constituição brasileira, falta muito para que ele seja efetivamente tratado com prioridade.

O tema mobilidade e política de transporte levanta questões que são, a um só tempo, clássicas e emergentes. E é por isso que temos nos orientado por propostas que sugerem um modelo alternativo de mobilidade, como a Coalizão Triplo Zero, que advoga uma mobilidade urbana com tarifa zero, zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito. Uma das principais conexões aqui é com o tema transição ecológica, que sublinha a urgência de adaptação das cidades brasileiras aos impactos das mudanças climáticas, tanto quanto a necessidade de refletir (e agir) no campo das relações entre vulnerabilidade social e risco ambiental. Nesse caso, existem conexões ainda com o tema saneamento e meio ambiente, uma vez que, ao lado do clássico problema do atraso no acesso universal aos serviços de abastecimento de água, de coleta e tratamento de esgotos, surgem complexas questões a respeito do inadequado manejo das águas fluviais e pluviais no ambiente urbano. Manejo incapaz de fazer frente às ameaças de aumento das chuvas decorrentes da emergência climática, o que tem ficado cada vez mais evidente diante de sucessivas tragédias.

Esses são, para nós, os principais temas que desafiam as cidades brasileiras. Sustentamos que é em torno deles que se deve promover um amplo debate acerca do futuro de nossas cidades, tendo em vista as múltiplas crises, incertezas e mudanças estruturais do século XXI.

No entanto, é preciso ir além das atitudes típicas das “ciências parcelares”, isto é, aquelas que, segundo Henri Lefebvre, produzem um “campo cego” ao segmentar demais a análise da realidade urbana. Em suma, defendemos que, seja na esfera da pesquisa científica, seja na arena do debate público em torno do “que fazer”, é preciso ficar claro que crises e problemas “conexos” exigem soluções “conexas” e “complexas”. Enfim, no que tange à crise urbana, isso exige necessariamente instaurar e/ou fortalecer mecanismos de governança metropolitana, assim como resgatar o ideário da reforma urbana e do direito à cidade.

*Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor titular do Ippur-UFRJ e coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles; e Nelson Diniz é professor do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Leia: Campanha eleitoral para além da paróquia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/minha-opiniao-sem-limites.html

Europa tutelada

A União Europeia, a OTAN e os Cavaleiros Templários
Río de Janeiro (Observatório Internacional do Século XXI): O projeto de integração europeia foi concebido, depois da Segunda Guerra Mundial, como parte de um sistema supranacional liderado e tutelado pelos Estados Unidos, que visava pacificar um continente que viveu em estado de guerra quase permanente nos últimos 800 anos.
José Luis Fiori/Prensa Latina  

O projeto inicial foi lançado em 1951 com a assinatura, em Paris, do tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Eram apenas seis países -Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos- mas depois a comunidade inicial se expandiu e se transformou na atual União Europeia, com o Tratado de Maastricht, assinado em 1992, e chegou a ter 28 países-membros, até a saída da Grã-Bretanha, em janeiro de 2020.

O projeto inicial da Comunidade Europeia propunha a desmilitarização parcial dos Estados europeus, que deveriam transferir sua soberania militar para uma organização supranacional de defesa -a OTAN, que já havia sido criada em 1949- que garantiria “ajuda mútua” em caso de ataque externo a algum dos países-membros da comunidade.  

Apesar disso, o Tratado de Maastricht, assinado logo depois da unificação da Alemanha, estabeleceu como objetivo o desenvolvimento de uma política de segurança coletiva própria da União Europeia, mas até hoje nunca havia logrado equacionar o problema do relacionamento desta política de defesa regional com a política de segurança coletiva da OTAN, tutelada pelos Estados Unidos.

A formação e a expansão inicial da Comunidade Europeia avançaram sob a liderança conjunta da França e da Alemanha Ocidental, até a queda do Muro de Berlim. Entretanto, depois da reunificação da Alemanha e da incorporação dos antigos países comunistas da Europa do Leste, a União Europeia caiu prisioneira de uma armadilha circular, da qual nunca conseguiu se desvencilhar.

Ela precisava centralizar seu poder político e militar para poder formular uma estratégia internacional, mas essa centralização foi sistematicamente boicotada por seus principais sócios, a França, a Alemanha Ocidental e a Inglaterra, que nunca admitiram abrir mão de suas soberanias nacionais.

Um impasse que ficou ainda mais agudo depois da reunificação da Alemanha, que se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa cada vez mais assertiva e independente. O comportamento alemão reacendeu as antigas fraturas e competições do Velho Continente, acentuando o declínio da França e favorecendo a decisão britânica de se retirar do projeto comum.      

Mesmo assim, a União Europeia seguiu sem resolver sua “falha genética” fundamental, ou seja, a falta de poder central unificado capaz de impor objetivos comuns a todos os seus Estados-membros, e continuou dependendo dos Estados Unidos para sua defesa comum.

Essa situação começou a se modificar com a Guerra na Ucrânia, a partir de 2022, que reacendeu o medo comum e a paranoia da União Europeia com relação à Rússia, facilitando o processo de transformação da OTAN no verdadeiro governo militar da União Europeia, responsável direto pelo planejamento, financiamento e municiamento das tropas ucranianas.

A verdade é que, desde o momento de sua criação, em 1949, o objetivo da OTAN foi “manter os russos fora”, segundo as palabras do Lord Ismay, seu primeiro secretário-geral. Esse objetivo foi cumprido plenamente ao longo de toda a Guerra Fria. Mas depois da dissolução da União Soviética, em 1991, a OTAN passou por uma espécie de “crise de identidade” e de redefinição do seu papel dentro da Europa e no sistema internacional.

Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação dos países da Europa do Leste que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia – expansão que está na origem última da crise e da guerra na Ucrânia. Além disso, participou diretamente, pela primeira vez na sua história, das guerras da Iugoslávia e do Kosovo, em 1999.

E antes disso, em 1994, lançou um projeto de intercâmbio militar e segurança com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”. E dez anos depois, na sua reunião em Istambul, de 2004, decidiu expandir seu objetivo inicial, criando a “Iniciativa de Cooperação de Istambul” (ICI), voltada para os países do Oriente Médio.

No mesmo período, a OTAN se colocou ao lado das tropas anglo-americanas, nas guerras do Iraque e do Afeganistão, e depois também no norte da África. E agora, mais recentemente, vem se propondo a expandir sua presença na Ásia, participando do cerco militar da China que vem sendo implementado pelos Estados Unidos.

A Guerra na Ucrânia, entretanto, e a opção dos principais governos europeus de envolver-se diretamente no conflito, acabaram envolvendo a OTAN na primeira grande guerra europeia desde a Segunda Guerra Mundial. E tudo indica neste momento que os principais países europeus, junto com a nova chefia da Comissão Europeia e da OTAN, seja prolongar o conflito da Ucrânia, de forma a facilitar a criação de uma “economia de guerra” no território europeu.

Uma economia de guerra que seria liderada pela Alemanha, que já renunciou a sua indústria manufatureira tradicional para transformar-se na cabeça de um “complexo militar” envolvendo os demais países europeus. Esse novo projeto para a OTAN e a União Europeia conta com o apoio do atual governo norte-americano, e deverá se manter e aprofundar no caso de vitória dos democratas na próxima eleição presidencial.

Pelo menos foi isto que ficou sacramentado ao final da 75ª Reunião Anual de Cúpula da Otan, realizada na cidade de Washington, em julho de 2024, que confirmou a decisão de prosseguir e aprofundar o envolvimento da Organização na sua guerra Rússia, incluindo agora também a China na condição de adversária da OTAN. Neste sentido, ao comemorar seus setenta e cinco anos, se pode dizer que a OTAN decidiu se transformar definitivamente no “governo militar” da União Europeia, e ao mesmo tempo na última fortaleza da “civilização ocidental” contra os “ortodoxos russos”, os “povos islâmicos” e a “civilização chinesa”.

Uma espécie de Cavaleiros Templários do século XXI, responsáveis pela defesa do “Norte Global”.

O Observatorio Internacional do Século XXI é uma publicacao do Grupo de Pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo; Río de Janeiro, Brasil

Leia também sobre a integração sul-americana https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/integracao-sul-americana.html

Humor de resistência Spacca

 

Spacca

Leia: ainda a reforma tributária https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/03/qual-reforma-tributaria.html 

Pressões do mercado

Faria Lima e as contas públicas: entre a sinfonia e o cancan
Aí, esse país de patos ouve a trombeta de Josué: se a relação dívida/PIB aumentou, tem que aumentar os juros
Luis Nassif/Jornal GGN  

Como seria a Sinfonia das Contas Públicas pela Faria Lima, se o autor fosse Dmitri Shostakovich e suas sinfonias pessimistas e pesadas? 

Acompanhe a parte do bom conteúdo da reportagem “Economistas falam em ‘matemágica fiscal’, ‘gosto amargo’ e ‘baixa sensibilidade’ do governo em revisão das contas públicas”, do Valor Econômico, com o subtítulo “Atualização para baixo no contingenciamento surpreendeu negativamente e pode piorar reação do mercado” 

Primeiro movimento – Allegro (rápido 

Chama-se Allegro porque é apenas rápido. Mas, para a Faria Lima, é aberta com tragédia, como uma 8a Sinfonia de Beethoven, porque é o que vai ficar na memória dos leitores que lêem jornais com a profundidade com que leem gibis: absorvem a manchete, e olhe lá.  

Aliás, se submetidos ao teste das palavras (fala uma palavra, diga o que lhe vem à cabeça) o resultado geral seria o mesmo, na alegria e na tristeza, na chuva ou no sol. 

Palavra– Militares. 

Resposta – Mal-estar  

Palavra– mercado 

Resposta – Desconforto; 

Prossegue o texto: 

Argumento fatalista 1 – “Economistas falam em ‘matemágica fiscal’, ‘gosto amargo’ e ‘baixa sensibilidade’ do governo em revisão das contas públicas” 

Argumento fatalista 2 – A revisão bimestral do orçamento para 2024 apresentada ontem pelo governo surpreendeu negativamente economistas e deve pressionar os ativos domésticos no início da próxima semana.  

Fim do primeiro ato, detalhando o rabo e os chifres do diabo: 

“Houve avanços na estimação de algumas receitas e certas despesas e o cumprimento da meta de resultado primário deste ano ainda está “ao alcance da mão”.

Mas… 

“mas o governo perdeu a oportunidade de realizar um bloqueio maior de despesas que tornasse a projeção de gastos mais crível, o que deixou uma impressão de piora entre analistas e deve exigir um bloqueio mais forte no último relatório do ano, previsto para 22 de novembro.

Fim do primeiro ato. 

Segundo ato – Andante 

A sinfonia prossegue apresentando, agora em segundo plano, pontos positivos do pacote (fale baixo que alguém pode ouvir). 

Ruim ma non troppo –  vai exigir um bloqueio mais forte no último relatório, apenas isso. Como são analistas estáticos, que vivem intensamente o hoje, mas apanham para entender as consequências de hoje sobre amanhã, admitem que o PIB virá melhor mas não ousam projeções sobre os efeitos do PIB mas sobre as receitas. Afinal, já fizeram suas previsões e não será um PIB qualquer que irá atrapalhá-lo. Quando for divulgado o PIB maior, todos corrigirão suas estimativas ao mesmo tempo, e o erro será diluído. 

Se deixo o ajuste maior para o fim, significa que o ajuste menor agora terá um efeito maior sobre o PIB. Logo o ajuste no fim será menor. Mas significaria complicar a mensagem a ser passada ao jornalismo-sela – o que se deixa cavalgar. 

Minueto ou Scherzo 

Aí resolve botar um pouco de números para a discussão ficar menos vaga e o minueto permitir mais pessoas entrarem na dança. E descobre-se que todo o escarcéu (o desconforto) foi provocado porque o contingenciamento fiscal para 2024 foi afrouxado para R$ 1,7 bilhão, contra uma expectativa de US$ 5 a US$ 10 bilhões do mercado. 

Como o mercado ficou frustrado, para melhorar seu ânimo o Copom aumentou a Selic em 0,25 ponto a Selic. Esse 0,25 ponto representa um aumento de R$ 9,5 bilhões na dívida pública. Mas o aumento vai para o bolso da Faria Lima, aumentando a dívida pública mas reduzindo o desconforto 

Ou seja, para punir um afrouxamento de R$ 1,7 bilhão nos gatos públicos, aumenta-se a dívida pública em R$ 9,5 bilhões. Por enquanto, se não vierem mais aumentos. 

É o chamado princípio de Sísifo – o gigante condenado eternamente a empurrar uma pedra em uma montanha para a pedra cair e ele iniciar novamente seu trabalho.  

Aí, esse país de patos ouve a trombeta de Josué: se a relação dívida/PIB aumentou, tem que aumentar os juros. 

Depois de desenhar o Brasil liquidado, a reportagem coloca alguns contrapontos otimistas, para evitar que ocorra um suicídio coletivo de leitores: 

Daí o grande pensadora Andrea Damico, CEO da Buydebrazil, sentencia: “Tem alguns pontos mais construtivos, mas, no geral, liquidamente, a surpresa foi um pouco pior”. De véspera de fim de mundo chegou-se a um quadro em que os pontos negativos foram apenas um pouco pior do que os otimistas, 

Contenção orçamentária – A contenção orçamentária total (bloqueio e contingenciamento) caiu de R$ 15 bilhões anunciados em julho para R$ 13,3 bilhões agora.  O fiscal aumentou as contas em U$ 1,7 bilhão. 0,25% de aumento da Selic pressionou a dívida em US$ 9,5 bilhão. 

No entanto, com a sensibilidade de um general israelense, a economista Debora Nogueira, da Tenax Capital, mostra as virtudes do bombardeio para contar a guerra: “Reverter o contingenciamento em um momento em que as despesas ainda não estão devidamente ajustadas e a economia se mostra forte, enquanto o ciclo de ajuste de juros está apenas começando, revela uma baixa sensibilidade do planejador diante de uma economia desequilibrada. O fiscal continua expansionista, enquanto a política monetária tenta contrair”. 
Itali França, do Santander, explicando que, apesar de todas as 7 pragas do Egito da Faria Lima, o tal do mundo não vai se acabar: 

“No geral, foi uma surpresa negativa no resultado [do relatório bimestral de setembro]. Embora ainda vejamos uma chance considerável de atingir a meta neste ano, temos mais despesas não sujeitas ao limite de gastos, menor espaço para surpresas negativas e dependência de receitas extraordinárias”. 

Ou seja, vê uma chance considerável de atingir a meta este ano. Entenderam alguma coisa? Nem os jornalistas-papagaios. O que vale é o tom de fim de mundo. 

Finale

Aí a Damico, depois de prever o fim do mundo, colocou uma “pequena” ressalva salvadora:  

“A receita, de fato, tem um crescimento endógeno, justificado pela atividade econômica mais resiliente. A projeção de PIB para 2024 chegou a ser de 2% e já está em 3% em pouquíssimo tempo. A arrecadação precisa refletir isso, isso é uma melhora genuína”. 

O PIB maior amortece a queda de R$ 26 bilhões nas receitas administradas esperadas, nota Leal de Barros, da ARX. “O imposto inflacionário também ajuda a amortecer o recuo, via maior IPCA”, diz, em referência à projeção de inflação do governo, que foi de 3,9% para 4,25%.  

A estimativa de arrecadação com o Carf, por sua vez, foi cortada de R$ 37 bilhões para apenas R$ 800 milhões, o que economistas consideraram que é uma projeção bem mais realista.  

Chicoli, da Citrino, reconhece uma melhora na composição dos números. “Na parte de receita, praticamente zeraram o Carf, mas a parte de concessões ainda me parece alta, apesar de terem reduzido também”, afirma. “Entraram algumas receitas da compensação da folha, que tenho dúvida do potencial arrecadatório, mas que, de qualquer forma, são mais factíveis do que o Carf.” 

Do outro lado, a despesa total aumentou em R$ 11,8 bilhões, com os gastos previdenciários subindo em R$ 8,3 bilhões. “Ainda me parece insuficiente, mas houve uma melhora nessa conta”, diz Chicoli.  

“Ao final, me parece que ainda temos receitas superestimadas, mas houve uma melhora na composição, e as despesas obrigatórias também continuam subestimadas, mas também houve um avanço”, conclui Chicoli.  

Conclusão 

O título é a parte mais importante da matéria, mostra a grande conclusão, o que receberá maior leitura e ajudará a formar a opinião dos gados de jornais– que existem e são muitos. 

A Sinfonia no 5 de Beethoven é considerada apenas pelo 1o Movimento. 

Suponha que o Valor se baseasse na última parte para manchetar:  

“Mercado elogia a melhora na composição das despesas obrigatórias”. 

“Mercado estima que previsão de contas públicas melhoraram”. 

“O crescimento do PIB trará uma melhora genuina na arrecadação, estima mercado”. 

Grande encerramento 

Ilustração: Toulouse-Lautrec

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-favor-de-quem.html