17 setembro 2024

Brasil + China

Brasil e China: Inovação e Sustentabilidade na Era da Fratura Hegemônica
O assessor especial do MCTI, Euzébio Jorge, trata da parceria estratégica entre Brasil e China.
Euzébio Jorge Silveira de Sousa/Fundação Maurício Grabois  

A Fundação Maurício Grabois (FMG) recentemente organizou um evento de grande relevância estratégica, que contou com a presença de uma delegação do Centro de Cooperação Econômica da China. O principal objetivo do encontro foi promover a troca de experiências entre Brasil e China, abordando temas cruciais para ambos os países, como a situação econômica atual da China, as resoluções da última sessão plenária do Partido Comunista da China (PCCh), a estratégia de abertura econômica da China e as possíveis áreas de cooperação econômica entre as duas nações.

A participação de representantes importantes, como Ke Zhizhong, presidente do Centro de Cooperação Econômica da China, e Jia Chen, Ministro Conselheiro da Embaixada da China no Brasil, evidencia a relevância do evento organizado pela Fundação Maurício Grabois. Este encontro não apenas fortalece os laços diplomáticos, mas também evidencia a posição estratégica da China no comércio internacional e sua relação com o Brasil. Como maior exportador mundial e segundo maior importador, a China desempenha um papel central no comércio global. Em 2022, o comércio exterior representou 37% do PIB chinês, consolidando o país como o maior comerciante de bens pelo sexto ano consecutivo. As exportações chinesas incluem produtos de alta tecnologia, como telefones (7,7% das exportações), máquinas automá ticas de processamento de dados (5,2%) e circuitos integrados eletrônicos (4,3%), enquanto suas principais importações incluem circuitos integrados eletrônicos (15,3%), óleos de petróleo (13,5%) e minérios de ferro (4,7%).

A importância da China como parceiro comercial é especialmente relevante para o Brasil. Em 2023, o comércio entre Brasil e China atingiu um patamar histórico de US$ 157,5 bilhões, refletindo a intensidade e a expansão das relações comerciais entre os dois países. De acordo com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), há um potencial significativo para o crescimento dessas relações, com um estudo identificando 400 oportunidades comerciais que poderiam somar mais de US$ 800 bilhões em exportações brasileiras para a China, inclusive em setores de maior valor agregado. Esses números mostram o potencial de crescimento da parceria econômica entre Brasil e China, destacando a importância de fortalecer os laços comerciais e explorar novas oportunidades em setores estratégicos para amb os os países. Essa cooperação pode não apenas impulsionar o desenvolvimento econômico, mas também promover a inovação tecnológica e o combate a problemas sociais, fomentando um desenvolvimento mais sustentável e inclusivo.

Para o Brasil, que enfrenta desafios significativos para superar o subdesenvolvimento e promover um crescimento econômico mais equitativo e sustentável, uma parceria qualificada com a China pode oferecer inúmeros benefícios. A China, com sua vasta experiência em desenvolvimento tecnológico e industrial, pode contribuir substancialmente para o avanço do Brasil nesses setores. A colaboração entre os dois países poderia incluir a transferência de tecnologia, especialmente em áreas de alta inovação, como energias renováveis, inteligência artificial e manufatura avançada. Isso não apenas fortaleceria a base industrial do Brasil, mas também aumentaria sua capacidade de competir em mercados globais de alta tecnologia.

Além disso, a parceria estratégica entre Brasil e China poderia focar em uma transição econômica para uma economia de baixo carbono. A China tem se destacado como líder global na produção de tecnologias verdes, como veículos elétricos e energia solar, e sua experiência pode ser valiosa para o Brasil na promoção do desenvolvimento econômico sustentável. Essa cooperação pode incluir projetos conjuntos em infraestrutura verde, pesquisa e desenvolvimento de energias renováveis, e políticas públicas voltadas para a sustentabilidade. Ao abordar problemas sociais persistentes, como a desigualdade e a pobreza, por meio de uma estratégia de desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável, o Brasil pode aproveitar a parceria com a China para não apenas melhorar sua posição econômica, mas também avan&c cedil;ar em direção a um futuro mais sustentável e justo para todos os seus cidadãos.

Nos últimos 40 anos, após as reformas e abertura econômica, a China experimentou um crescimento econômico acelerado e uma transformação social significativa. Essas mudanças foram acompanhadas por avanços notáveis na redução da pobreza. Em 25 de fevereiro de 2021, o presidente Xi Jinping anunciou que a China havia eliminado a pobreza absoluta no meio rural. Utilizando um padrão de medição mais rigoroso que o do Banco Mundial, a China reduziu drasticamente o número de pobres de 878 milhões em 1981 para 9,7 milhões em 2015.

A China está se posicionando como um polo emergente e influente na geopolítica global, desafiando a hegemonia tradicional do dólar e promovendo uma nova ordem econômica global mais equilibrada. Essa ascensão se deve, em grande parte, à sua estratégia de expansão econômica e comercial, que inclui a Iniciativa do Cinturão e Rota e o desenvolvimento de acordos de comércio regionais, como a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP). A crescente influência da China no comércio global e sua capacidade de moldar mercados e cadeias de valor a partir de suas próprias práticas econômicas indicam um movimento significativo em direção a uma multipolaridade econômica, onde o poder não é centralizado em uma única moeda ou país.

Nesse contexto, uma parceria estratégica entre Brasil e China, especialmente através de colaborações entre centros de estudos e universidades, pode gerar resultados substanciais no desenvolvimento de uma compreensão do capitalismo a partir da perspectiva do Sul Global. Tais parcerias acadêmicas e de pesquisa têm o potencial de oferecer novas interpretações sobre o funcionamento das economias em desenvolvimento e de propor estratégias inovadoras para enfrentar desafios econômicos e sociais, como desigualdade, pobreza e desenvolvimento sustentável. Essa colaboração também pode fortalecer a capacidade dos países do Sul Global de influenciar a dinâmica da economia mundial, redefinindo as relações de poder e desafiando o grande capital rentista.

O Brasil tem uma oportunidade única para se reposicionar no cenário global, aproveitando a fratura na hegemonia global para avançar em direção a um modelo de desenvolvimento que não apenas promove uma economia dinâmica e de baixo carbono, mas também enfrenta as questões profundas de desigualdade econômica e social que caracterizam seu subdesenvolvimento. Parcerias estratégicas com a China, como as fomentadas pela FMG, são passos essenciais nesse caminho de transformação e redefinição da inserção do Brasil no comércio internacional, rompendo com sua suposta vocação na exportação de bens de baixo conteúdo tecnológico.

Concluindo, eventos como o organizado pela FMG são cruciais para fortalecer as relações bilaterais entre Brasil e China e explorar novas oportunidades de cooperação econômica, tecnológica e acadêmica. Essas iniciativas não só promovem um melhor entendimento entre os dois países, mas também pavimentam o caminho para um desenvolvimento mais inclusivo e sustentável, capaz de superar os desafios contemporâneos e abrir novos caminhos para o desenvolvimento não só do Brasil, mas também de outros países da América Latina.

Euzébio Jorge é assessor especial do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), autor do livro “Juventude, Trabalho e o Subdesenvolvimento” e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp. Atualmente, atua como professor de Economia na FESPSP e na Strong Business School, e é membro da Cátedra Celso Furtado. Ele também possui pós-doutorado em Economia Criativa e da Cultura pela UFRGS.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/08/evolucao-das-relacoes-brasil-china.html 

Fotografia: a arte de Diego Pozzo

 

Diego Pozzo

Postei no Threads

Candidatos da direita à Prefeitura do Recife prometem soluções fáceis e rápidas para problemas complexos. Na TV, tudo é "possível"... Ainda bem que não reúnem condições suficientes para se elegerem. 

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/o-que-dizer-na-campanha-eleitoral.html 

Brasil na cena mundial

Brasil é 6ª economia que mais cresceu no mundo em 2024
BBC  

economia brasileira chegou até a metade de 2024 tendo crescido 2,5% nos 12 meses anteriores — o que coloca o país em 6º lugar entre as economias do G20 que mais cresceram neste ano.

O G20 é um grupo que reúne algumas das maiores economias do mundo.

Entre junho de 2023 e junho deste ano, o Brasil só cresceu menos do que Índia, Indonésia, China, Rússia e Estados Unidos — e igualou o índice da Turquia.

Registraram crescimento menor do que o Brasil os seguintes países: Coreia do Sul, Canadá, México, França, Itália e Reino Unido — além da zona do euro, como um todo.

África do Sul, Argentina, Austrália e Japão ainda não têm dados sobre o segundo trimestre de suas economias.

Os resultados do Brasil e de outros países confirmam uma tendência apontada para este ano por relatórios de grandes entidades — como Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — de que a economia global está se normalizando após anos de instabilidade provocada pela pandemia e por conflitos.

Eles sinalizam que o crescimento econômico está vindo de dois lugares em especial: dos Estados Unidos e dos mercados emergentes, entre eles o Brasil.

Os Estados Unidos — a maior economia do mundo — estão crescendo a um ritmo anualizado de 2,8%, segundo dados oficiais do primeiro semestre desse ano.

Esse ritmo mostra uma aceleração em relação aos últimos dois anos, quando a economia americana cresceu 1,9% (2022) e 2,5% (2023).

A expectativa de muitos economistas é de que a economia americana possa vir a se acelerar ainda mais, depois que, no mês passado, o Federal Reserve, o Banco Central do país, sinalizou que está preparado para começar a cortar os juros, o que tem o potencial de aquecer a economia.

Já o Brasil registrou no primeiro semestre de 2024 um ritmo maior de crescimento do que o FMI prevê para o país neste ano, de 2,1%, acima dos 2,5% registrados oficialmente.

O resultado do segundo trimestre — um crescimento de 1,4% em relação aos primeiros três meses do ano — ficou meio ponto percentual acima da expectativa dos economistas de mercado, que esperavam uma alta de 0,9%.

Mas tanto o ritmo atual quanto a previsão do FMI para o Brasil ainda são inferiores ao crescimento registrado pelo Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos dois anos, de 3% (em 2022) e 2,9% (em 2023).

Emergentes e EUA crescendo mais

A economia mundial está se estabilizando, após quatro anos de altos e baixos intensos, provocados pela pandemia de covid-19.

A conclusão está em relatórios recentes de entidades como FMI, Banco Mundial e OCDE.

Em 2020, quando o novo vírus se espalhou globalmente, a economia global sofreu com fechamentos de empresas, quarentenas, lockdowns, paralisação de atividades e demissões em massa.

No ano seguinte, com a chegada de vacinas nos mercados, a pandemia começou a ser vencida e muitas restrições foram levantadas.

Nesses anos, as economias globais passaram por uma espécie de "montanha russa".

Alguns países sofreram com novas ondas de covid-19. Outros tiveram momentos de acelerada recuperação econômica, seguido de momentos de estagnação ou queda.

A maioria dos países sofreu com um problema comum: o aumento dramático de gastos e endividamento públicos, depois que governos anunciaram medidas de estímulo para a economia durante a pandemia.

Isso — além da desorganização das cadeias globais de produção por causa da pandemia — contribuiu para o aumento da inflação na maioria dos países.

O que se seguiu foi um período de aumento das taxas de juros — atingindo patamares recordes em quatro décadas nos países industrializados.

O Brasil também teve inflação e juros altos ao longo dos últimos anos.

Mas, em 2024, economistas e grandes instituições financeiras indicam que esse ciclo está chegando ao final.

"Quatro anos após os tumultos causados pela pandemia, conflitos, inflação e aperto monetário, parece que o crescimento econômico global está se estabilizando", disse Indermit Gill, economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial.

Segundo o relatório mais recente da OCDE sobre a economia global, "há sinais de que a perspectiva global começou a melhorar, embora o crescimento permaneça modesto".

"A atividade global está se mostrando relativamente resiliente, a inflação está caindo mais rápido do que o inicialmente projetado e a confiança do setor privado está melhorando."

A OCDE também apontou que os desequilíbrios de oferta e demanda nos mercados de trabalho estão diminuindo, com o desemprego permanecendo em ou perto de baixas recordes.

"As rendas reais começaram a melhorar à medida que a inflação modera e o crescimento do comércio se torna positivo."

Mas é apontado um problema para a economia global em 2024: a recuperação e estabilidade é desigual. E o legado dos últimos quatro anos pode ser um aumento da pobreza em vários países.

Mas, segundo a OCDE, a estabilidade do crescimento econômico é desigual no mundo, "com resultados mais suaves em muitas economias avançadas, especialmente na Europa", mas forte crescimento nos Estados Unidos e em muitos emergentes.

"O crescimento está em níveis mais baixos do que antes de 2020. As perspectivas para as economias mais pobres do mundo são ainda mais preocupantes. Elas enfrentam níveis grandes de dívida, possibilidades comerciais restritivas e eventos climáticos custosos", disse Indermit Gill, do Banco Mundial.

"As economias em desenvolvimento terão que encontrar maneiras de encorajar o investimento privado, reduzir a dívida pública e melhorar a educação, a saúde e a infraestrutura básica. Os mais pobres entre eles — especialmente os 75 países elegíveis para receber assistência da Associação Internacional de Desenvolvimento — não serão capazes de fazer isso sem apoio internacional."

Em seu último relatório, o Banco Mundial alertou que o crescimento econômico na América Latina, a exemplo do que acontece no mundo, também tem sido desigual na região.

"O Brasil e o México têm mantido confiança empresarial positiva, com alguns países como a Colômbia mostrando melhora, enquanto a Argentina tem visto uma forte contração econômica", disse a instituição.

Apesar de sinais de que a economia global está crescendo, os relatórios apontam que ainda há riscos — sobretudo em um momento em que os países começam a reduzir suas taxas de juros.

No mês passado, por exemplo, houve um temor temporário nos mercados que a economia americana poderia entrar em recessão, depois que dados ruins de desemprego foram divulgados.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/06/economia-novos-conceitos.html 

Minha opinião: combatividade e leveza

LULA, CIDA PEDROSA E JOÃO CAMPOS

Luciano Siqueira    

Tenho isso comigo, que me lembre desde a adolescência: gosto muito de gente combativa, que vai à luta em qualquer circunstância sem medir dificuldades. Desafia obstáculos. Encontra os melhores caminhos e vence.

Na luta coletiva isto significa capacidade de juntar, unir e mobilizar pessoas em função do objetivo comum.

Como dizia Guevara, com determinação, mas sem perder a ternura jamais.

O presidente Lula é assim. 

Jamais tive com ele uma convivência continuada ao longo do tempo. Mas compartilhamos situações marcantes, desde a sua primeira campanha para a presidência da República, em 1989, quando viajamos juntos pelo Nordeste em pequena comitiva na qual eu representava o PCdoB.

Em várias outras oportunidades, algumas em situações adversas, também estivemos juntos e dele sempre recolhi disposição de luta, entusiasmo e bom humor. 

Esse também é o jeito próprio de Cida Pedrosa — militante lúcida, aguerrida e poeticamente sensível e generosa, gestora pública e parlamentar competente em tudo que faz.

Cida já passou por muitas situações difíceis na vida. Certa vez, quando minha assessora na Prefeitura do Recife, em instante de muita dor, disse-me emocionada: "Decidi que não vou passar o resto da minha vida enxugando lágrimas. Quero viver!"

E assim tem sido. Sempre. 

Conheço pouco João Campos, que vi criancinha desde quando convivi intensamente e por largo período com o seu bisavô Miguel Arraes e o seu pai Eduardo Campos.

Mas tenho a certeza de que o jovem líder não teria alcançado tanto êxito na gestão pública e a aprovação quase unânime da população do Recife, de todas as idades, se não fosse capaz de imprimir combatividade e leveza na relação com o povo. 

Lula, Cida e João Campos estão juntos na luta. 

Como a própria Cida tem dito, "nunca houve uma eleição municipal tão nacional", pois precisamos vencer e acumular forças agora para evitar que daqui a dois anos a extrema direita volte ao governo da nação.

Na Câmara Municipal, Cida tem sido uma voz firme e hábil na defesa das proposições mais justas do prefeito, sem entretanto borrar o traço de independência política que traz na consciência e no gesto como integrante do nosso Partido.

Militante há mais de 50 anos, trago no corpo as marcas do tempo, mas — como costumo dizer — recuso-me a envelhecer politicamente. 

E me sinto rejuvenescido ao guardar íntima sintonia com a trajetória atual de Cida Pedrosa, João Campos e Lula.

No Recife, pois, meu voto é em favor do povo e da nação: prefeito João Campos 40; vereadora Cida Pedrosa 65113.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-quem-e-quem.html

Uma crônica de Carlos Heitor Cony

Pranto para o homem que não sabia chorar
Carlos Heitor Cony   

Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes, ovos, algumas chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram poucas, pois todas as casas tinham quintal e todos os quintais tinham galinhas. Ia esquecendo: as quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos passantes, um feixe de varas de marmelo.

Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: “Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida”. A frase não é bem essa, mas o sentido é esse.

Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.

Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com umas tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que era solto à noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as galinhas -repito, todas as casas tinham galinhas.

E “amigos do alheio” era uma expressão, uma metáfora civilizada que os jornais usavam para se referirem aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.

Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:
Homem não chora!

Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o direito de gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca, mas não de chorar.

Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma tira de borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara de marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava lanhos nas pernas do filho -que mais tarde chegaria a ser capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem em mar, mas por tempo de serviço.

Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais choraria. O irmão, sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem precisava de vara de marmelo. Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado -um amigo do alheio, antes de pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com arsênico.

Chorou mais tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem não chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de não serem homens.

Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém. Não chorou nem mesmo quando, naquela primeira noite após a morte de sua mãe, ele se sentiu sozinho na vida e perdido no mundo.

Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou de que os outros chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Phd na matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de quebrações de cara e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando lágrima, soluço puxando soluço.

Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que, passados 40 e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.

Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de “dom das lágrimas”! José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar. Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.

Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.

[Ilustração: Malte Sonnenfield]

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-inteligencia-equina.html 

Minha opinião: dilema

Direita taticamente confusa em São Paulo 

Luciano Siqueira 

É indisfarçável a torcida do complexo midiático dominante em favor da reeleição do prefeito Ricardo Nunes, na capital paulista. 

E assim dilemas táticos ora enfrentados na campanha do direitista vêm à tona pela pena de colunistas supostamente interessados em medir que influência podem ter o governador Tarcísio de Freitas e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Tudo em função da correlação de forças 2026. 

A torcida para que o governador possa se fortalecer no pleito atual tem a ver com a hipótese de vir a substituir o inelegível. 

Da mesma forma, oscilam entre levantar a bola ou combater o outsider neofascista Pablo Marçal. 

Para tais articulistas, em última análise ventríloquos do capital financeiro e do agronegócio exportador, importa sobretudo que Guilherme Boulos não vença, e assim não constitua na cidade de São Paulo um fortim das forças populares e democráticas. 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-tatica-do-odio.html

Socialismo atual

14º Fórum Mundial do Socialismo: “a teoria precisa se adaptar”, diz Sorrentino
Fundação Mauricio Grabois   

No dia 10 de setembro em Beijing, a Acadêmia Chinesa de Ciências Sociais (CASS) sediou o segundo dia do Fórum Mundial do Socialismo na Academia Chinesa de História. O evento contou com uma série de painéis focados em analisar os desafios impostos pelas novas dinâmicas globais.

Leia mais: FMG participa do 14º Fórum Mundial do Socialismo na China

Durante um dos painéis, o Vice-Presidente do PCdoB e Presidente da Fundação Maurício Grabois, Walter Sorrentino, destacou a importância do Marxismo como forma válida para o entendimento da realidade concreta e que a teoria precisa se adaptar as mudanças atuais. Sorrentino enfatizou que não devemos ter medo da palavra crise, pois mesmo que tenhamos um descompasso entre a realidade dinâmica e a teoria, a própria teoria se fortalece com a prática, como está acontecendo na China. Por isso, para Sorrentino, é preciso que as forças de esquerda formem uma pauta comum para o enfretantamento dos desafios.

O painel também contou com a participação de Vladimir Milton Pomar, Assessor de Formação Sindical, Sindicalização e Campanhas Eleitorais no PT, que chamou a atenção para a falha da propaganda do socialismo. Para Pomar, mesmo que o Socialismo Chinês tenha alcançado grandes feitos, não consegue informar com eficiência nem mesmo as forças de esquerda em outras partes do mundo, que incluso fazem discursos anti-China baseados em uma visão distorcida da realidade. Pomar reforça que a propaganda é mais do que informar, trata-se também de politizar as notícias.

Outro painel teve a presença de José Reinaldo, Presidente do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz). Reinaldo ressaltou a importância do multilateralismo como um pilar essencial para garantir independência, autonomia e paz global. Ele destacou que a iniciativa chinesa para o desenvolvimento global é mais inclusiva e contribui para o desenvolvimento dos países do Sul Global e para um ambiente mundial harmônico.

No mesmo painel, Rodrigo Moura, diretor executivo do Centro Latinoamericano da Zhejiang University Business School, defendeu a decisão do III Pleno do XX Comitê Central do Partido Comunista da China. Moura afirmou que a decisão reflete uma visão inovadora, coordenada e ambientalmente responsável, que se alinha às necessidades globais atuais. Ele também ressaltou que a Nova Rota da Seda, apesar de ser uma plataforma chinesa, favorece a integração regional na América Latina.

As discussões do dia abordaram os temas cruciais das profundas mudanças que caracterizam uma nova época que se abre na história, com o declínio do ocidente e êxitos do socialismo com peculiaridades chinesas, as mudanças na correlação de forças no mundo, seus perigos e oportunidades, a reação agressiva do imperialismo contra a China e os povos e os temas da era digital sobre o capitalismo e o socialismo. 

O encerramento do dia foi marcado pela apresentação de um relatório pelos líderes, que ressaltou a importância da colaboração internacional e a necessidade de adaptação às novas realidades globais para promover um socialismo sustentável e inovador e assim contrapor os desafios que se apresentem.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/08/mundo-em-transicao.html 

Fotografia: a arte de Cédric Brion

 

Cédric Brion

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/08/uma-cronica-de-urariano-mota_23.html

Cartão MEI

Governo lança o Cartão MEI em apoio aos microempreendedores individuais
Parceria do Banco do Brasil com o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Memp) oferece cartão de débito e crédito com anuidade zero
Murilo da Silva/Vermelho  

Dados indicam que existem no Brasil 15,7 milhões de microempreendedores individuais (MEIs) ativos. Para incentivar este grande contingente de brasileiros e brasileiras, uma parceria entre o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Memp) e o Banco do Brasil (BB) passa a oferecer o Cartão MEI.

Lançado na segunda-feira (16) durante o MPE Week, evento do BB em apoio aos micro e pequeno empreendedores, o Cartão MEI funciona nas modalidades de débito e crédito e tem anuidade zero. Além de permitir o parcelamento de compras, o cartão traz QR Code com acesso aos dados e serviços no Portal do Empreendedor.

De acordo com o governo, o objetivo com o cartão é trazer formalização, simplificação e contribuir com a organização financeira dos MEIs. A iniciativa ainda oferece, pelo cartão, acesso à capacitação empreendedora pela Liga PJ.

Dessa maneira, o cartão representa não só um incentivo, mas também demarca a posição do cidadão enquanto empreendedor.

No lançamento, o ministro do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, Márcio França, destacou que 70% dos empregos gerados no ano passado e neste ano são oriundos dos MEIs.

Para ele, o cartão indica também o reconhecimento desses negócios fundamentais para o crescimento e desenvolvimento do país: “O cartão é mais um passo importante para que as pessoas se sintam atendidas e respeitadas. Olha, você é uma pessoa reconhecida pelo Governo, você hoje é um empreendedor e a gente quer te prestigiar, e você, a partir disso, está também estimulando que as pessoas façam mais negócios”, disse.

Inicialmente estava marcada a presença do presidente Lula para a cerimônia. No entanto, por conta da situação das queimadas no país, ele esteve reunido com ministros para deliberar medidas de enfrentamento aos incêndios e às adversidades causadas pelas mudanças climáticas.

*Com informações BB e Agência Brasil

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/territorios-da-disputa-eleitoral.html

Palavra de poeta: Cida Pedrosa

caminho 
Cida Pedrosa 


tua mão reencontrou 

o caminho 

fez festa quando 

achou meus cabelos 


tua língua reencontrou 

o caminho 

fez lágrimas quando 

selou segredos


Tua alma reencontrou 

o caminho 

foi fogo e felicidade 

ao avistar a minha


[Ilustração: Drégely Lászlo]

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/12/a-poetica-libertaria-de-cida-pedrosa.html

16 setembro 2024

Intolerância religiosa

Grupos religiosos 'gastam bilhões para combater a educação sobre igualdade de gênero'
Relatório revela como cristãos, escolas católicas e islâmicos dos EUA lutam contra a educação sexual, LGBTQ+ e direitos iguais
The Guardian 


Grupos religiosos extremistas e partidos políticos estão atacando escolas ao redor do mundo como parte de um ataque coordenado e bem financiado à igualdade de gênero, de acordo com um novo relatório.

Organizações conservadoras bem conhecidas pretendem restringir o acesso das meninas à educação, mudar o que está no currículo e influenciar as leis e políticas educacionais, de acordo com Whose Hands on our Education , um relatório do grupo de reflexão sobre assuntos globais ODI. 

As táticas incluem remover a educação sexual das escolas, proibir meninas de aprender, reforçar estereótipos patriarcais de gênero nos livros didáticos e rejeitar linguagem inclusiva de gênero nas escolas.

Ayesha Khan, pesquisadora sênior do ODI e uma das autoras do relatório, disse: “A educação é um facilitador essencial para a igualdade de gênero e tem o poder de moldar vidas.

“Esta pesquisa mostra como um pequeno grupo de organizações antidireitos, políticos e grupos militantes altamente financiados pretendem interromper as oportunidades transformadoras que a educação oferece”, disse ela.

Essas organizações receberam bilhões de libras em financiamento para avançar sua agenda, de acordo com evidências no relatório. Pelo menos US$ 3,7 bilhões (£ 2,8 bilhões) foram canalizados para organizações anti-igualdade de gênero globalmente entre 2013 e 2017.

Na África, mais de US$ 54 milhões foram gastos por grupos cristãos sediados nos EUA entre 2007 e 2020 para fazer campanha contra os direitos LGBTQ+ e a educação sexual.

O financiamento, de fontes que incluem oligarcas e partidos políticos russos, levou à criação de novas organizações e encorajou as existentes a fazerem campanha contra a educação sexual e os direitos LGBTQ+, concluiu o relatório.

Por exemplo, doadores da Grã-Bretanha, EUA, Alemanha e Itália gastaram mais de US$ 5 milhões de 2016 a 2020 em projetos administrados por ou beneficiando organizações religiosas ganenses cujos líderes fizeram campanha contra os direitos LGBTQ+.

O financiamento islâmico em todo o mundo muçulmano é difícil de rastrear, disse o relatório, mas o Paquistão recebeu bilhões em empréstimos sauditas e ajuda direta, juntamente com financiamento privado de estados do Golfo, para promover o wahabismo, um movimento fundamentalista e puritano dentro do islamismo sunita. Uma estimativa colocou o financiamento estatal saudita para isso em US$ 75 bilhões de 1979 a 2003. Os livros didáticos no país retratam as mulheres como guardiãs das tradições, cultura e moralidade, e a educação sexual continua sendo um tabu. 

Como o projeto religioso da Arábia Saudita transformou a Indonésia

Esforços organizados também bloquearam iniciativas de educação sexual na África do Sul, Brasil e Filipinas , removendo material sobre homossexualidade e substituindo-o por conteúdo que promove a abstinência sexual e os “valores familiares tradicionais”.

No Chile, escolas católicas têm usado material educacional que retrata os homens como chefes de família, com mensagens sobre a importância das esposas serem submissas, bem como estereótipos de homens como sendo mais inteligentes e capazes que as mulheres.

O relatório também descreveu o poder político direto em países ao redor do mundo que permite as políticas mais regressivas, como a exclusão de meninas de todo o ensino, exceto o fundamental, pelo governo do Talibã no Afeganistão.

“Estamos lidando com um movimento global antidireitos e ressurgimento de normas patriarcais”, disse Khan. “Precisamos entender como o setor educacional é um local de contestações realmente severas.”

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/resistencia-finlandesa.html 

Humor de resistência: Aroeira

 

Aroeira

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/editorial-do-vermelho.html

Postei no Threads

Biologicamente, talvez; mas politicamente eu me recuso a envelhecer. 

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-voto-consciente.html 

Minha opinião: predomínio conservador

Disputa em águas turvas 
Luciano Siqueira  

Embora a eleição da nova mesa diretora da Câmara dos Deputados deva acontecer apenas no início do ano que vem, a disputa se acirra agora. 

Uma dupla disputa: a do atual presidente, deputado Arthur Lira (PP-AL), que tudo faz para não perder o controle de sua própria sucessão, temendo um ostracismo posterior que pode lhe custar muitas perdas; e a dos pretendentes à presidência, todos perfilados entre os 350 parlamentares de centro, centro-direita e extrema direita que conformam a larga a maioria conservadora. 

Nesse buruçu, tudo se ouve e se lê — menos qualquer alusão a compromissos com a democracia e com os destinos do país. 

O controle do mecanismo das emendas parlamentares, estimadas em R$ 30 bilhões, é o pomo da discórdia e da disputa. 

Certamente esta é uma das páginas mais deploráveis da Câmara e, por extensão, incluindo o Senado, do parlamento brasileiro.

Provavelmente não será fácil alterar esse perfil nas eleições de 2026, mas vale lutar para tanto, inclusive nas atuais eleições municipais, que permitirão um certo acúmulo de forças nesse intuito.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/minha-opiniao-debates-na-tv_29.html 

Fotografia: a arte de Elliott Erwitt

 

 Elliott Erwitt

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/11/trabalho-infantil-digital.html 

Política de segurança

Eleição municipal pode contribuir para uma nova visão de segurança pública
Processo de escolha de novos prefeitos e vereadores é oportunidade para mudar a concepção atual de segurança pública, ditada pela direita, e ampliar a participação dos municípios
Priscila Lobregatte/Vermelho  

Problema que afeta milhões de brasileiros há anos, a violência é um dos temas que sempre surgem no período eleitoral. Mas, em geral, o debate é contaminado pela visão autoritária e punitivista da direita, que tem sido hegemônica no Brasil e que ganhou novo impulso com a ascensão do bolsonarismo. 

Nesse cenário, o pleito deste ano pode ser um ponto de virada para iniciar uma nova fase no debate sobre a segurança pública que leve em conta os direitos humanos e os problemas sociais, bem como a maior participação dos municípios.

Mesmo que, de acordo com a legislação vigente, a responsabilidade da segurança pública esteja direcionada aos estados e em parte à União, os municípios podem cumprir papel fundamental, principalmente na chave da prevenção, contribuindo para forjar essa nova visão.

“A Constituição, no seu artigo 144, trata da segurança pública, em sentido estrito, como atividade ligada à polícia. E delega aos municípios a formação de guardas para cuidarem de seus próprios públicos. Mas, a minha interpretação vai além”, diz José Carlos Pires, membro da coordenação da Associação dos Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e ex-secretário de Segurança de Jundiaí (SP) entre 2013 e 2016.

Leia a primeira parte desta reportagem: Segurança pública precisa avançar para além da repressão e do encarceramento 

Além do papel das polícias no artigo 144, argumenta Pires, “a Constituição traz a questão do direito social à segurança em seu artigo 6º, bem como estabelece o papel dos municípios e a sua capacidade de legislar, conforme o interesse local, no artigo 30. Soma-se a isso a Lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que coloca a segurança como dever e responsabilidade de todos — União, estados, Distrito Federal e municípios”. 

Ele defende a articulação desses dispositivos legais para estabelecer parâmetros de atuação dos municípios na área da segurança pública e, ao mesmo tempo, a necessidade de desenvolver políticas de âmbito social para enfrentar a violência.

“É possível trabalhar, de um lado, na prevenção, combinando a atuação das guardas municipais com a dos órgãos que têm poder de polícia administrativa como os de fiscalização do comércio, do trânsito e de vigilância sanitária. E de outro lado, é preciso implementar políticas sociais, que também funcionam de maneira preventiva, em áreas como educação, saúde, assistência social, esporte, cultura e lazer. Esse conjunto de políticas, se bem aplicado no território, contribui para o enfrentamento da violência e da criminalidade”, aponta. 

A concepção da socióloga da USP, Vanessa Orban, segue por esse mesmo caminho. “As cidades podem ser facilitadoras ou inibidoras do crime: áreas iluminadas, maior presença de um efetivo da Guarda Municipal nas ruas, uma dinâmica espacial com comércios que permitam o fluxo de pessoas e as estimulem a sair de casa e circular pelo espaço público, locais de lazer que sejam atraentes para as pessoas frequentarem até altas horas…Tudo isso se relaciona à atuação municipal que ajuda (e muito) na inibição dos crimes mais cotidianos, como assaltos e furtos de cidadãos”.

Abordagem policialesca

Principal cidade do Brasil, o que acontece em São Paulo pode influenciar outros municípios e, ainda, servir de termômetro para o que vem sendo pensado pelas forças políticas em disputa pelo país. Na capital paulista, o foco na repressão e na valorização da solução policialesca segue sendo a tônica dos candidatos alinhados à direita ou ao centro.

“Nestas eleições, observamos em São Paulo que todos os candidatos defendem o aumento do contingente da GCM (Guarda Civil Municipal). Dentre os de direita, verifica-se, ainda, a presença do ex-comandante da Rota, Ricardo Mello de Araújo (PL), na chapa do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e da policial militar Antonia de Jesus na chapa de Pablo Marçal (PRTB)”, aponta Natasha Bachini, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).

Além disso, acrescenta, “temos a reprodução do argumento e de jargões das disputas anteriores, como acontece com José Luiz Datena (PSDB), que afirma que ‘vagabundo não tem vez’, promete colocar fuzis nas mãos da GCM e defende ‘tolerância zero com usuários de drogas’. Marçal, de forma semelhante, defende uma equiparação da GCM à Polícia Militar. Por sua vez, Tabata Amaral (PSB) — que não se diz exatamente de direita — propõe gratificações para profissionais que atuem em áreas com maior índice de criminalidade, o que pode incentivar maior letalidade por parte polícia”. 

Ela salienta, contudo, que no âmbito das campanhas digitais, esse tema ganha maior espaço e gera mais engajamento nos perfis dos candidatos à vereança, especialmente aqueles oriundos das forças de segurança pública, que postulam cada vez mais espaços institucionais. “Neles, verifica-se que a estratégia bolsonarista continua a ser reproduzida em âmbito local, a partir das críticas ao uso de câmeras corporais por policiais (tema do qual os candidatos ao Executivo fogem), e de menções positivas aos treinamentos e operações policiais, especialmente envolvendo membros da Rota”. 

Conforme salienta Vanessa Orban, “para a extrema direita, a guerra é a saída para o alcance da paz. Na narrativa dela, não há como enfrentar o crime sem o confronto bélico. Então, armar a população é como preparar a todos para uma guerra de todos contra todos”. 

Ela aponta que nessa chave discursiva, “a polícia ganha uma posição heróica e a legitimidade de ser a única apta a falar sobre crime. Esse discurso tem, cada vez mais, ganhado hegemonia entre todos os grupos sociais e isso inclui a esquerda. Outras opções de combate à criminalidade estão cada vez mais deslegitimadas e consideradas infrutíferas, mesmo sem terem sido implementadas. A prevenção nem é citada, ou quando é, está associada somente às câmeras de vigilância”.

A socióloga avalia que, de maneira geral, a esquerda “se eximiu de entrar nesse debate e disputar o direito de falar e opinar sobre segurança pública ao longo de anos, o que acabou colaborando na associação entre segurança pública e polícia. E uma vez que polícia é associada à ditadura militar, logo é assunto da direita e não da esquerda”. E completa observando que, durante décadas, “essa associação foi sendo construída no imaginário da população e do eleitor sem nenhuma contraposição”, de maneira que “quem não defende a polícia nas ruas perde voto”.

Perspectiva interdisciplinar

Para mudar essa situação e viabilizar uma proposta democrática e avançada da segurança pública efetiva, Natasha, do NEV, defende ser preciso uma perspectiva interdisciplinar, baseada nos direitos humanos.

“De todos os programas de governo, o de Guilherme Boulos é o que mais traz essa dimensão e se dedica a questões como a redução da violência contra a mulher a partir da descentralização da patrulha guardiã Maria da Penha, e ao caso da ‘cracolândia’, a partir do acolhimento humanizado às pessoas em situação de rua. A respeito desse último caso, Tabata apresenta um plano semelhante e ainda traz uma proposta interessante de programa de promoção à saúde mental para os agentes da GCM, ponto de suma importância, mas ainda pouco discutido”.

Na avaliação de José Carlos Pires, que contribuiu para os debates em torno do programa de governo de Boulos, um ponto importante é garantir financiamento contínuo aos municípios. “Acho que o governo federal precisava ter uma relação mais direta com os municípios e criar mecanismos para financiar, de forma perene e sistêmica, a política de prevenção. Para isso, o município precisa participar, também de maneira perene e sistêmica, do Fundo Nacional de Segurança Pública e aplicar a política conforme diretrizes da União”.

Outro ponto que destaca é atuação da GCM junto à população. “A guarda pode fazer o patrulhamento no bairro e, no contexto do patrulhamento, estabelecer uma relação de proximidade com a comunidade, fazer a ronda escolar nas entradas e saídas das escolas naquele bairro, atuar na patrulha Maria da Penha, além de mediar conflitos. Muitas vezes, ao mediar um conflito, evita-se um desfecho pior, como um homicídio, ou como o recrutamento de um jovem para o crime organizado”.

O advogado conclui ressaltando que “quem tem capacidade e competência para fazer isso tudo são as administrações municipais, que estão perto da população local; não é o estado e, muito menos, a União”.