31 outubro 2024

Palavra de poeta: Marize Castro

CHAMO O SECRETO NOME
Marize Castro 
Chamo o secreto nome
em secreta língua
(não só a mim ele servirá)
dirão: não é poesia
(assim seja para quem o diz)
basta-me que se deixe tocar pelo sol
e depois me toque
com as mesmas vestes
o mesmo desamparo
a mesma fome


[Ilustração: Kees van Dongen]

Leia: sem anúncios seria muito melhor https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/minha-opiniao_29.html

Que propõem os bancos privados?

Bancos privados exigem demais e fazem muito pouco
Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre desenvolvimento nacional e socialismo, Diogo Santos defende que o governo Lula eleve o papel dos bancos públicos.
Portal da Fundação Maurício Grabois www.grabois.org.br

Recentemente o governo federal e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) anunciaram a criação de um grupo de trabalho (GT) no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) para elaborar propostas para reduzir o custo do crédito no país. Sem dúvidas, os gargalos do mercado de crédito e, de modo mais amplo, do financiamento da atividade econômica, é um dos obstáculos ao desenvolvimento brasileiro. Contudo, a lista de medidas propostas pela Febraban tem o conteúdo de sempre: exigir mais garantias para os bancos em troca da promessa de reduzirem os juros. O problema estrutural é outro e nele os bancos privados não querem tocar.

Como demonstrou Marx, o sistema de crédito é uma alavanca chave da acumulação de capital. Isto porque é o sistema de crédito que liberta as empresas de crescerem limitadas pelo lucro acumulado no período anterior e as permite acelerar os investimentos acompanhando o ritmo de crescimento da demanda e a necessidade de competir umas com as outras pelo controle do mercado. O que também ficou demonstrado pela experiência dos países que se industrializaram após a Inglaterra é que, quanto maior o salto produtivo e tecnológico que o país precise realizar, mais decisivo se torna o funcionamento adequado do sistema de crédito.

Ocorre que no Brasil, e não é de hoje, o crédito é escasso e caro. Entre países subdesenvolvidos comparáveis, o Brasil está entre as menores proporções da relação entre crédito para as empresas e produto interno bruto (PIB), uma forma de medir o volume das operações de crédito de um país. Segundo dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), essa relação está em torno de 50% para o Brasil nos últimos anos, acima apenas de México (22%) e África do Sul (30%), e abaixo de Índia (55%), Turquia (65%), Rússia (70%), Chile (100%) e China (160%). Quanto ao custo do crédito, entre esses mesmos países, o Brasil é de longe o que possui a maior diferença entre os juros pagos pelos bancos para captar recursos e os juros cobrados nas operações de crédito aos cl ientes, o chamado spread bancário. Dados da Fitch, agência de classificação de risco, mostram que até antes da pandemia, enquanto o spread estava entre 2% e 3% para os demais países com exceção do México (5%), no Brasil o patamar era de 7%.

Temos no país, portanto, um problema relevante para o desenvolvimento. Mas como enfrentá-lo? As propostas da Febraban são sempre na direção de que o problema não está nos bancos e sim nos clientes. Logo, a solução é aumentar o poder dos bancos em acessar os bens dos devedores, vincular os empréstimos ao desconto automático nos salários e receitas dos clientes e o Estado assumir com recursos públicos parte do risco do crédito, por meio da criação de novos fundos garantidores de crédito. Um exemplo de medida proposta é a reformulação do crédito consignado para trabalhadores da iniciativa privada para destravar o crescimento dessa modalidade. Essa medida é sintomática de outra característica disfuncional do sistema bancário no Brasil nos últimos anos: os bancos ofertam mais créditos para con sumo das famílias do que crédito para a produção e investimento das empresas.

A verdade é que os governos sempre se mostraram dispostos a atender os pleitos dos bancos privados e realizaram rodadas de mudanças institucionais para assegurar a lucratividade dos bancos ao diminuir o risco inerente ao ato de emprestar recursos. Nos primeiros governos Lula várias mudanças foram implementadas, entre elas, a mais famosa, a criação do crédito consignado. No governo Temer, entre outras medidas, um grande golpe foi dado a favor da garantia da lucratividade dos bancos privados com a extinção da vantagem competitiva que o BNDES possuía ao poder adotar uma taxa de juros, a TJLP, abaixo do mercado. Mesmo neste governo Lula, por meio da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, já foram realizadas mudanças para ampliar as garantias que os bancos possuem ao emprestar (como tomar posse de modo célere de um automóvel financiado em caso de inadimpl& ecirc;ncia). Agora, mais um conjunto de propostas da Febraban está sobre a mesa. Não há dúvidas de que o governo, mais uma vez, buscará atender aos pedidos, sobretudo diante da necessidade de manter estímulos ao crescimento econômico no curto prazo, em um ambiente em que o regime macroeconômico é hostil ao desenvolvimento e as eleições presidenciais já estão ali na esquina. Mas o governo deveria fazer mais que isso. Deveria apontar na direção das reformas que condicionem o sistema financeiro na direção de servir ao desenvolvimento do país.

Particularmente, a alta concentração da oferta de crédito em poucos bancos, a segunda maior entre os países citados anteriormente, precisa ser enfrentada, para citar apenas um grande problema. A elevada concentração concede aos bancos privados um grande poder de ditar as condições do mercado de crédito. E, ao mesmo tempo, concede a eles uma elevada margem para não contribuírem com o país nos momentos de maior necessidade. Por exemplo, no período imediatamente após a crise capitalista global de 2007/2008 os bancos privados se concentraram em preservar sua rentabilidade, deixando para os bancos públicos a tarefa de ampliar a oferta de crédito, assumindo riscos maiores. É também essa elevada concentração que coloca os governos sempre na posição de terem que negociar mais e mais reformas para reduzir risco e assegurar a rentabilidade dos bancos.

Em uma ocasião esse problema chave foi diretamente enfrentado. No primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, foi tocado no ponto nefrálgico ao orientar os bancos públicos a reduzirem as taxas de juros dos empréstimos. Além do contexto internacional, essa medida foi essencial para se verificar a redução dos spreads ocorrida naquele período. E, mais importante, foi o principal experimento de tentativa de quebrar o domínio privado sobre as condições do crédito no país, lidando assim com um tema crucial para o desenvolvimento nacional, desde o período do nacional desenvolvimentismo. Essa e outras posições do governo estiveram na raiz das motivações para o movimento que levou ao golpe de 2016. Mas é preciso frisar que aquela medida surtiu efeito e, principalmente, demonstrou que os problemas do mercado de crédito no Brasil n& atilde;o são apenas falta de garantias e risco elevado para os bancos, e, sim, uma imposição dos grandes bancos privados acostumados a moldarem o sistema financeiro do país desde a ditadura militar.

O governo Lula deve, portanto, elevar o papel dos bancos públicos em oferecer condições de crédito melhores e também acelerar o crescimento dos financiamentos do BNDES. Precisa voltar para a agenda a revisão da decisão do TCU que impede o Tesouro de capitalizar o BNDES por meio da captação de recursos com emissão de títulos de dívida. Mas também é necessário que o Conselho Monetário Nacional – formado pelo ministro da Fazenda, ministra do Planejamento e presidente do Banco Central – encare a discussão da urgente elevação da meta de inflação e da revisão do fim da TJLP. A primeira discussão para diminuir o viés anti-desenvolvimento da política monetária e a segunda para reduzir o custo do crédito para os setores estratégicos para a nova industrialização.

Diogo Santos é economista e coordenador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo

Leia também: A bomba-relógio das finanças globais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/derivativos-na-engrenagem-da-crise.html

Humor de resistência: Aroeira

 

Aroeira

Leia sobre fascisno e redes sociais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/11/fascismo-e-redes-sociais.html

Postei no Threads

"O que me interessa não é a minha personalidade, mas o que está além dela", escreveu Clarice Lispector. Muito distante das relações que hoje se estabelecem tucaatravés da comunicação instantânea e superficial via redes sociais.

Leia sobre a exploração das palataformas digitais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/poderosas-e-vulneraveis.html 

Uma crônica de Abraham B. Sicsú

Entardecer
“O livro, Saber Envelhecer. Enaltece o conhecimento e as práticas de virtudes como caminhos para a dita qualidade de vida.”
Abraham B. Sicsú/Vermelho  

Recebo bem cedo. Segunda de madrugada. Poesias, esta semana, dedicadas a um grande filósofo e poeta. O texto começa assim: “E Antonio Cícero (1945-2024), por ação deliberada, nos deixou em respeito a uma vida com qualidade”.

O que é uma vida com qualidade? Como suportar as limitações que a idade nos traz? Como as pessoas deixam de se julgar desprezadas ou rabugentas na idade avançada? Como podemos ser menos menosprezados com nossas deficiências inerentes?

Muito me faz pensar, traz velho dilema que sempre me atormentou. Vou ler um filósofo romano, Marco Túlio Cícero. Coincidência. Viveu no segundo século de nossa era. O livro, Saber Envelhecer. Enaltece o conhecimento e as práticas de virtudes como caminhos para a dita qualidade de vida.

Procura responder aos quatro aspectos que atormentam o idoso: afastamento da vida ativa; os sinais que o corpo dá ao envelhecer; a privação dos prazeres pela própria constituição física; a proximidade da morte como fantasma permanente.

Sua análise é sempre otimista, sem negar as dificuldades, procura apontar caminhos que lhe foram importantes para uma idade avançada, a arte de envelhecer com felicidade está na busca de prazeres outros com a consciência das limitações existentes, limitações que se apresentam em qualquer fase da vida, na infância, na adolescência, na vida adulta, porque não na idade avançada, evidentemente de maneira diferenciada.

Uma visão de mundo em que procura tornar natural a possível ociosidade ou sua substituição por outras formas de conviver, o declínio da memória, o viver do passado como se fosse uma época de glória, a rabugice que nos é inerente ao passar dos anos e a falta de paciência. Nisso tudo procura buscar uma velhice com sentido, com os atributos que temos, com a experiência que nos permite compreender melhor o que ocorre, ou o que poderá acontecer.

É um discurso em que se minimizam os problemas concretos. Talvez seja a época de desacelerar, de viver e compreender os detalhes, a contemplação, um mundo menos competitivo mais participativo.

Contenta-se com coisas que eu discordaria muito. Por exemplo, evitar banquetes por terem como conseqüência indigestões, ou mesmo a bebida e o reino de Baco por poderem nos levar a embriaguês. Mesmo a diminuição do desejo sexual em que vê vantagens para uma vida mais adequada às diminuições de atributos físicos que a vida traz. Essas ele não questiona, apenas as assume.

Também, aponta as dificuldades que temos no que pode nos dar maior prazer como as conversas demoradas, frente ao rareamento de amizades. Isso, algo concreto, o velho se torna um “chato”, quer prolongar as falas e explicações, num mundo em que a pressa é a característica mais objetiva da civilização ocidental desde priscas eras. Mundo ideal, construído pelo grande filósofo romano.

Não tendo uma visão em que apenas o belo se apresenta, acredito haver muitas limitações e problemas a enfrentar.

Deixar a vida ativa que tivemos não é fácil. Fundamental encontrar outras rotinas que nos façam sentir útil. Outras atividades, uma boa escrita, o cozinhar, a arte, ou mesmo um bom jogo de gamão ou dominó.

As limitações físicas são patentes. Dores que não se vão, esforços que não podemos mais realizar, memória que nos abandona. Tratar com naturalidade não é fácil.

Limitações que, se não tratadas com naturalidade, podem impedir de festejar a vida como se gosta, seja numa mesa, seja num bar, seja na cama, algo que temos que nos acostumar ou nos levam a sentir menos gente.

A morte presente não abandona. O medo, não só de deixar esta vida, mas também de ter um fim prolongado artificialmente, de desamparar pessoas queridas, o desejo de poder ter um fim digno, como Antônio Cícero optou, se for preciso. A confusão permanente em nossas cabeças.

Obstáculos que temos que enfrentar e com os quais procurar conviver. Não apenas vendo o lado positivo que o filósofo ressalta, mas, também, procurando caminhos que façam tornar mais amena essa fase, inclusive prazerosa.

Situação que precisa de convivência. Participo de um grupo de aposentados que muito me ajuda. Cada qual com seu modo de vida, com seus valores. Cada qual com seus caminhos próprios nessa fase de vida. Uma coordenação que orienta e textos para análise.

Estudamos nestes tempos algo de Vedanta. O livro “Valor dos Valores” de Swami Dayananda. Uma análise de versos da Guita.

A busca de orientações que possam nos nortear em época de vida complexa. Vinte valores que nos são apresentados. Os dois mais recentes me marcam como norte para um estilo de vida. Não Violência e Acomodação, este último, não no sentido pejorativo ou negativo, mas na busca de compreender a realidade e nela se posicionar com um mínimo de racionalidade.

Ver que as reações e as paixões são humanas em que o instintivo, sem pensar, só leva a desgaste. Fundamental entender os indivíduos e situações, mesmo aquelas que nos são muito desagradáveis e com as quais procuraremos e devemos não conviver. Seres e situações que têm suas lógicas próprias, muitas vezes diferentes das que foram a base da nossa formação. Reagir simplesmente pode levar a uma vida de eternos atritos e de conflitos internos.

Velhice saudável pode levar a afastamentos, sábio aquele que o consegue, sem entrar em constante choque, em constante luta consigo mesmo, mas, nunca deixar de manter grupos, manter maior convívio humano.

Antônio Cícero, uma lição de dignidade, Cícero Filósofo, um otimista que faz pensar.

Para descontrair, o médico-folião https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/minha-opiniao_55.html

Enio Lins opina

Ainda sobre as vozes, e os ecos das vozes, das urnas em 2024
Enio Lins    

Continuamos hoje na pauta de ontem. Pelo publicado nas tantas mídias nacionais, parece ser novidade a força eleitoral da centro-direita e da direita. Isso foi radicalmente diferente nalguma outra eleição brasileira? Nem mesmo é coisa nova o fortalecimento da extrema-direita tresloucada, pois esse é um filme B em cartaz desde 2016. Desde quando nosso país – cujas origens são solidamente escravistas, colonialistas, racistas, e tremendamente desiguais em todos os campos socioeconômicos – pendeu verdadeiramente para a esquerda? As eleições de Lula e de Dilma para a presidência da República foram descoladas das eleições do Congresso Nacional majoritariamente de centro-direita e direita. Do “fora Dilma” até agora, a mais notável característica neste período histórico é a resiliência e a capacidade de recupera&ccedi l;ão das esquerdas sob intenso bombardeio. Esta é a única, e entusiasmante, novidade. O resto é o de sempre, quadro piorado pelo crescimento da direita neofascista mais vagabunda jamais vista nessas paragens.


EBULIÇÃO NAS DIREITAS

Várias são as direitas, sim. Pluralidade não é exclusividade à esquerda. E aí temos um fato novo eclodindo das urnas neste 2024: o robustecimento de fações destras antes subservientes ao ex-capitão de milícias, e agora achando melhor jair pegando o mito pelos chifres. Caso emblemático é o posicionamento duro do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (e do prefeito eleito em Goiânia, Sandro Mabel) de peitar frontalmente o ex-despresidente, menos de 24 horas depois de terem derrotado a candidatura bolsonarista num duro combate pela capital goiana. “O povo não aguenta mais esse nível de fake news, rotulando, se não concorda com a ideia deles, daí sai como comunista, sai como pessoa que não tem respeito à família. Pessoas totalmente desqualificadas para falar de família e falar de Deus”, endureceu Caiado. Mabel, por sua vez, arr ochou: “Ele [Jair Messias] foi muito desleal comigo”, e já antecipou a campanha 2026: “Se a direita quiser ganhar as próximas eleições presidenciais, ela precisa estar com candidatos que tenham uma visão de centro-direita, como é o caso do Caiado aqui. Se tiver de extrema, chega no segundo turno, mas não passa. O B(...) chegou ao segundo turno em diversas capitais, mas os candidatos dele não ganharam. Aqui a gente chama de cavalo paraguaio. Tem arrancada, mas não tem chegada”.

EQUÍVOCOS NAS ESQUERDAS

“Fazer aliança com o centro altera o caráter do PT” foi a frase de José Genoíno escolhida para manchete de sua entrevista à BBC Brasil, comprovando a capacidade de certas doenças infantis serem imunes às vacinas políticas-ideológicas mais testadas ao longo da história. Essa miopia ainda é endêmica em boa parte das esquerdas, embaralhando ideologia, política e eleições. Economizando teorizações tão antigas quanto verdadeiras, pulemos à prática como critério dialético na busca pela verdade: Todas as eleições presidenciais ganhadas pelo PT se deram graças às alianças com o centro e centro-direita. As esquerdas, no Brasil, jamais conquistaram base parlamentar capaz de sustentar, por si próprias, um governo de centro-esquerda (nem falo “governo de esquerda”); Lula e Dilma t iveram que se aliar ao centrão e à centro-direita para governar. E, se não for para governar, pra que ganhar? Dilma foi facilmente derrubada por um golpe no Congresso, ao se afastar dessa aliança com o centro, sem que as bases canhotas esboçassem, nas ruas, qualquer reação efetiva. As urnas, em 2024, estão repetindo, aos berros: “Crescem no voto e ampliem suas alianças, ou saiam do jogo!”.

Leia 'Editorial' sobre as eleições municipais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/editorialo-do-vermelho.html

Brasil + China

A parceria com a China é mais do que a rota da Seda
O próprio modelo de desenvolvimento da China - e o modelo precursor de desenvolvimento do Brasil dos anos 50 - ensina o caminho.
Luis Nassif/Jornal GGN    

A superficialidade da cobertura midiática transformou o Ministro Celso Amorim em adversário da Rota da Seda. Sua posição é de racionalidade. Há duas formas de integração, a comercial e a industrial. A Rota da Seda ambiciona aproximar a China dos mercados afastados, como América do Sul. Uma integração comercial com a China, sem maiores cuidados, significará o fim da industrialização brasileira. Por isso mesmo, as relações Brasil-China têm que se situar em um patamar muito mais elevado.

O próprio modelo de desenvolvimento da China – e o modelo precursor de desenvolvimento do Brasil dos anos 50 – ensina o caminho.

O Brasil é muito mais relevante para a China do que a China para o Brasil – apesar de ter se tornado o maior parceiro comercial do país. Mas é uma relação comercial desbalanceada, na qual o Brasil exporta commodities e compra produtos industrializados. Além disso, o Brasil é peça chave nas disputas geopolíticas da China, como grande liderança do Sul Global.

Isso, mas o mercado de consumo brasileiro, permite ao país uma negociação muito mais efetiva com a China. Nessa negociação tem que se conseguir avanços em várias áreas: 

  1. Transferência de tecnologia.
  2. Espaço para o capital privado nacional, seja como acionista de filiais de empresas chinesas, seja como fornecedores.
  3. Criar cotas de preferência para exportações das filiais chinesas no país.
  4. Parcerias em novas áreas relevantes, como telecomunicações e lançamento de satélites.

Reduzir todas essas possibilidades a um mero acordo em torno da Rota da Seda é subestimar o potencial da parceria chinesa. 

No início dos anos 2.000, a Embraer fechou um acordo com a China. Pelo acordo deveria transferir tecnologia para uma empresa chinesa. Em troca, teria acesso por alguns anos ao mercado interno da China. Foi esse mesmo pragmatismo que permitiu à China, depois de ter se transformado no chão de fábrica do capitalismo mundial, tornar-se uma gigante industrial.

Obviamente, acordos desse porte não podem ficar restritos a conversas de gabinete. O governo deveria convocar a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, os quadros do CGEE, as instituições empresariais para um amplo balanço das contrapartidas a serem propostas à China.

Junto com a Neo Industrialização, com os programas de transição energética, aos poucos vai se constituindo o quadro para o grande salto brasileiro para a próxima etapa da economia, depois de termos perdido a etapa da digitalização.

Leia sobre o Brasil visto pela China https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/04/brasilchina-perspectivas.html 

Injustiça fiscal

Estudo prova que trabalhador paga muito mais imposto de renda do que milionários
Enquanto brasileiros que ganham mais de R$ 4.664 mensais pagam 27,5% de IR, 0,2% da população com renda superior a R$ 83 mil mensais pagam 13,3%
Priscila Lobregatte/Vermelho  

Estar no topo do topo da pirâmide social no Brasil traz benesses financeiras que vão muito além dos altos valores naturalmente disponíveis a esse estrato social. Essa ínfima fatia da população é privilegiada, também, por um sistema que não tributa sua renda de acordo com o seu tamanho, o que o torna altamente regressivo e injusto. 

Apesar de as alíquotas cobradas pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) serem progressivas, elas são aplicáveis apenas sobre uma parte dos rendimentos, como é o caso dos salários, de maneira que a partir de um determinado nível de ganhos, ela deixa de ser progressiva e se torna nula ou até regressiva justamente para aqueles que poderiam pagar mais. 

Esta é uma das constatações feitas por um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nesta terça-feira (29). As evidências trazidas pela nota técnica confirmam que “a tributação da renda deixa de ser progressiva no ponto mais alto do topo da pirâmide e, na média, não passa de 14%, o que é um patamar muito baixo em perspectiva internacional”. 

Cabe destacar que a tabela do imposto de renda, sem considerar os isentos, vai de 7,5% a 27,5%, a depender da renda, sendo esta última aplicada a brasileiros que ganham mais de R$ 4.664,68 mensais, ou seja, pessoas que estão muito longe de serem consideradas ricas. 

“Existem outras rendas que estão submetidas a outras alíquotas e, no caso extremo, temos muitos rendimentos que são isentos, como ocorre com os lucros e dividendos distribuídos pelas empresas para os seus acionistas. Esse lucro é tributado na empresa, mas é livre de qualquer imposto na distribuição para as pessoas físicas”, explica Sérgio Wulff Gobetti, pesquisador do Ipea responsável pela nota técnica. 

Para chegar a essa conclusão, o estudo considerou três cenários diferentes. Em todos, leva em conta a hipótese de a totalidade do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (IRPJ/CSLL), incidente no caso das empresas do Simples Nacional, ser de fato transferida aos acionistas. Mas, para os demais dividendos, foram assumidos três distintos graus de repasse: 0%, 50% e 100%. 

Observando os cálculos resultantes desses cenários, verificou-se que, mesmo no caso hipotético em que todo imposto pago pelas empresas seja transferido aos acionistas, a taxa média de tributação chega a um máximo de 14,2% na fatia de renda em torno de R$ 516 mil anuais (R$ 43 mil mensais). A partir daí, começa a cair, atingindo uma média de 13,3% entre as pessoas com renda superior a R$ 1 milhão (R$ 83 mil mensais), grupo que representa os 0,2% mais ricos da sociedade brasileira.

O fato de os 14% pagos por quem está no topo ser um percentual médio, conforme assinala o estudo, “não atenua, mas agrava o problema, porque isso significa que, se alguns contribuintes no topo estão suportando uma carga maior do que essa, há outros que usufruem de níveis de tributação ainda mais baixos. Esse é o caso de um grupo de 38,4 mil pessoas que, segundo dados do IRPF, são os mais ricos entre os declarantes que se identificam como sócios de empresas do Simples Nacional, com renda individual média de R$ 1,6 milhão em 2022”. 

Segundo Gobetti, situações como essas ocorrem porque “a carga tributária efetiva sobre o lucro das empresas é mais baixo do que a gente imagina quando a gente olha só para as alíquotas nominais. Estudos recentes da Receita Federal mostram que a alíquota efetiva sobre o lucro do Simples está em torno de 4%, no lucro presumido chega a 11% e para as empresas do lucro real, varia de 22% a 30%”. 

A nota técnica ressalta que “os milionários do Simples Nacional pagam, em média, apenas 7,4% de imposto sobre tudo que ganham, incluindo aí os valores imputados de IRPJ/CSLL sobre os R$ 48 bilhões de dividendos recebidos em 2022 (sendo R$ 2 bilhões de dividendos de outras empresas). Ou seja, a carga tributária suportada pelos super-ricos do Simples Nacional é inferior àquela paga por um trabalhador assalariado que ganhe R$ 4,5 mil mensais e inferior também àquela paga por outros empresários com mesmo nível de renda”. 

De acordo com estimativa do pesquisador, entre 2015 e 2019, cerca de R$ 300 bilhões em valores corrigidos deixaram de ser arrecadados por empresas enquadradas nos regimes do Simples Nacional e do Lucro Presumido. 

Privilégios históricos

Em suas considerações finais, o estudo argumenta que essa distorção em favor dos ricos resulta de uma série de privilégios que foram sendo perpetuados no sistema tributário ao longo da história, entre as quais estão não apenas a isenção sobre lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas — que salienta ser um caso raro no mundo — como também os benefícios inerentes aos regimes especiais de tributação e as brechas existentes no regime de Lucro Real.

Enfrentar esse privilégio demanda o enfrentamento de obstáculos que vão além daqueles de ordem política, ou seja, o eterno “lobby” em defesa dos endinheirados que não se limita aos parlamentos. “É preciso mesclar mudanças de caráter estrutural, como a retomada da tributação de dividendos a partir de modelos internacionais, com ajustes pontuais na legislação que sejam capazes de reduzir (mesmo sem eliminar por completo) as distorções que estão presentes hoje nos diferentes regimes de tributação do lucro”, sugere o estudo. 

Do ponto de vista do debate público, o documento assinala a necessidade de mostrar à sociedade, governos e parlamentos que “a falta de equidade com que a renda em geral (e o lucro das empresas, em particular) é tributada tem consequências negativas não só sobre a justiça fiscal, mas também sobre a eficiência econômica”. 

Afinal, acrescenta, “um sistema tributário que premia os empresários que adotem mais estratagemas de planejamento tributário ou simplesmente restrinjam a escala de seus negócios aos limites dos regimes especiais, como no caso brasileiro, gera vantagens comparativas que nada têm a ver com a atividade econômica em si”. 

Leia sobre privilégio dos super-ricos https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/08/fundos-privilegiados.html

Arte é vida: Konstantin Somov

 

 Konstantin Somov

Leia: saber ouvir importa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/07/minha-opiniao-ouvir-e-falar.html 

Palavra de poeta: Mario Benedetti

Em pé
Mario Benedetti   

Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
e olhar de uma vez a insolente
morte
essa mansa
dona da espera
 
continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória
 
não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura
 
continuar em pé
quer dizer coragem
 
ou não ter
onde cair
morto

[Ilustração: Pablo Picasso]

Leia: 'A construção nossa de cada dia' https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/01/minha-opiniao_30.html

Postei no X

Sucessão presidencial nos Estados Unidos literalmente "pega fogo". Duas urnas foram criminosamente incendiadas em Oregon e Washington. Sinal clínico de decadência. 

Leia: nos EUA, nem tanto nem tão pouco https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/07/minha-opiniao-disputa-nos-eua.html 

30 outubro 2024

Efeito estufa recorde

Concentrações de gases de efeito estufa atingiram novo recorde em 2023
Organização Meteorológica Mundial relata acúmulo mais rápido de dióxido de carbono já registrado na história humana; incêndios florestais contribuíram para aumento das emissões; agência da ONU alerta para consequências sentidas por anos em ecossistemas e economias.
ONU News  

A concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou mais de 10% em apenas duas décadas. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, OMM, esse é o acúmulo mais rápido de COjá experienciado durante a existência humana.

Boletim Anual de Gases de Efeito Estufa da OMM, divulgado nesta segunda-feira, relata um novo recorde em 2023, com emissões causadas por incêndios florestais e uma possível redução na capacidade das florestas de absorver o CO2.

Aumento das temperaturas

Além disso, o levantamento ressalta que as emissões do gás ligadas às atividades industriais baseadas em combustíveis fósseis continuam “persistentemente altas”.

A secretária-geral da OMM, Celeste Saulo, diz que este novo recorde indica que o mundo está “fora do caminho para cumprir a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global bem abaixo de 2°C”.

Para ela, “cada fração de grau de aumento de temperatura tem um impacto real em nossas vidas e em nosso planeta".

Já a vice-secretária-geral da OMM, Ko Barrett, revela que por causa da vida útil extremamente longa do CO2 na atmosfera, o mundo está “fadado ao aumento das temperaturas por muitos e muitos anos"

Aumento de 11,4%

Em 2004, a concentração de dióxido de carbono era de 377,1 partes por milhão, enquanto em 2023 chegou a 420 ppm, de acordo com a Rede Global de Vigilância da Atmosfera da OMM. Isso representa um aumento de 11,4% em 20 anos, e de 151% em comparação aos níveis pré-industriais.

A última vez que a Terra experimentou uma concentração comparável de COfoi de 3 a 5 milhões de anos atrás, quando a temperatura era 2-3 ° C mais quente e o nível do mar era 10-20 metros mais alto do que agora.

Os gases metano e o óxido nitroso, também responsáveis pelo efeito estufa, atingiram 1.934 e 336 partes por bilhão, respectivamente.

Segundo Barret essas concentrações se refletem na velocidade do recuo das geleiras, aceleração do aumento do nível do mar e acidificação dos oceanos.

Ele alertou também para o número de pessoas que serão expostas ao calor extremo todos os anos, a extinção de espécies e o impacto nos ecossistemas e economias.

Tendência de aumento

A análise dos dados mostra que pouco menos da metade das emissões do CO permanecem na atmosfera. Pouco mais de um quarto é absorvido pelo oceano e cerca de 30% pelos ecossistemas terrestres, embora haja uma variabilidade considerável por causa de fenômenos climáticos como El Niño e La Niña.

Durante os anos de El Niño, os níveis de gases de efeito estufa tendem a aumentar porque a vegetação mais seca e os incêndios florestais reduzem a eficiência dos sumidouros de carbono da terra.

O relatório da OMM indica que num futuro próximo, a própria mudança climática pode fazer com que os ecossistemas se tornem fontes maiores de gases de efeito estufa.

Segundo a análise, os incêndios florestais podem causar mais emissões de carbono na atmosfera, e o aquecimento dos oceanos podem limitar a absorção do gás. Consequentemente, mais COpermaneceria na atmosfera, acelerando o aquecimento global.

O Boletim de Gases de Efeito Estufa complementa o relatório sobre a lacuna de emissões do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Ambos foram publicados em antecipação à Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, COP29 em Baku, Azerbaijão.

Leia sobre a seca na Amazônia https://lucianosiqueira.blogspot.com/search?q=Mudan%C3%A7as+clim%C3%A1ticas

Minha opinião

Identifique-se. Faz bem 
Luciano Siqueira    

Meu blog www.lucianosiqueira.blogspot.com é assumidamente artesanal. 

Quase um hobby apenas. 

Onde publico o que escrevo e também o que leio, vejo e ouço. 

Não há uma pauta rígida. Em certa medida, cabe tudo: política, economia, teoria marxista, ciência, arte, poesia e cultura, futebol e assim por diante. 

Tudo isso literalmente aberto a comentários. Sem nenhum empecilho nem exigência de assinatura. 

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Leia também: nas redes, em tempo real https://lucianosiqueira.blogspot.com/2021/07/em-tempo-real.html

Enio Lins opina

Findas as eleições 2024, o que mesmo nos dizem as urnas?
Enio Lins  

Muitas são as interpretações das vozes das urnas neste ano da graça do voto municipal. No meritório e indispensável conflito das ideias, teses e antíteses, temos pouco tempo e muitos torvelinhos de paixões políticas para decantar, sedimentando conclusões mais acuradas. E já estamos cara a cara com as eleições 2026.

QUE MUDOU?

Numa primeira vista d’olhos, percebem-se poucas mudanças em relação ao longo de uma década, quando as eleições de 2016 e 2020 mantiveram a proeminência do chamado “Centrão”, com crescimento de lideranças e siglas mais posicionadas à direita, e o surgimento e salto do bolsonarismo. Confirma-se também a tremenda dificuldade dos partidos ditos de esquerda em acompanhar as performances presidenciais de Lula. Observemos o caso paulistano: a única novidade foi o destaque da candidatura-marginal de Pablo Marçal, engolindo 1.719.724 votos (28,14% dos votantes) e exibindo força como uma candidatura escatológica de extrema-direita, diferentemente de quatro anos atrás, onde o eleitorado paulistano não se sensibilizou com as bizarrices de Arthur do Val “Mamãe Falei” (mas cravou 9,7% dos votos) nem de Joice Hasselmann (com 1,8%). No c&ocir c;mputo final paulistano, Boulos nada acrescentou a seu desempenho em 2020 (quando obteve 40,62% dos votos no 2º turno, e neste ano cravou 40,65%); e a extrema-direita, embora tenha sua parcela de culpa na recondução do sorumbático Nunes, ficou a reboque da centro-direita hoje emedebista, ontem tucana, na pauliceia despudorada (Bruno Covas ganhou com 59,38% em 2020 e Nunes levou com 59,35% em 2024). Obviamente, a reeleição segue comprovando “a força da máquina”: 81% dos nomes que buscavam seguir na cadeira abocanhou o segundo mandato (porém, em 2008, esse índice foi de 95%).

RENOVAÇÃO É A QUESTÃO

Um velho dilema se reforça com esses resultados municipais: o nó górdio da renovação de lideranças, processo sempre tumultuoso e marcado por insucessos em boa parte do mundo. Nacionalmente, no campo da direta, se fortaleceu o tal Tarcísio, governante que surgiu de repente, aterrissado de paraquedas em São Paulo, em 2022, lançado na rabeira da candidatura de Jair Messias naquele ano, e viabilizado pela união férrea da centro-direita com a extrema-direita no mais rico Estado brasileiro. O atual governador paulista – a quem o insosso Nunes agradeceu e dedicou a vitória na reeleição, deixando o mito de lado – passa a incomodar seu criador e mexe para jair se alevantando como postulante à faixa presidencial. No território canhoto, danadamente, nada alumiou o cenário pós-Lula; e a centelha alvissareira de João Campos, faiscando desde o Recife, tem sobre si o peso da triste tradição do petismo só se engajar em candidaturas da própria sigla. Assim, apesar do baque no banheiro, que lhe rendeu uns pontos na cabeça e sobressaltou o país, Lula segue sendo a única esperança democrática para 2026, mesmo lá chegando aos provectos, e temerários, 81 anos de idade.

E AS CÂMARAS?

Sim: é de bom alvitre olhar com mais atenção o quadro pintado pelas urnas para o cenário das 58 mil cadeiras nas Câmaras Municipais, a base real da pirâmide eleitoral. Nenhum partido considerado canhoto figura nas cinco melhores posições dessa tabela da edilidade Brasil afora. Confira a lista, publicada n’O Globo, das 10 siglas que mais elegeram, por ordem decrescente: 1º) MDB, com 8.114 vereadores; 2º) PP, com 6.953; 3º) PSD, com 6.625; 4º) UB, com 5.490; 5º) PL, com 4.961; 6º) REP, com 4.649; 7º) PSB, com 3.593; 8º) PT, com 3.130; 9º) PSDB, com 3.002; 10º) PDT, com 2.503 assentos. Não é brinquedo não, gente.

Leia 'Editorial' sobre as eleições municipais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/editorialo-do-vermelho.html

Cida: competência e amplitude

Recife avança em proposta para distribuição de remédios à base de cannabis
Com respaldo inédito, PL da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB) visa garantir acesso seguro aos medicamentos para pacientes com condições crônicas e refratárias
Barbara Luz/Vermelho 

A Câmara Municipal do Recife avalia nesta terça-feira (29), o Projeto de Lei Ordinária nº 207/2022, que busca instituir a “Política Municipal de Uso e Distribuição de Remédios Derivados da Cannabis sp.”. A proposta, de autoria da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB) e instalada por 25 coautores — dois terços do legislativo local —, marca o maior respaldo já registrado na história da Câmara a uma iniciativa.

Entre os coautores estão as seguintes vereadoras e vereadores: Alcides Cardoso (PL), Alcides Teixeira Neto (Avante), Aline Mariano (PSB), Almir Fernando (PSB), Chico Kiko (PSB), Dani Portela (PSOL), Dilson Batista (Avante), Doduel Varela (PSD), Eriberto Rafael (PSB), Fabiano Ferraz (MDB), Hélio Guabiraba (PSB), Ivan Moraes (PSOL), Jairo Britto (PT), Liana Cirne (PT), Marco Aurélio Filho (PV), Marcos di Bria Júnior (PSB), Natália de Menudo (PSB), Osmar Ricardo (PT), Paulo Muniz (PL), Prof. Mirinho (MDB), Rinaldo Júnior (PSB), Romerinho Jatobá (PSB), Samuel Salazar (MDB), Tadeu Calheiros (MDB) e Zé Neto (PSB).

A proposta regulamenta o uso terapêutico da Cannabis sp., abarcando todas as espécies da planta com potencial terapêutico, e prevê parcerias com organizações civis para garantir que a produção e a distribuição desses medicamentos sigam as normas nacionais. O projeto permite também convênios com entidades terapêuticas para promover campanhas educativas e eventos de conscientização, além de apoiar pesquisas técnico-científicas sobre o uso medicinal da cannabis.

Cida Pedrosa, que usa o óleo de canabidiol para tratar dores crônicas, ressalta a importância de uma discussão menos preconceituosa sobre o tema no Brasil. “Enquanto perdemos tempo debatendo esse assunto com fundamentalistas e conservadores, milhares de pacientes perdem a oportunidade de um tratamento eficiente e digno. Enquanto vivermos sob a égide dessa equivocada ‘guerra às drogas’, que só mata gente preta e periférica, ficaremos a reboque dos países que inventaram essa guerra e hoje cultivam, pesquisam e vendem a preços exorbitantes esses fármacos”, afirma a vereadora.

O projeto estabelece ainda que todos os medicamentos distribuídos deverão seguir as regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e em caso de importação, atender às normas sanitárias do país de origem. Os produtos fornecidos também precisarão apresentar certificados de análise que especificam os teores de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC).

A justificativa da proposta enfatiza a necessidade de alternativas terapêuticas comprovadas por estudos científicos e acessíveis para a população. “A regulamentação local pode ampliar o acesso e garantir maior segurança para pacientes e profissionais de saúde, diminuindo a dependência do mercado informal e ilegal”, reforça o texto. [Fonte: Ascom Cida Pedrosa]

Leia também: um prêmio para os fazedores da cultura https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/02/premio-tereza-costa-rego.html 

Editorial do 'Vermelho'

Direita sofre rachaduras. Esquerda precisa recompor força. Resultado impõe fortalecer frente ampla
A esquerda e o campo progressista precisam reforçar a unidade na luta, elaborando plataformas de mobilização convergentes, tanto no parlamento quanto na mobilização do povo
Editorial do portal Vermelho www.vermelho.org.br


Realizadas as eleições do segundo turno em 51 cidades, 15 delas capitais, abrangendo quase 40 milhões de eleitores, pode-se afirmar que, embora tenha havido resultados que impactam a aferição geral de quem venceu ou perdeu, mantiveram-se, com oscilações, os vetores do resultado do primeiro turno.

A direita e a centro-direita consolidaram o ranking de maior número de prefeituras conquistadas. A extrema-direita, que havia obtido êxitos no primeiro turno, sofreu, agora, derrotas eleitorais e expôs fraturas em seu âmbito e no próprio bloco da direita. A esquerda deu seguimento, embora com revezes, com destaque para São Paulo, ao esforço de recompor sua força nos municípios.

Para se analisar a larga vantagem pró-centro-direita e direita, é preciso ter em conta que, em 2016 e 2020, a esquerda teve uma severa queda em número de mandatos legislativos e prefeituras com a escalada reacionária do período do golpe de 2016 ao final do governo da extrema-direita, em 2022. E a direita manteve-se na ofensiva, tendo se apropriado de parcela significativa do Orçamento Federal por meio de recursos das emendas parlamentares, o chamado “orçamento secreto”, que injetou bilhões de reais em suas bases municipais, o que fermentou seu estoque de votos e força nos municípios.

Em síntese: a direita, que já vinha de uma base elevada em 2020, teve, agora, por óbvio, melhores condições para se expandir, enquanto a esquerda persiste na desafiante travessia para recompor sua força a partir dos munícipios.

Outro ponto relevante é a existência, entre os eleitos do campo da centro-direita e da direita, de lideranças pertencentes à área de influência política do governo do presidente Lula, posto que o PP, o União Brasil, o MDB e o PSD estão à frente de ministérios. Portanto, parte das prefeituras que serão governadas por essas legendas não estão no campo da oposição.

Nas capitais, Bolsonaro foi o grande derrotado. Perdeu em Belém, Curitiba, João Pessoa, Manaus, Palmas, Goiânia, Porto Velho, Fortaleza e Belo Horizonte. Venceu apenas em Cuiabá e Aracaju.

No campo democrático e progressista, destacam-se importantes vitórias decorrentes, neste segundo turno, de movimentos de frente ampla em capitais de relevância regional: Belém, com Igor Normando (MDB), Belo Horizonte, com Fuad Normad (PSD), Fortaleza, com Evandro Leitão (PT), e João Pessoa, com Cícero Lucena (PP). No primeiro turno, já haviam sido seladas as vitórias de Eduardo Paes (PSD), no Rio de Janeiro, e de João Campos (PSB), no Recife.

A vitória de Evandro Leitão, em Fortaleza, maior cidade do Nordeste, com ampla mobilização do povo e amplitude política, contra um candidato da extrema-direita, se constitui num grande feito da esquerda e do conjunto das forças democráticas. Assim como a reeleição do prefeito Fuad em Belo Horizonte, num confronto face a face do campo democrático com a direita, que se reunificou no segundo turno. Destacam-se ainda as vitórias da Federação Brasil da Esperança, com as candidaturas do PT, em Camaçari (BA), Pelotas (RS) e Mauá (SP). E o PDT em Niterói (RJ), com amplo apoio, e Serra (ES).

São Paulo, pelo porte da cidade e sua influência no país, se constituiu na principal vitória da direita, que agregou uma dúzia de legendas, às quais se somaram mais forças no segundo turno. Nesse bloco, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sai fortalecido como principal apoiador do prefeito Ricardo Nunes. Jair Bolsonaro, por sua vez, sai chamuscado, uma vez que foi uma figura praticamente ausente.

Um fato extremamente condenável foi a atitude do governador Tarcísio de Freitas, que, no dia da votação, sem apresentar provas, afirmou que o crime organizado indicou votos para Guilherme Boulos. Esse grave delito eleitoral tem sido amplamente reprovado, e, espera-se, deve ser devidamente punido.

A esquerda e o candidato Guilherme Boulos, embora derrotados, realizaram uma campanha competitiva, combativa e propositiva. Conseguiram ampliar apoios no segundo turno e a votação obtida, acima dos 40%, representa um acúmulo que terá relevância para as lutas que se seguem, especialmente a disputa de 2026.

Bolsonaro, com a ambição de tentar controlar com mão de ferro o campo da direita e da extrema-direita, maquinou, desde o primeiro turno, disputas e confrontos com outras lideranças da direita, notadamente em Goiânia e Curitiba. Resultado: além de impor divisões e fraturas no bloco direitista, sofreu derrotas.

O campo democrático e progressista, em especial a Federação Brasil da Esperança, corretamente não cruzou os braços onde houve disputas no âmbito da direita e atuou de forma condizente com a realidade de cada local para derrotar a extrema-direita.

Nesse aspecto, enquanto o presidente Lula prossegue como liderança respeitada no campo democrático e progressista pelo peso de sua força político-eleitoral, o espectro da direita e da extrema-direita se apresenta com rachaduras. Bolsonaro se vê confrontado por lideranças como Ronaldo Caiado, da direita dita tradicional, e por uma variante do neofascismo que emergiu nessas eleições, representada por Pablo Marçal – entre outros –, cujo fôlego ainda está por se definir.

O resultado que acaba de ser consolidado nas urnas catalisa movimentos em ambos os polos e intensificará, imediatamente, as articulações no tabuleiro da política nacional.

Da parte do governo Lula, a matriz tática que lhe deu a vitória é o fator determinante para a governabilidade. A frente ampla ganha importância ainda maior. Impõe-se reforçar a aliança com a centro-direita, neutralizar a direita e prosseguir isolando a extrema-direita para derrotá-la, sem que isso implique rebaixar o papel decisivo da esquerda e do conjunto do campo democrático e progressista, condição para a frente ampla ter sustentação e condução consequentes, com apoio e mobilização do povo.

Ainda em relação ao governo, é preciso assimilar, com eficácia e urgência, as novas demandas do povo decorrentes do revolvimento no perfil da classe trabalhadora, nas suas aspirações e subjetividades, devido a uma série de mudanças do mundo trabalho e das consequências da regressão que houve em termos de direitos, na forte expansão do trabalho informal. Contudo, o fundamental é, com base nos êxitos da reconstrução nacional até aqui alcançados, acelerar o crescimento econômico, com mais produção, mais postos de trabalho, melhores salários e mais direitos.

Tudo isto não basta: o governo precisa enfrentar, em nível superior, a batalha da comunicação, a guerra cultural da extrema-direita, que passa pela regulamentação das chamadas big techs.

Igualmente importante para o campo democrático e progressista, em especial a esquerda, os partidos, os movimentos sociais, é tirar consequências das lições da seiva da vida que jorrou dessas eleições. Entre outras questões, intensificar as capacidades e a eficácia na comunicação digital. Entendê-la como arena indispensável e irrecusável da luta de classes.

Entender as mudanças e as novas demandas e aspirações do povo. E, a partir dessa interpretação, renovar e aumentar os vínculos da esquerda com o povo e a classe trabalhadora nas lutas, nas ruas e nas redes.

Com o fortalecimento da direita, a esquerda e o campo progressista precisam reforçar a unidade na luta, elaborando plataformas de mobilização convergentes, tanto no parlamento quanto na mobilização do povo. A esquerda deve reforçar seu papel como parte mais comprometida e empenhada com o reforço da construção de movimentos de frente ampla desde os munícipios.

Leia também: Temas ausentes na campanha eleitoral https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/minha-opiniao_27.html

Palavra de poeta: Pablo Neruda

Soneto XVII
Pablo Neruda   
 
Não sei com que face te amo,
Se com a que tinhas antes de conhecer-me,
Ou com a que encontraste ao me conhecer,
Ou com aquela que te dei.
 
O teu corpo é um livro de linhas claras,
Que se pode ler sem erro,
Mas os seus olhos são dois caminhos
Que se cruzam e se perdem.
 
Não sei com que face te amo,
Mas sei que te amo, e que esse saber
É todo o meu ser, toda a minha alma,
 
E que é mais que o meu coração.
Então, não me perguntes com que face,
Pois não sei, mas sei que te amo.


Leia também 'Chama', um poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/palavra-de-poeta-cida-pedrosa_26.html 

29 outubro 2024

Trabalho digital semi-escravo

Viagem aos porões da Inteligência Artificial
Uma legião de precarizados ensina a IA das Big Techs a eliminar conteúdo abjeto das redes sociais. Convivem com o trauma e insalubridade, no Sul Global. Ganham pouquíssimo. Não podem organizar-se. Seu mundo permanece oculto
Adio Dinika, no Noema | Tradução: Glauco Faria   

Uma tela embaçada aparece diante de nossos olhos, acompanhada de uma mensagem enganosamente inócua de “conteúdo sensível” com um emoji de olho riscado. O design suave e o ícone lúdico do aviso desmentem a gravidade do que está por trás. Com um movimento casual de nossos dedos, passamos por ele, nossos feeds são atualizados com vídeos de gatos e fotos de férias. Mas nas sombras de nossa utopia digital, uma realidade diferente se desenrola.

Em armazéns apertados e mal iluminados em todo o mundo, um exército de trabalhadores invisíveis se debruça sobre telas que piscam. Seus olhos se esforçam, com os dedos pairando sobre os teclados, enquanto confrontam os impulsos mais obscuros da humanidade – alguns mais obscuros do que seus pesadelos mais loucos. Eles não conseguem desviar o olhar. Não podem rolar a tela. Para esses trabalhadores, não há aviso de gatilho. 

Os gigantes da tecnologia alardeiam o poder da IA na moderação de conteúdo, pintando imagens de algoritmos oniscientes que mantêm nossos espaços digitais seguros. Eles sugerem uma visão utópica de máquinas que vasculham incansavelmente os detritos digitais, protegendo-nos do pior da Web.

Mas essa é uma mentira reconfortante.

A realidade é muito mais humana e muito mais preocupante. Essa narrativa serve a vários propósitos: ameniza as preocupações dos usuários com relação à segurança on-line, justifica os enormes lucros que essas empresas obtêm e desvia a responsabilidade – afinal, como você pode culpar um algoritmo?

No entanto, os sistemas de IA atuais não são nem de longe capazes de entender as nuances da comunicação humana, muito menos de fazer julgamentos éticos complexos sobre o conteúdo. O sarcasmo, o contexto cultural e as formas sutis de discurso de ódio muitas vezes passam despercebidos até mesmo pelos algoritmos mais sofisticados.

E, embora a moderação automatizada de conteúdo possa, até certo ponto, ser implementada para idiomas mais comuns, o conteúdo em idiomas com poucos recursos normalmente exige o recrutamento de moderadores de conteúdo dos países em que o idioma é falado, devido às suas habilidades linguísticas.

Por trás de quase todas as decisões de IA, um ser humano tem a tarefa de fazer a chamada final e arcar com o ônus do julgamento – não um salvador baseado em silício. A IA geralmente é um primeiro filtro bruto. Veja as lojas supostamente automatizadas da Amazon, por exemplo: Foi relatado pelo The Information que, em vez de sistemas avançados de IA, a Amazon contava com cerca de 1.000 funcionários, principalmente na Índia, para rastrear manualmente os clientes e registrar suas compras.

A Amazon disse à AP e a outros que contratou trabalhadores para assistir a vídeos para validar as pessoas que faziam compras, mas negou que tivesse contratado 1.000 pessoas ou a implicação de que os trabalhadores monitoravam os compradores ao vivo. Da mesma forma, o assistente M “alimentado por IA” do Facebook é mais humano do que software. E assim, a ilusão da capacidade da IA é frequentemente mantida à custa de trabalho humano oculto.

“Éramos os zeladores da Internet”, disse-me Botlhokwa Ranta, 29 anos, uma ex-moderadora de conteúdo da África do Sul que agora mora em Nairóbi, no Quênia, dois anos depois que seu contrato com a Sama foi rescindido. Falando de sua casa, sua voz estava pesada quando ela continuou. “Nós limpamos a bagunça para que todos os outros possam desfrutar de um mundo on-line higienizado.”

E assim, enquanto dormimos, muitos trabalham. Enquanto compartilhamos, esses trabalhadores protegem. Enquanto nos conectamos, eles enfrentam a desconexão entre nossa experiência on-line com curadoria e a realidade da natureza humana crua e sem filtros.

O verniz brilhante do setor de tecnologia esconde uma realidade humana crua que se estende por todo o mundo. Dos arredores de Nairóbi aos apartamentos lotados de Manila, das comunidades de refugiados sírios no Líbano às comunidades de imigrantes na Alemanha e aos call centers de Casablanca, uma vasta rede de trabalhadores invisíveis alimenta nosso mundo digital. As histórias desses trabalhadores geralmente são uma tapeçaria de trauma, exploração e resiliência, que revelam o verdadeiro custo de nosso futuro impulsionado pela IA.

Podemos ficar maravilhados com os chatbots e os sistemas automatizados que Sam Altman e sua turma exaltam, mas isso esconde as questões urgentes que estão abaixo da superfície: Será que nossos sistemas de IA divinos servirão apenas como uma cortina de fumaça, ocultando uma realidade humana angustiante?

Em nossa busca incessante pelo avanço tecnológico, devemos nos perguntar: qual é o preço que estamos dispostos a pagar por nossa conveniência digital? E nessa corrida rumo a um futuro automatizado, será que estamos deixando nossa humanidade na poeira?

A história de Abrha

Em fevereiro de 2021, o mundo de Abrha se despedaçou quando sua cidade em Tigray ficou sob fogo das forças de defesa da Etiópia e da Eritreia no conflito de Tigray, o conflito mais mortal dos dias atuais, que foi corretamente chamado de genocídio, de acordo com um relatório do New Lines Institute, com sede nos EUA.

Com apenas uma pequena mochila e todo o dinheiro que conseguiu pegar, Abrha, então com 26 anos, fugiu para Nairóbi, no Quênia, deixando para trás um negócio próspero, uma família e amigos que não conseguiram escapar. Enquanto Tigray sofria com ofechamento da internet por mais de dois anos imposto pelo governo da Etiópia, ele passou meses em uma agonizante incerteza sobre o destino de sua família.

Então, em uma cruel ironia, Abrha foi recrutado pela filial queniana da Sama, uma empresa sediada em São Francisco que se apresenta como um provedor ético de dados de treinamento de IA, porque a empresa precisava de pessoas fluentes em tigrínia e amárico, idiomas do conflito do qual ele acabara de fugir, para moderar o conteúdo originado principalmente desse mesmo conflito.

Cinco dias por semana, oito horas por dia, Abrha ficava sentado no depósito da Sama em Nairóbi, moderando conteúdo do mesmo conflito do qual ele havia escapado – às vezes até mesmo um bombardeio em sua cidade natal. Cada dia trazia uma enxurrada de discursos de ódio dirigidos aos Tigrayans e o medo de que o próximo cadáver fosse o de seu pai, a próxima vítima de estupro fosse sua irmã.

Um dilema ético também pesava sobre ele: Como ele poderia permanecer neutro em um conflito em que ele e seu povo eram as vítimas? Como ele poderia rotular o conteúdo de retaliação gerado por seu povo como discurso de ódio? A pressão se tornou insuportável.

Embora Abrha detestasse fumar, ele se tornou um fumante inveterado que sempre tinha um cigarro na mão enquanto navegava nesse campo minado digital de trauma – cada tragada era uma tentativa inútil de aliviar a dor do sofrimento de seu povo.

O horror de seu trabalho atingiu um pico devastador quando Abrha se deparou com o corpo de seu primo enquanto moderava o conteúdo. Foi um lembrete brutal dos riscos muito reais e pessoais do conflito que ele estava sendo forçado a testemunhar diariamente por meio de uma tela de computador.

Depois que ele e outros moderadores de conteúdo tiveram seus contratos rescindidos pela Sama, Abrha se viu em uma situação terrível. Incapaz de conseguir outro emprego em Nairóbi, ele teve que lidar com seu trauma sozinho, sem o apoio ou os recursos de que precisava desesperadamente. O peso de suas experiências como moderador de conteúdo, juntamente com os efeitos persistentes da fuga do conflito, afetou muito sua saúde mental e sua estabilidade financeira.

Apesar de a situação em Tigray continuar precária após a guerra, Abrha sentiu que não tinha outra opção a não ser voltar para sua terra natal. Ele fez a difícil jornada de volta há alguns meses, na esperança de reconstruir sua vida a partir das cinzas do conflito e da exploração. Sua história serve como um forte lembrete do impacto duradouro do trabalho de moderação de conteúdo e da vulnerabilidade daqueles que o realizam, muitas vezes longe de casa e dos sistemas de apoio.

A realidade de pesadelo de Kings

Tendo crescido em Kibera, uma das maiores favelas do mundo, Kings, 34 anos, que insistiu que Noema usasse apenas seu primeiro nome para discutir livremente assuntos pessoais de saúde, sonhava com uma vida melhor para sua jovem família. Como muitos jovens criados na favela de Nairóbi, ele estava desempregado.

Quando a Sama o chamou, Kings viu nisso a sua chance de entrar no mundo da tecnologia. Começando como anotador de dados, que os rotulava e os categorizava para treinar sistemas de IA, ele ficou entusiasmado, apesar do salário baixo. Quando a empresa ofereceu promovê-lo a moderador de conteúdo com um pequeno aumento de salário, ele aproveitou a oportunidade, sem saber das implicações da decisão.

Kings logo se viu confrontado com um conteúdo que o assombrava dia e noite. O pior era o que eles codificavam como CSAM, ou material de abuso sexual infantil. Dia após dia, ele examinava textos, fotos e vídeos que retratavam vividamente a violação de crianças. “Vi vídeos de vaginas de crianças se rasgando por causa do abuso”, contou ele, com a voz vazia. “Toda vez que eu fechava os olhos em casa, era só isso que eu via.”

O trauma infectou todos os aspectos da vida de Kings. Aos 32 anos, ele tinha dificuldade de ter intimidade com sua esposa; imagens de crianças abusadas atormentavam sua mente. O suporte à saúde mental da empresa era extremamente inadequado, disse Kings. Os conselheiros pareciam não estar preparados para lidar com a profundidade de seu trauma.

Por fim, a tensão se tornou excessiva. A esposa de Kings, incapaz de lidar com a privação sexual e as mudanças em seu comportamento, o deixou. Quando Kings deixou a Sama, ele era uma casca de seu antigo eu – quebrado mental e financeiramente – e seus sonhos de uma vida melhor foram destruídos por um trabalho que ele achava que seria sua salvação.

Perdendo a fé na humanidade

A história de Ranta começa na pequena cidade sul-africana de Diepkloof, onde a vida se move em ciclos previsíveis. Mãe aos 21 anos, ela tinha 27 quando conversamos e refletiu sobre a dura realidade enfrentada por muitas mulheres jovens em sua comunidade: seis em cada dez meninas já tinham engravidado aos 21 anos, entrando em um mundo onde as perspectivas de emprego já são escassas e a maternidade solteira as torna ainda mais esquivas.

Quando a Sama começou a recrutar, prometendo uma vida melhor para ela e seu filho, Ranta viu isso como sua passagem para um futuro melhor. Ela se candidatou e logo se viu em Nairóbi, longe de tudo o que lhe era familiar. As promessas se desfizeram rapidamente após sua chegada. O apoio para reencontrar seu filho, que ela havia deixado na África do Sul, nunca se concretizou como prometido.

Quando ela perguntou sobre isso, os representantes da empresa lhe disseram que não poderiam mais cobrir o custo total, como prometido inicialmente, e ofereceram apenas um apoio parcial, a ser deduzido de seu salário. As tentativas de conseguir uma audiência oficial com a Sama não tiveram êxito, e fontes não oficiais citaram como motivo os processos judiciais em andamento com os trabalhadores.

Quando a irmã de Ranta faleceu, ela disse que seu chefe lhe deu alguns dias de folga, mas não a deixou mudar para fluxos de conteúdo menos traumáticos quando ela voltou a moderar o conteúdo, mesmo havendo uma vaga. Era como se esperassem que ela e outros funcionários operassem como máquinas, capazes de desligar um programa e iniciar outro à vontade.

As coisas chegaram a um ponto crítico durante uma gravidez complicada. Ela não teve permissão para ficar em repouso na cama, conforme ordenado por seu médico, e apenas quatro meses depois de dar à luz sua segunda filha, a criança foi hospitalizada.

Ela então ficou sabendo que a empresa havia parado de fazer contribuições para o plano de saúde logo depois que ela começou a trabalhar, apesar de ter continuado a deduzir o valor de seu salário. Agora, ela estava sobrecarregada, com contas que não tinha condições de pagar.

A função de Ranta envolvia a moderação de conteúdo relacionado a abuso sexual feminino, xenofobia, discurso de ódio, racismo e violência doméstica, principalmente de sua terra natal, a África do Sul e a Nigéria. Embora reconhecesse a importância de seu trabalho, ela lamentava a falta de aconselhamento psicológico, treinamento e apoio adequados.

Ranta se viu perdendo a fé na humanidade. “Vi coisas que nunca pensei que fossem possíveis”, ela me disse. “Como os seres humanos podem afirmar que são a espécie inteligente depois do que vi?”

O CEO da Sama expressou arrependimento por ter assinado o contrato de moderação de conteúdo com a Meta.

O representante também disse que a companhia oferecia “’soluções técnicas para limitar ao máximo a exposição a material gráfico”. No entanto, as experiências compartilhadas por trabalhadores como Abrha, Kings e Ranta pintam um quadro totalmente diferente, sugerindo uma lacuna significativa entre as políticas declaradas da Meta e as realidades vividas pelos moderadores de conteúdo.

Perspectivas globais: Lutas semelhantes entre fronteiras

As experiências de Abrha, Kings e Ranta não são incidentes isolados. Somente no Quênia, conversei com mais de 20 trabalhadores que compartilharam histórias semelhantes. Em todo o mundo, em países como Alemanha, Venezuela, Colômbia, Síria e Líbano, os trabalhadores de dados com quem conversamos como parte de nosso projeto Data Workers Inquiry nos disseram que enfrentaram desafios semelhantes.

Na Alemanha, apesar de todos os seus programas para ajudar os recém-chegados, os imigrantes com status incerto ainda acabam em funções como a de Abrha, revisando o conteúdo de seus países de origem. A situação precária dos vistos desses trabalhadores acrescentou uma camada de vulnerabilidade. Muitos nos disseram que, apesar de enfrentarem a exploração, sentiam-se incapazes de se manifestar publicamente. Como o emprego deles está vinculado ao visto, há o risco de serem demitidos e deportados.

Na Venezuela e na Colômbia, a instabilidade econômica leva muitos a procurar trabalho no setor de dados. Embora nem sempre estejam diretamente envolvidos na moderação de conteúdo, muitos anotadores de dados costumam trabalhar com conjuntos de dados desafiadores que podem afetar negativamente seu bem-estar mental.

A realidade geralmente não corresponde ao que foi anunciado. Mesmo que os trabalhadores de dados na Síria e os refugiados sírios no Líbano não estejam moderando o conteúdo, o trabalho deles muitas vezes se cruza com resquícios digitais do conflito que vivenciaram ou do qual fugiram, acrescentando uma camada de tensão emocional aos seus trabalhos já exigentes.

O uso generalizado de acordos de não divulgação (NDAs) é mais uma camada na dinâmica de poder desigual que envolve esses indivíduos vulneráveis. Esses acordos, exigidos como parte dos contratos de trabalho dos trabalhadores, silenciam os trabalhadores e mantêm suas lutas ocultas da opinião pública.

A ameaça implícita desses NDAs geralmente se estende além do período de emprego, lançando uma longa sombra sobre a vida dos trabalhadores mesmo depois que eles deixam seus empregos. Muitos trabalhadores que falaram conosco insistiram no anonimato por medo de repercussões legais.

Esses trabalhadores, em lugares como Bogotá, Berlim, Caracas e Damasco, relataram que se sentiam abandonados pelas empresas que lucravam com seu trabalho. Os chamados “programas de bem-estar” oferecidos pela Sama muitas vezes não estavam preparados para lidar com o trauma profundo que esses trabalhadores estavam sofrendo, disseram-me os funcionários.

Suas histórias deixam claro que, por trás da fachada elegante de nosso mundo digital, há uma força de trabalho oculta que carrega fardos emocionais imensos, para que não precisemos fazer isso. Suas experiências levantam questões urgentes sobre as implicações éticas do trabalho com dados e o custo humano da manutenção de nossa infraestrutura digital. A natureza global desse problema ressalta uma verdade preocupante: a exploração dos trabalhadores de dados não é um bug, é uma característica sistêmica do setor.

É uma teia global de luta, tecida pelos gigantes da tecnologia e mantida pelo silêncio daqueles que estão presos nela, conforme documentado por Mophat Okinyi e Richard Mathenge, ex-moderadores de conteúdo e agora co-pesquisadores em nosso projeto Data Workers’ Inquiry. Os dois viram esses padrões se repetirem em uma série de empresas diferentes em vários países. Suas experiências, tanto como trabalhadores quanto agora como defensores, ressaltam a natureza global dessa exploração.

O trauma por trás da tela

Antes de viajar para o Quênia, eu achava que entendia os desafios enfrentados pelos profissionais de dados por meio de minhas conversas on-line com alguns deles. Entretanto, ao chegar, me deparei com histórias de depravação individual e institucional que me deixaram com traumas secundários e pesadelos por semanas. Mas para os próprios trabalhadores de dados, o trauma se manifesta de duas formas principais: trauma direto do próprio trabalho e problemas sistêmicos que agravam o trauma.

1. Trauma direto

Todos os dias, os moderadores de conteúdo são forçados a enfrentar os cantos mais obscuros da humanidade. Eles atravessam um pântano tóxico de violência, discurso de ódio, abuso sexual e imagens gráficas.

Essa exposição constante a conteúdo perturbador cobra seu preço. “Isso vai além do que torna as pessoas humanas”, disse-me Kings. “É como ser forçado a beber veneno todos os dias, sabendo que está matando você, mas não pode parar porque é o seu trabalho.” As imagens e os vídeos permanecem depois do trabalho, assombrando seus sonhos e se infiltrando em suas vidas pessoais.

Muitos moderadores relatam sintomas de estresse pós-traumático e trauma vicário: pesadelos, flashbacks e ansiedade grave são comuns. Alguns desenvolvem uma desconfiança profunda em relação ao mundo ao seu redor, mudada para sempre pela exposição constante à crueldade humana. Como um funcionário me disse: “Entrei nesse trabalho acreditando na bondade básica das pessoas. Agora, não tenho mais certeza se acredito em alguma coisa. Se as pessoas podem fazer isso, então o que há para acreditar?”

Quando o turno termina, o trauma segue esses trabalhadores para casa. Para Kings e Okinyi, como para tantos outros, seus relacionamentos desmoronaram sob o peso do que eles viram, mas não puderam falar. Os filhos crescem com pais emocionalmente distantes, os parceiros se afastam e o trabalhador fica isolado em sua dor.

Muitos moderadores relatam uma mudança fundamental em sua visão de mundo. Eles se tornam hipervigilantes, vendo ameaças em potencial em toda parte. Okinyi mencionou como um de seus ex-colegas teve de se mudar da cidade para a zona rural, menos movimentada, devido à paranoia de possíveis explosões de violência. Em um zine que ela criou para o Data Workers Inquiry sobre as moderadoras de conteúdo da Sama, uma das entrevistadas de Ranta falou sobre como o trabalho a fazia questionar constantemente seu valor e sua capacidade de ser mãe de seus filhos.

2. Problemas sistêmicos

Além do trauma imediato do conteúdo em si, os moderadores enfrentam uma enxurrada de problemas sistêmicos que exacerbam seu sofrimento:

  • Insegurança no emprego: Muitos moderadores, especialmente aqueles em situações de vida precárias, como refugiados ou migrantes econômicos, vivem com medo constante de perder seus empregos. Esse medo geralmente os impede de falar sobre suas condições de trabalho ou de buscar ajuda. As empresas geralmente exploram essa vulnerabilidade.
  • Falta de apoio à saúde mental: Embora as empresas divulguem seus programas de bem-estar, a realidade fica muito aquém. Como Kings experimentou, o aconselhamento fornecido geralmente é inadequado, com terapeutas mal equipados para lidar com o trauma exclusivo da moderação de conteúdo. As sessões geralmente são breves e não tratam de traumas mais subjacentes e profundos.
  • Métricas de desempenho irrealistas: Os moderadores geralmente precisam revisar centenas de peças de conteúdo por hora. Esse ritmo incessante não deixa tempo para processar o material perturbador que viram, forçando-os a reprimir suas emoções. O foco na quantidade em detrimento da qualidade não afeta apenas a precisão da moderação, mas também exacerba o ônus psicológico do trabalho. Como Abrha me disse: “Imagine ter que assistir a um vídeo de alguém sendo morto e depois passar imediatamente para a próxima publicação. Não há tempo para respirar, muito menos para processar o que vimos.”
  • Vigilância constante: Como se o conteúdo em si não fosse estressante o suficiente, os moderadores são constantemente monitorados. Praticamente todas as decisões e, essencialmente, todos os segundos de seu turno são examinados, acrescentando mais uma camada de pressão a um trabalho que já é desgastante. Essa vigilância se estende aos intervalos para ir ao banheiro, ao tempo ocioso entre as tarefas e até mesmo às expressões faciais durante a revisão do conteúdo. Os supervisores monitoram os funcionários por meio de software de rastreamento de computador, câmeras e, em alguns casos, observação física. Eles tendem a prestar atenção nas expressões faciais para avaliar as reações dos funcionários e garantir que eles mantenham um nível de distanciamento ou “profissionalismo” enquanto analisam o conteúdo perturbador. Como resultado, os trabalhadores me disseram que sentiam que não conseguiam nem reagir naturalmente ao conteúdo perturbador que estavam vendo. Os funcionários recebiam uma hora de intervalo por dia para todas as suas necessidades externas (comer, alongar-se, ir ao banheiro). Qualquer tempo adicional dedicado a essas ou outras atividades não relacionadas ao trabalho seria examinado e o tempo seria acrescentado aos seus turnos. Abrha também mencionou que os trabalhadores tinham que colocar seus telefones em armários, isolando-os ainda mais e limitando sua capacidade de se comunicar com o mundo exterior durante seus turnos.

E as repercussões vão além da família: Os amigos se afastam, incapazes de se relacionar com a nova e sombria perspectiva de vida do moderador; as interações sociais se tornam tensas, pois os funcionários lutam para participar de conversas “normais” depois de passar seus dias imersos no pior do comportamento humano.

Em essência, o trauma da moderação de conteúdo remodela toda a dinâmica familiar e as redes sociais, criando um ciclo de isolamento e sofrimento que se estende muito além do indivíduo.

Traumatizando Humanos para Criar Sistemas “Inteligentes”

Talvez a ironia mais cruel seja que estamos traumatizando as pessoas para criar a ilusão de inteligência mecânica. O trauma infligido aos moderadores humanos é justificado pela promessa de futuros sistemas de IA que não exigirão intervenção humana. No entanto, o seu desenvolvimento exige mais trabalho humano e muitas vezes o sacrifício da saúde mental dos trabalhadores.

Além disso, o foco no desenvolvimento da IA ​​desvia frequentemente recursos e atenção da melhoria das condições dos trabalhadores humanos. As empresas investem bilhões em algoritmos de aprendizado de máquina enquanto negligenciam as necessidades básicas de saúde mental de seus moderadores humanos.

A ilusão da IA ​​distancia os usuários da realidade da moderação de conteúdo, assim como a pecuária industrial nos distancia do tratamento de galinhas poedeiras. Esta ignorância voluntária e coletiva permite que a exploração continue sem controle. A narrativa da IA ​​é uma cortina de fumaça que obscurece uma prática trabalhista profundamente antiética que troca o bem-estar humano por uma fachada de progresso tecnológico.

Trabalhadores digitais do mundo, levantem-se!

Perante a exploração e o trauma, os trabalhadores de dados não têm sido passivos. Em todo o mundo, têm tentado sindicalizar-se, mas os seus esforços têm sido frequentemente dificultados por vários intervenientes. No Quênia, os trabalhadores formaram o Sindicato Africano de Moderadores de Conteúdo, um esforço ambicioso para unir trabalhadores de diferentes países africanos.

Mathenge, que também faz parte da liderança do sindicato, disse-me que acredita ter sido demitido do seu papel de líder de equipe devido às suas atividades sindicais. Esta retaliação enviou uma mensagem assustadora a outros trabalhadores que consideravam se organizar.

A luta pelos direitos dos trabalhadores ganhou recentemente uma força jurídica significativa. Em 20 de janeiro, um tribunal queniano decidiu que a Meta poderia ser processada no país por demitir dezenas de moderadores de conteúdo por meio de sua contratada, Sama. O tribunal manteve decisões anteriores de que a Meta poderia ser julgada por estas demissões e poderia ser processada no Quênia por possíveis más condições de trabalho.

A última decisão tem implicações potencialmente de longo alcance na forma como a gigante da tecnologia trabalha com os seus moderadores de conteúdo em todo o mundo. Também marca um avanço significativo na batalha contínua pelo tratamento justo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores de dados.

Os obstáculos continuam além do nível da empresa. As organizações empregam táticas de combate aos sindicatos, muitas vezes despedindo trabalhadores que fazem campanha pela sindicalização, disse Mathenge. Durante conversas com trabalhadores, jornalistas e representantes da sociedade civil no espaço de trabalho digital queniano, surgiram rumores de altos funcionários do governo exigindo subornos para registar formalmente o sindicato, acrescentando outra camada de complexidade ao processo de sindicalização.

Talvez o mais bizarro, de acordo com um funcionário da organização cívica liderada por jovens Siasa Place, quando os trabalhadores no Quênia tentaram formar seu próprio sindicato, eles foram instruídos a se juntar ao sindicato dos correios e telecomunicações, uma sugestão que ignora as grandes diferenças entre essas indústrias e os desafios únicos enfrentados pelos trabalhadores de dados de hoje.

Apesar desses contratempos, os trabalhadores continuaram a encontrar maneiras inovadoras de se organizar e defender seus direitos. Okinyi, junto com Mathenge e Kings, formaram a Techworker Community Africa, uma organização não governamental focada em fazer lobby contra práticas tecnológicas prejudiciais, como exploração de mão de obra.

Outras organizações também se apresentaram para ajudar os trabalhadores, como a Siasa Place, e advogados de direitos digitais como Mercy Mutemi fizeram uma petição ao parlamento queniano para investigar as condições de trabalho em empresas de IA.

Um caminho para IA ética e práticas trabalhistas justas

Protocolos de saúde mental em todo o setor

Precisamos de uma abordagem abrangente e em todo o setor para suporte à saúde mental. Com base em minha pesquisa e conversas com trabalhadores, proponho uma abordagem multifacetada não oferecida pelos sistemas de suporte existentes.

Muitos programas empresariais existentes são frequentemente “programas de bem-estar” superficiais que não abordam o trauma profundo vivenciado pelos trabalhadores de dados. Eles podem incluir sessões ocasionais em grupo ou acesso a serviços gerais de aconselhamento, mas geralmente são insuficientes e não personalizados.

Minha abordagem proposta inclui sessões obrigatórias e regulares de aconselhamento com terapeutas treinados especificamente em traumas relacionados ao trabalho de dados. Além disso, as empresas devem implementar check-ins regulares de saúde mental, fornecer acesso a suporte de crise 24 horas por dia, 7 dias por semana, e oferecer serviços de terapia de longo prazo, que estão amplamente ausentes nas configurações atuais.

Fundamentalmente, esses serviços devem ser culturalmente competentes, reconhecendo as diversas origens dos trabalhadores de dados globalmente. Este é um afastamento significativo da abordagem atual de tamanho único que muitas vezes deixa de considerar os contextos culturais dos trabalhadores em lugares como Nairóbi, Manila ou Bogotá. O sistema proposto ofereceria suporte nos idiomas nativos dos trabalhadores e seria sensível às nuances culturais que cercam a saúde mental — aspectos extremamente ausentes em muitos programas existentes.

Além disso, diferentemente do sistema atual, onde o suporte à saúde mental geralmente termina com o emprego, esta nova abordagem estenderia o suporte além da permanência no trabalho, reconhecendo os impactos duradouros deste tipo de ocupação. Esta abordagem abrangente, de longo prazo e culturalmente sensível, representa uma mudança fundamental do suporte simbólico e muitas vezes ineficaz à saúde mental oferecido aos trabalhadores de dados atualmente.

Implementação do “Trauma Cap”

Assim como temos limites de exposição à radiação para trabalhadores nucleares, precisamos de limites de exposição ao trauma para trabalhadores de dados. Este “trauma cap” estabeleceria limites rígidos sobre a quantidade e o tipo de conteúdo perturbador ao qual um trabalhador pode ser exposto dentro de um determinado período de tempo.

A implementação poderia envolver a rotação de trabalhadores entre conteúdo de alto e baixo impacto, pausas obrigatórias após exposição a material particularmente traumático, limites em dias consecutivos de trabalho com conteúdo perturbador e a alocação de “licença para trauma” anual para recuperação da saúde mental.

Precisamos de um sistema que rastreie não apenas a quantidade de conteúdo revisado, mas um que leve em conta o impacto emocional. Por exemplo, um vídeo de violência extrema deve contar mais para o limite de um trabalhador do que uma postagem de spam.

Órgão de supervisão independente

A autorregulamentação por empresas de tecnologia provou ser insuficiente; é essencialmente confiar o galinheiro a um chacal. Precisamos de um órgão independente com o poder de auditar, aplicar padrões e impor penalidades quando necessário.

Este órgão de supervisão deve consistir em especialistas em ética, ex-trabalhadores de dados, profissionais de saúde mental e especialistas em direitos humanos. Ele deve ter autoridade para conduzir inspeções não anunciadas de instalações de trabalho de dados, definir e aplicar padrões de toda a indústria para condições de trabalho e suporte de saúde mental, e fornecer um canal seguro para os trabalhadores relatarem violações sem medo de retaliação. Fundamentalmente, qualquer órgão de supervisão deve incluir as vozes de atuais e ex-trabalhadores de dados que realmente entendam os desafios desse trabalho.

O papel dos consumidores e do público na demanda por mudanças

Embora as reformas do setor e a supervisão regulatória sejam cruciais, o poder da pressão pública não pode ser exagerado. Como consumidores de conteúdo digital e participantes de espaços online, todos nós temos um papel a desempenhar na demanda por práticas mais éticas. Isso envolve consumo informado, educando-nos sobre o custo humano por trás da moderação de conteúdo.

Antes de compartilhar conteúdo, especialmente material potencialmente perturbador, devemos considerar o moderador que pode ter que revisá-lo. Essa conscientização pode influenciar nossas decisões sobre o que postamos ou compartilhamos. Devemos exigir transparência das empresas de tecnologia sobre suas práticas de moderação de conteúdo.

Podemos usar as próprias plataformas das empresas para responsabilizá-las, fazendo perguntas públicas sobre as condições dos trabalhadores e o suporte à saúde mental. Devemos apoiar as empresas que priorizam práticas trabalhistas éticas e considerar boicotar aquelas que não o fazem.

Além disso, à medida que as ferramentas de IA se tornam cada vez mais prevalentes em nosso cenário digital, também devemos nos educar sobre os custos ocultos por trás dessas tecnologias aparentemente milagrosas. Ferramentas como ChatGPT e DALL-E são o produto de imenso trabalho humano e compromissos éticos.

Esses sistemas de IA são construídos nas costas de inúmeros indivíduos invisíveis: moderadores de conteúdo expostos a material traumático, rotuladores de dados trabalhando longas horas por baixos salários e artistas cujos trabalhos criativos foram explorados sem consentimento ou compensação. Além do custo humano impressionante, o pedágio ambiental dessas tecnologias é alarmante e frequentemente esquecido.

Do consumo massivo de energia dos data centers às montanhas de lixo eletrônico geradas, a pegada ecológica da IA ​​é uma questão crítica que exige nossa atenção e ação imediatas. Ao entender essas realidades, podemos fazer escolhas mais informadas sobre as ferramentas de IA que usamos e defender uma compensação justa e o reconhecimento do trabalho humano que as torna possíveis.

A ação política é igualmente importante. Precisamos defender uma legislação que proteja os trabalhadores de dados, instar nossos representantes políticos a regular a indústria de tecnologia e apoiar candidatos políticos que priorizem a ética digital e práticas trabalhistas justas.

É crucial espalhar a conscientização sobre as realidades do trabalho de dados por meio do uso de nossas plataformas para que possamos informar as pessoas sobre as histórias de pessoas como Abrha, Kings e Ranta e encorajar discussões sobre as implicações éticas do nosso consumo digital.

Podemos acompanhar e apoiar organizações como a African Content Moderators Union e ONGs focadas em direitos trabalhistas digitais e amplificar as vozes dos trabalhadores de dados falando sobre suas experiências para ajudar a trazer mudanças significativas.

A maioria das pessoas não tem ideia do que acontece por trás de seus feeds de mídia social higienizados e das ferramentas de IA que usam diariamente. Se soubessem, acredito que exigiriam mudanças. O apoio público é necessário para garantir que as vozes dos trabalhadores de dados sejam ouvidas.

Ao implementar essas soluções e aproveitar o poder da demanda pública, podemos trabalhar em direção a um futuro em que o mundo digital que desfrutamos não venha às custas da dignidade humana e da saúde mental. É um caminho desafiador, mas que devemos percorrer se quisermos criar um ecossistema digital verdadeiramente ético.

Este artigo é baseado em entrevistas conduzidas com trabalhadores de dados do Quênia, Síria, Líbano, Alemanha, Colômbia, Venezuela e Brasil como parte do projeto Data Workers Inquiry, um projeto de pesquisa de ação comunitária nascido de uma colaboração entre o Distributed Artificial Intelligence Research Institute e o Weizenbaum Institute.

Leia sobre o potencial bélico da I.A. https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/04/inteligencia-artificial.html