Quando um país quebra?
Não estamos em insolvência externa, tampouco sob risco iminente de
hiperinflação
Nelson Barbosa, Folha de S.
Paulo
A última
besteira presidencial reacendeu uma polêmica: quando um país quebra? Há
pelo menos duas visões em economia: uma consensual, outra controversa.
Começando pelo
consenso, um país quebra quando não consegue pagar seus compromissos em moeda
estrangeira via mecanismos de mercado. Traduzindo do economês, quando faltam
dólares e o governo é obrigado a parar de pagar sua dívida externa ou
recorrer a empréstimos emergenciais no FMI e em outros governos.
O Brasil já
“quebrou” várias vezes no sentido acima. Os episódios mais recentes foram a
crise da dívida externa dos anos 1980 (fim da ditadura militar) e as crises
cambiais do governo Fernando Henrique (fim
do governo tucano), mas não diga isso a alguns colegas de bico comprido que
eles ficam ofendidos.
O segundo
tipo de “quebra” acontece em moeda doméstica e é mais controverso. Quando o
governo não consegue rolar sua dívida lançando novos títulos, ele tem que pagar
os vencimentos emitindo moeda. Se a emissão for excessiva, pode haver aumento
explosivo de preços, o que nós, economistas, chamamos de hiperinflação,
acabando com o valor da moeda.
A
hiperinflação “quebra” o governo pela perda de padrão monetário, tornando
necessário criar outra unidade de conta e meio de pagamento, geralmente
ancorada em ativo real (ouro e prata no passado) ou externo (dólar ou euro
hoje).
Agora a
controvérsia: se considerarmos Tesouro e Banco Central como uma coisa só, por
definição o governo não quebra. É sempre possível pagar todo e qualquer
vencimento de dívida interna emitindo moeda. Alguns jovens (e velhos)
economistas redescobriram esse truísmo contábil para dizer que o governo nunca
quebra. Estão corretos do ponto de vista contábil, errados do ponto de vista
econômico.
Se a emissão
de moeda for excessiva, o valor da moeda cairá, os preços explodirão e o Estado
perderá capacidade de emissão monetária. O Brasil quase viveu isso no fim do governo Sarney,
quando a inflação chegou a 84% ao mês e o Plano Collor evitou a hiperinflação
com congelamento de recursos nos bancos. Foi necessário ter âncora cambial e
endividamento externo para sair do atoleiro inflacionário (perguntem ao
“Larida”).
Mas como saber
se a emissão de moeda é excessiva? Quem diz é a sociedade. Podem ocorrer
episódios de estagnação, com inflação baixa e taxa de juro zero, em que o
governo emite grande quantidade de moeda sem causar inflação.
Na “armadilha
da liquidez”, as pessoas preferem entesourar moeda em vez de títulos porque,
com juro zero, há perspectiva de perda de capital se e quando os juros subirem.
Keynes explicou a questão há quase 90 anos, mas ela voltou a ser relevante
recentemente (o nome atual é “estagnação secular”).
O fato de
hiperinflação ser altamente improvável no mundo de hoje levou alguns colegas
mais empolgados a decretar que inflação não é nunca e em nenhum lugar resultado
de emissão monetária excessiva. Ironicamente, para rebater Friedman, adotam a
arrogância de Friedman, estando igualmente equivocados.
Emissão
excessiva de moeda é uma das causas possíveis de inflação, não a única causa
possível.
Hiperinflação
“quebra”, sim, um país, mas isso não quer dizer que hiperinflação é coisa
recorrente ou ameaça iminente. Bom senso e pragmatismo ajudam a discernir
custos, benefícios e riscos.
Voltando à
frase de Bolsonaro, o Brasil não está quebrado. Não estamos em insolvência
externa, tampouco sob risco iminente de hiperinflação. Mas o presidente merece
um desconto, pois ninguém tem uma equipe econômica como a atual impunemente.
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