O olhar do artista
Cícero Belmar
Não se sinta a
última das criaturas caso desconheça o que é Land Art. O termo, pouco usual,
ganhou as páginas recentemente quando a artista plástica Juliana Notari
compartilhou fotos no Instagram da escultura de sua autoria cujo título é Diva.
Uma vagina de 33 metros, esculpida a partir de uma fenda escavada numa montanha
da Usina de Arte, na Zona da Mata Sul de Pernambuco.
O mundo veio abaixo por
causa da obra de arte. O buraco do terreno foi recoberto por cimento armado e
resina vermelha, deixando de ser mera fenda para se tornar a representação
artística da genitália feminina. Para alegria e satisfação dos inocentes, ficou
de bom gosto, mas os falsos moralistas se escandalizaram.
Machistas de todo o mundo
se uniram quando as fotos de um vermelho vivo escorrendo no chão apareceram nas
redes sociais. Do Arroio ao Chuí; do Reino Unido (através do jornal The
Guardian) aos Estados Unidos (CNN); da Europa (agência de notícias Reuters) à
Índia (Wion News) e China (Yahoo chinês).
Tudo o que a artista
plástica Juliana Notari queria era “representar uma vulva que sangra”, para
falar de “feridas coloniais” e “traumas de violência”. Mas o olhar da maldade
via ali, apenas, uma “coisa proibida”, uma agressão à moral e aos bons
costumes.
Ah, sim, Land Art foi um
movimento artístico surgido nos anos 1970 baseado na fusão na natureza com a
arte. O artista da Land Art aproveita detalhes da natureza, faz pequenas
intervenções e transforma aquilo em arte. Como fez a autora da Diva.
Juliana Notari lembra-me Zé
Bezerra. A diferença é que ela é moderna e chique; ele, um artista popular.
Tenho grande admiração. É um ex-trabalhador rural do Vale do Catimbau,
município de Buíque, no Agreste de Pernambuco. Zé Bezerra tem cerca de 70 anos
e mora num casebre de taipa. Não permite que se mexa na fauna ou flora da
região.
Ao conhecê-lo, conversamos
em frente a casa, debaixo de frondoso cajueiro. Zé Bezerra acha que todo
artista vê a vida com “olhar diferenciado” e que ele mesmo “virou” um quando
percebeu que “enxergava” coisas que as outras pessoas não viam. No meio da
conversa, ele me surpreendeu ao perguntar se eu estava vendo, no galho daquele
cajueiro, a imagem de “um cavalo”.
Claro que não. “Você é quem
não está enxergando; precisa afinar o olhar. Se eu der um talho aqui, outro
ali, e mais dois aqui e aqui, parece um bicho de cabeça para baixo”. Claro,
havia um cavalo.
Adquiri duas peças de sua
autoria. Ambas feitas com pedaços de galhos de árvore, que ele encontrou no
chão. Uma delas é “uma ave”, feita a partir de um graveto sinuoso. Ele o
lixou com cuidado e, sem tirar as características do galho, formatou um pescoço
e um bico. Virou um elegante cisne adelgaçado.
A outra peça é um pequeno
tronco que Zé Bezerra manteve a cobertura crespa e enegrecida, mas esculpiu a
cabeça e o rabo triangulares de um réptil. “Virou” a representação de um
lagarto.
Isso é Lang Art. Aprendi
com a arte de Zé Bezerra que, além do lado estético, a coisa da representação
nos leva a uma identidade com a obra. As peças têm, sobretudo, um componente
lúdico, uma “brincadeira”, pois o artista nos propõe ver através do seu olhar.
Juliana Notari foi quem
primeiro viu que a fenda poderia ser uma vulva. Zé Bezerra viu, nos galhos
secos, os animais.
Nós, arfantes do cotidiano,
estamos sempre com pressa, atrasados, atarefados. Acabamos criando uma certa
indiferença no olhar. Ao contrário dos artistas, estamos com o olhar
endurecido. Vivemos no automático e vemos sem emoção.
Perdemos o melhor da vida.
Os artistas servem para nos dizer que o extraordinário da vida está na
simplicidade do existir.
*Cícero Belmar é
escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças
de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana
de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário