O
petróleo no limiar de uma nova época
Haroldo Lima, no Blog do Renato
Observadores da
evolução mundial têm enfatizado que não estamos em uma época de mudanças, mas
ante a mudança de uma época. Diversas alterações justificam esta inferência,
entre as quais três são decisivas:
1)
a substituição do atual polo de poder no mundo, situado no eixo-Atlântico,
tendo à frente os Estados Unidos, por um novo polo, situado no eixo-Pacífico,
encabeçado pela China;
2)
a superação do modelo energético atual baseado no combustível fóssil e a
emergência de outro modelo, protagonizado por “fontes alternativas” não
produtoras de gases poluentes;
3)a
aproximação inexorável de uma nova onda tecnológica, chamada por uns de Quarta
Revolução Industrial, simplificadamente dita por outros como a da tecnologia
5G, mas que abarca a internet das coisas, a robótica, os novos materiais, a
impressão em 3 D, a inteligência artificial.
O
setor petrolífero sofre as injunções de todas essas modificações, mas
especialmente da segunda delas, a da superação inexorável da hegemonia do
combustível fóssil na matriz energética mundial. A emergência do coronavírus
agravou agudamente os problemas que desafiam o setor petrolífero no mundo.
Desde
as últimas décadas do século XIX até hoje, passando, soberbo, por todo o século
XX, o combustível de origem fóssil predominou na esfera energética no mundo de
maneira retumbante. Sua presença era fundamental em amplo espectro de produtos,
desde os combustíveis propriamente ditos – diesel, gasolina, querosene – até o
estoque variado dos petroquímicos, chegando aos fertilizantes, passando pelos
lubrificantes. O gigantesco poder que desfrutava decorria da capacidade de
movimentar uma frota de veículos, de diferentes tipos e tamanhos, em número
superior a um bilhão de unidades espalhadas pelo mundo. Uma enormidade.
O
irreversível avanço tecnológico e a generalização da consciência ecológica
estão conduzindo esse predomínio a um ponto de inflexão. O carro elétrico, o
híbrido e o movido a hidrogênio, crescem no mundo, enquanto os carros
tradicionais estão em declínio. China, Estados Unidos, Japão e outros grandes
mercados já disputam a dianteira desse processo de substituição de carros
convencionais pelos novos. A Noruega planeja, a partir de 2025, só vender
carros elétricos.
Por
aí se vê que o declínio do consumo dos derivados do petróleo já era
irrefreável. Mas administrável e previsível. A chegada do coronavírus
introduziu uma anomalia no processo, precipitou queda abrupta e profunda na
demanda já declinante. Cortes substanciais na produção do óleo tornaram-se
imperiosos.
Duas
reuniões foram realizadas para tratar dessa questão, uma da OPEP+, no dia 9 de
abril, a outra no dia seguinte, dos ministros de energia do G 20. É proveitoso
examinarmos com mais cuidado o quadro geral conflituoso que essas duas reuniões
enfrentaram
Desde
que a Organização dos Países Produtores de Petróleo foi fundada em 1960, até os
dias de hoje, foi ela quem centralizou as decisões mais importantes do setor
petrolífero. Ela surgiu da iniciativa de cinco grandes produtores de petróleo,
mas hoje já engloba quatorze. A liderança do órgão sempre foi da Arábia
Saudita, maior exportadora mundial do óleo.
A
Rússia e alguns de seus aliados não integravam a OPEP, embora fossem grandes
exportadores. Isto forçou o surgimento de uma articulação mais ampla, surgindo
assim, em 2016, a OPEP+, da qual participam os quatorze membros da OPEP e mais
dez independentes liderados pela Rússia. A OPEP+ passou a ser uma espécie de
instância máxima na atualidade para a regulação internacional do mercado do
petróleo.
Sucede
que a produção de petróleo no mundo experimentou uma grande transformação nas
últimas duas décadas do século XXI. Os Estados Unidos desenvolveram a
tecnologia do fraturamento hidráulico (fracking) de uma rocha chamada folhelho,
ou do xisto fino argiloso, com o que conseguiram extrair gás natural (shale
gas) e petróleo (shale oil). A atividade exploratória americana teve acesso a
enormes reservatórios até então inaccessíveis.
Procedeu-se
ao que se tem chamado de “revolução do shale”, ou “revolução americana do
xisto”, com riscos ambientais expressivos, ligados ao consumo de água,
contaminação do solo, de águas subterrâneas e a fenômenos sísmicos. O custo do
petróleo produzido por esse método era elevado e o empreendimento só se
sustentaria se o produto final extraído tivesse alto preço de venda.
Eis
que, no período referido, a cotação do petróleo esteve em alta e disparou em
2011. A “revolução do shale” conheceu um “boom”. Em 5 anos, de 2009 a 2014, os
Estados Unidos superaram a Rússia e a Arábia Saudita e passaram a ser o maior produtor de petróleo do mundo!
A virada se deu em agosto de 2018, quando a produção estadunidense chegou a
11,34 milhões de b/d. A Arábia Saudita ficou em segundo lugar e a Rússia na
terceira posição. Daí por diante, a geopolítica do petróleo mudou, passou
a depender, basicamente, desses três grandes atores, Arábia Saudita, Rússia e
Estados Unidos.
No
sentido contrário, quando entre 2014 e 2016 o preço do petróleo caiu, muitas
empresas americanas ligadas ao “shale” faliram, por não conseguirem viabilidade
econômica. No período, investimentos em pesquisa e desenvolvimento foram
feitos, e o breakeven (ponto
de equilíbrio) foi diminuído em muitos campos, sendo este o valor a partir do
qual a produção torna-se economicamente viável. O fato incontroverso é que os
Estados Unidos só galgaram a posição de primeiro produtor de petróleo do mundo
devido aos altos preços do óleo na época.
No
início de 2020, quando o coronavírus apareceu na China, o consumo de petróleo
regrediu de imediato. A Arábia Saudita cogitou em corte de 1,5 milhões de
barris diários, 3,6% da produção mundial. Para manter um preço razoavelmente
alto, os produtores de petróleo barato diminuiriam sua produção. A Rússia não
concordou. A Arábia Saudita tomou então uma posição inesperada, a de aumentar
sua produção e dar facilidades para a compra do seu óleo. O Brent despencou de
US$ 45/b para US$31,52/b, as bolsas do mundo estremeceram. Era 9 de março
de 2020.
Setores
têm se referido a esse acontecimento como decorrente de uma espécie de
quebra-de-braço entre a Arábia Saudita e a Rússia. Mas a contradição entre
esses dois entes, decorre da situação peculiar do “shale” americano. Do ponto
de vista da Rússia, o corte da produção dos países da OPEP+, como proposto
pelos sauditas, iria beneficiar, mais uma vez, ao petróleo caro oriundo do
“shale” americano, o que não interessava à Rússia, mas tampouco à Arábia
Saudita, nem a ninguém da OPEP+. Seria manter a competitividade do “shale”
americano na base de segurar preços artificialmente altos do
petróleo. Um representante da petroleira russa Rosneft, Mikhail
Leontyev, referiu-se ao acordo proposto pela Arábia Saudita como “masoquista”.
Disse: “Estaríamos renunciando a nossos próprios mercados, tirando o petróleo
barato árabe e russo para deixar espaço para o caro petróleo dos Estados
Unidos”. (BBC News, 09/03/2020).
É
nesse quadro que ocorrem as duas reuniões acima referidas, a da OPEP+ e a dos
ministros de energia do G20.
Nos
dias anteriores aos encontros, em função do avanço do coronavírus, a queda da
demanda do petróleo nunca fora tão grande. Falava-se em retração de 20 milhões
de b/d, que poderia chegar a 30 ou 35 milhões. Arábia Saudita e Rússia
manifestavam-se favoráveis a grandes cortes na produção, desde que os EUA
também os fizessem. A expectativa era de um corte mínimo de 10 milhões de b/d,
que poderia chegar a uns 15 milhões.
A
conclusão da OPEP+ foi anunciada como um acordo “histórico”, corte de 10
milhões de b/d, de saída fragilizado pela retirada da reunião de um de seus
membros, o México.
Ante
a insistência da Rússia por medidas concretas dos EUA, divulgou-se que Trump
dissera ser o corte americano “automático”, pois os preços baixos já colocariam
o “xisto em apuros”.
Ao
final, Mohammad Sanusi, secretário geral da OPEP, expressou seu pensamento
sobre o momento vivido pela indústria petrolífera: “Nossa indústria está com
hemorragia, não fomos capazes ainda de conter o sangramento”.
Esperava-se
que a reunião dos ministros de energia do dia seguinte trouxesse um alento,
algo como um acréscimo de 5 milhões de barris nos cortes diários. Tal não se
deu e o representante canadense resumiu tudo: “não discutimos números”, ou
seja, discutiram intenções.
Dez
dias depois, no fechamento do mercado de contratos futuros do WTI, nos EUA, um
fato insólito ocorreu: o preço do barril para entrega em maio de 2020 fechou
com cotação negativa, de US$ -13,10. Desastre nunca visto.
Na
continuidade, surgiram os primeiros sinais de retomada e a China, na linha de
frente, faz as primeiras grandes compras do hidrocarboneto depois da pandemia.
Segundo a Bloomberg, o consumo do petróleo no mercado chinês, após ter caído
20%, já se aproxima do nível pré-pandemia. O preço do WTI, um mês após ter
“valores negativos”, foi aos US$32/b, o Brent ultrapassou US$34.
Pode-se
dizer que no atual momento o mercado petrolífero se caracteriza pela
imprevisibilidade, volatilidade, tendência a oscilar em torno dos US$30/b,
dependência da continuidade das compras da China e, especialmente, depende da
descoberta do controle do coronavírus (vacina ou remédio).
Haroldo
Lima – engenheiro, foi deputado federal e Diretor Geral da Agência Nacional do
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.
A insensibilidade tem limites https://bit.ly/2XxXGFo
Nenhum comentário:
Postar um comentário