Um outro
forró
Cícero
Belmar
Começo o dia com a firme decisão de jogar fora umas tralhas,
papéis avulsos que estão juntando ácaro e revistas que não me servirão sequer
para pesquisa. Antes de descartá-los, checo os objetos e me deparo com uma
agenda de 2019. Convenço-me de que ela não tem mais utilidade alguma e por
isso, rasgarei as páginas. Mas, no último instante, me veio a curiosidade de
saber (relembrar) o que estava fazendo há exatamente um ano.
Agendas às vezes são provas
documentais, mas também são recados que mandamos para o futuro. O 15 de junho
de 2019 foi um sábado, sol aberto. Li o que estava escrito no espaço reservado
para aquele dia. Duas frases: “Comprar passagem de ida e volta”; “Ir ao
supermercado: o vinho de papai e o chá de mamãe”.
Eu teria que aproveitar a folga
daquele sábado porque vinha de uma semana bastante corrida. Escrevi aquilo na
agenda, com antecedência, para grifar as tarefas que seriam mais importantes e
intransferíveis. Afinal, não tivera tempo, durante os dias úteis daquela
semana, para fazer coisas além da rotina. Lembro-me que fiz exatamente como o
previsto, aproveitando o sábado 15 livre.
Comprar as passagens, o vinho e
o chá eram os meus preparativos para a viagem que eu faria por causa dos
festejos de São João. Todo nordestino que mora na capital do seu Estado e tem
família no interior, como eu, faz a viagem de volta às origens nesse período do
ano. As comemorações juninas à beira de uma fogueira, com muito forró e
animação, é a reafirmação do nosso sentimento de pertencimento.
(Abrindo parênteses: O vinho do
Porto é a bebida predileta do meu pai. Aos 90 anos, ele mantém o hábito de
tomar um calicezinho antes do almoço; minha mãe, também aos 90, ama os
chazinhos aromatizados e frutados antes de dormir. Sempre que vou revê-los,
gosto de mimá-los. Compro o que encontro de melhor, vale a pena vê-los com
sorrisos de crianças, quando recebem os presentinhos.)
Viajei no dia 20, passei o final
de semana seguinte em Bodocó, no Sertão do Araripe, a 650 quilômetros do
Recife. O ponto alto dos festejos juninos é no São João, entre 23 e 24 de
junho. Cada família faz sua comemoração particular, com uma espécie de ceia
regional num dia; mas há também participa de uma festa coletiva no outro dia.
Essa ocorreu na frente da Igreja Matriz, organizada pelo Sesc.
Meu irmão, Herbert Adriano, que
coordena os eventos culturais do Sesc Ler, em Bodocó, estava à frente e
caprichou na quermesse, com barraquinhas que vendiam comidas e bebidas típicas
e deliciosas; também programou as apresentações das quadrilhas juninas,
casamento matuto, desfile da rainha do milho. Foi uma noite leve, poética,
divertida. Tudo tão puro que só existe uma palavra para defini-la com exatidão:
singela.
Tudo isso me veio com a leitura
de um registro na agenda. Os festejos juninos são sempre assim, milho verde
assado e cozinhado, pamonha, canjica, pé-de-moleque, bolos diversos, quentão,
fantasias, forró, muita cultura popular.
Um ano se passou. Quem diria,
meu Deus, que hoje estaríamos vivendo um momento tão diferente? Uma
pandemia que nos tirou das ruas, que impediu os festejos e nos joga no poço das
nostalgias? A viagem é a lembrança.
Este ano, teremos “lives” em
vez de fogueiras. No próximo, quem sabe, sob as bênçãos da vacina, a bandinha
poderá nos tocar um outro forró bem mais animado.
*Cícero Belmar é escritor
e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e
livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
[Ilustração: João Werner]
Ficar em casa é um desafio https://bit.ly/2zr8M61
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