Ainda estamos aqui, ao contrário do que planejavam os golpistas, diz Lula
Em ato pela democracia e contra o golpismo da extrema-direita, cujo ápice foi o 8 de janeiro de 2023, representantes dos Três Poderes defendem a união contra o autoritarismo
Priscila Lobregatte/Vermelho
“Hoje é dia de dizermos, em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizermos que estamos vivos, e que a democracia está viva, ao contrário do que planejavam os golpistas de 8 de janeiro de 2023”. A fala, feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocorreu durante o ato em defesa da democracia, ocorrido nesta quarta-feira (8) no Palácio do Planalto, com a presença dos líderes dos Três Poderes.
A cerimônia — cujo objetivo foi reforçar os valores democráticos do país no dia em que se completam dois anos da tentativa de golpe levada a cabo por bolsonaristas — reuniu dezenas de ministros, parlamentares e autoridades, além dos três chefes das Forças Armadas.
Na ocasião, ocorreu ainda a assinatura do decreto que cria o Prêmio Eunice Paiva de Defesa da Democracia, a ser promovido pela Advocacia Geral da União (AGU).
Após o ato, Lula desceu a rampa do Palácio, juntamente com representantes do Executivo, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Por fim, acompanhados de outras dezenas de autoridades e na companhia de uma multidão no entorno, Lula e convidados deram as mãos e abraçaram a democracia, simbolizada pela própria palavra escrita em flores no meio da Praça dos Três Poderes.
Ainda estamos aqui
Ao salientar que “ainda estamos aqui”, Lula fez uma referência ao filme Ainda Estou Aqui, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles, que conta a história da luta de Eunice Paiva — vivida pela premiada Fernanda Torres — para descobrir o paradeiro de seu marido, o então deputado Rubens Paiva — interpretado por Selton Melo —, assassinado pelos militares. Eunice acabou se tornando uma referência na luta contra a ditadura e pelos direitos humanos.
Em uma fala de improviso, Lula declarou não ser possível imaginar uma melhor forma de governança do que o sistema democrático e completou: “A democracia é tão boa que permitiu que um torneiro mecânico, sem diploma universitário, chegasse à Presidência da República na primeira alternância concreta de poder neste país”.
Lula lembrou as várias vezes em que sua vida esteve em risco — quando enfrentou a fome na infância, um câncer, os problemas em um voo no México e os reflexos de seu recente tombo —, salientando os planos dos golpistas para matá-lo.
“Escapei da tentativa, junto com o Xandão e com o Alckmin, de um atentado de um bando de irresponsáveis, aloprados, que achavam que não precisavam deixar a presidência após o resultado eleitoral e que seria fácil tomar o poder. Eu fico imaginando: se tivesse dado certo a tentativa de golpe deles, o que iria acontecer neste país?”, disse.
Antes de iniciar seu discurso escrito, o presidente também mandou um recado às Forças Armadas. Ao agradecer ao ministro da Defesa, José Múcio, por levar ao ato os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica, Lula disse que a presença dos militares era uma forma de mostrar ao país “que é possível a gente construir as Forças Armadas com o propósito de defender a soberania nacional; os nossos 16 mil km de fronteira seca; os nossos 5,5 milhões de km2 de mar sob a responsabilidade do Brasil; a maior floresta do mundo; 12% das águas doces; as riquezas de nossos subsolo, solo e fundo do mar e, sobretudo, a soberania do povo brasileiro”.
Democracia está viva
Ao partir para seu discurso escrito, o presidente Lula pontuou: “Estamos aqui para dizer, em alto e bom som: ditadura nunca mais; democracia, sempre! Se estamos aqui, é porque a democracia venceu; caso contrário, muitos de nós talvez estivéssemos presos, exilados ou mortos, como aconteceu no passado. Não permitiremos que aconteça outra vez”.
Usando essa mesma construção discursiva, Lula continuou dizendo que “se hoje estamos aqui para renovar a nossa fé no diálogo entre os opostos, na harmonia entre os Três Poderes e no cumprimento da Constituição, é porque a democracia venceu. Do contrário, a truculência tomaria o lugar do diálogo e os poderes seriam um só, concentrados nas mãos dos fascistas. A Constituição seria rasgada e os direitos humanos, suprimidos”.
Em outra alusão à extrema direita, dessa vez ao negacionismo e à disseminação de mentiras, Lula salientou: “Se hoje podemos nos guiar pela ciência e vacinar as nossas crianças é porque a democracia venceu. Caso contrário, doenças já erradicadas, como o sarampo e a paralisia infantil, estariam de volta e novas pandemias repetiriam a tragédia da Covid-19, quando centenas de milhares de pessoas morreram pela demora na compra de vacinas e pelas fake news contra os imunizantes”.
Lula também se referiu às obras de arte atacadas pelos golpistas e que foram reconstruídas e entregues hoje. “Se essas obras de arte estão aqui de volta, restauradas com esmero por homens e mulheres que a elas dedicaram mais de 1.760 horas de suas vidas, é porque a democracia venceu. Caso contrário, estariam destruídas para sempre e tantas outras obras inestimáveis teriam o mesmo destino da tela de Di Cavalcanti, vítima do ódio daqueles que sabem que a arte e a cultura carregam a história e a memória de um povo. A arte e a cultura que as ditaduras odeiam, a história e a memória que sempre tentaram apagar”.
Usando a expressão-símbolo da luta por memória, verdade e justiça em relação aos crimes do regime militar — “para que ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça” —, o presidente seguiu afirmando que “se hoje podemos contar histórias e ver as histórias livremente contadas no cinema, no teatro, na música e na literatura é porque a democracia venceu. Caso contrário, a arte teria de ser submetida a censores que nos proibiriam de ver, ouvir e ler tudo aquilo que julgassem subversivo”.
Em alusão à música “O bêbado e o equilibrista” — de Aldir Blanc e João Bosco, símbolo da luta pela anistia aos perseguidos pela ditadura — e a Eunice Paiva, o presidente destacou: “Hoje estamos aqui para garantir que ninguém seja morto ou desaparecido em razão da causa que defende. Estamos aqui em nome daqueles e daquelas que não podem mais estar, estamos aqui em nome de todas as Marias, Clarices e Eunices”.
Democracia plena
Ao mesmo tempo em que exortou a democracia, o presidente disse que se ela é para poucos, não é uma democracia plena. E defendeu que a democracia “será sempre uma obra em construção”.
Nesse sentido, enfatizou que “a democracia só será plena quando todas e todos os brasileiros, sem exceção, tiverem acesso à alimentação de qualidade, saúde, educação, segurança, cultura e lazer. Quando tiverem as mesmas oportunidades de crescer e prosperar e os mesmos direitos de sonharem e serem felizes”.
Lula também colocou que “a democracia só será plena quando todos e todas sejam, de fato, iguais perante a lei e a pele negra não seja mais alvo da truculência dos agentes do Estado; quando os povos indígenas tiverem direito à suas terras, cultura e crenças; quando as mulheres conquistarem igualdade de direitos e o direito de estarem onde quiserem sem serem julgadas, agredidas e assassinadas; quando todas as religiões forem respeitadas e viverem em harmonia porque a fé deve unir e não colocar irmãos contra irmãos; quando qualquer pessoa tiver o direito de amar e ser amada por qualquer pessoa sem sofrer nenhum tipo de preconceito, discriminação ou violência. É essa democracia plena, para todos e todas, que queremos construir no Brasil”.
Ao retornar ao 8 de janeiro, o presidente destacou: “Seremos implacáveis contra quaisquer tentativas de golpe. Os responsáveis pelo 8 de janeiro estão sendo investigados e punidos. Ninguém foi ou será preso injustamente. Todos pagarão pelos crimes que cometeram. Todos. Inclusive os que planejaram o assassinato do presidente, do vice-presidente e do presidente do TSE. Ao mesmo tempo, disse que “todos terão amplo direito de defesa e à presunção de inocência”.
Com relação à liberdade de expressão — usada pelos bolsonaristas como desculpa para emitir discursos violentos e preconceituosos —, Lula afirmou: “Defendemos e defenderemos sempre a liberdade de expressão, mas não seremos tolerantes com os discursos de ódio e fake news, que colocam em risco a vida de pessoas, e a incitação à violência contra o Estado de Direito. Seremos intransigentes na defesa da democracia e renovaremos sempre nossa fé inabalável no diálogo, na união, na paz e no amor ao próximo. Seguiremos trabalhando, dia e noite, para a construção de um Brasil mais desenvolvido, mais justo e mais democrático porque a democracia venceu”.
Três Poderes unidos
O discurso do presidente Lula foi antecedido por falas de representantes dos demais poderes. A primeira foi a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que representou a presidência da Câmara.
“Neste data, nos unimos não de uma forma confortável, porque gostaríamos que o 8 de janeiro jamais tivesse existido como horror, como uma manifestação de ódio e de tentativa de destruir não apenas espaços físicos, mas a própria Constituição. Mas, é preciso nos desacomodarmos diante de momentos como aquele para afirmarmos, como poderes, que nunca mais aceitaremos ditaduras”, disse Rosário.
O senador Veneziano Vital do Rego (PMDB-PB), presidente do Senado em exercício, classificou os ataques do 8 de janeiro como “ações absurdas e abjetas”, resultantes de “um processo de meses de narrativas que desejavam o pior para o nosso país, para a cidadania, que seria a volta às arbitrariedades, à ditadura, à tirania, à censura, à tortura e às mortes nos porões. O alvo foi a sociedade brasileira”.
O presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, iniciou seu discurso lendo uma manifestação do presidente Luís Roberto Barroso: “Os atentados do 8 de janeiro foram a face visível de um movimento subterrâneo que articulava um golpe de Estado. Foi a manifestação de um triste sentimento antidemocrático, agravado pela intolerância e pela agressividade. Um desencontro político e espiritual com a índole genuína do povo brasileiro”.
A mensagem de Barroso também apontou que “a maturidade institucional exige a responsabilização por desvios dessa natureza. Ao mesmo tempo, porém, estamos aqui para reiterar os nossos valores democráticos, a nossa crença no pluralismo e no sentimento de fraternidade. Há lugar para todos que queiram participar sob os valores da Constituição”.
Falando por si mesmo, Fachin também lembrou que a Constituição de 1988 “estabeleceu o modo pelo qual se dá a disputa e a alternância do poder: somente pelo voto popular, direto e secreto, como tem sido feito sob a liderança de uma Justiça Eleitoral que é orgulho para o Brasil. O dissenso deve ser acolhido e os resultados respeitados dentro da legalidade constitucional, e é nessas condições que o país deve se desenvolver social e economicamente”.
Por fim, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, salientou que o ataque à nossa democracia não começou no 8 de janeiro. “O processo foi mais sutil, mais gradual. Passamos a viver um clima de desinformação crescente, alimentado por ataques à eficiência das urnas eletrônicas, ao próprio processo eleitoral e, por conseguinte, à nossa Justiça Eleitoral”.
O ministro disse, ainda, que “vimos surgir um nacionalismo exacerbado e anacrônico que, sob o disfarce de combater a corrupção ou defender a segurança nacional, abriu espaço para práticas que atacavam o próprio coração da nossa democracia. Lamentavelmente, a história do Brasil nos mostra que a tentativa de conspirações não foram exceção. Com inquietante regularidade e sob os mais insólitos pretextos, turbulências institucionais impuseram prolongados períodos de exceção ao país”.
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