Antonio Maria, do Recife e do Mundo
As crônicas de Antônio Maria
misturavam humor, crueldade e lirismo, a depender dos dias e da vida, que não
eram iguais, para ele ou para ninguém
Urariano Mota*
O cronista e compositor Antônio Maria nasceu
em 17 de março de 1921. Faleceu em 15 de outubro de1964. Ele foi, é um homem
que todos deveriam ter como um companheiro de jornada e de leitura permanente.
Não fosse ele o compositor de canções eternas como Frevo número 1 ou a linda Manhã de
Carnaval e tantas outras. Não fosse ele o autor de um grito de
amor, “nunca mais vou fazer o que o meu coração pedir, nunca mais ouvir o que o
meu coração mandar”.
Não fosse tal beleza, as suas crônicas deveriam ser lidas todos os dias, como uma lição e dever para educar sensibilidades. Suas crônicas, quase digo, suas mãos, misturavam humor, crueldade e lirismo, a depender dos dias e da vida, que não eram iguais, para ele ou para ninguém. Como neste perfil arguto da cantora Aracy de Almeida:
“Não é bonita, sabe disso e não luta contra isso. Não usa, no rosto, baton, rouge ou qualquer coisa, que não seja água e sabão. Ultimamente corta o cabelo de um jeito que a torna muito parecida com Castro Alves… Faz de cada música um caso pessoal e entrega-se às canções do seu repertório como quem se dá um destino. Não sabe chorar e não se lembra de quando chorou pela última vez. Mas a quota de amargura que traz no coração, extravasa nos versos tristes de Noel: ‘Quem é que já sofreu mais do que eu?/ Quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi o prazer que Deus me deu’… e vai por aí, sem saber para onde, ao frio da noite, na espera de cada sol, quando o sono chega, dá-lhe a mão e a leva para casa”.
Ou aqui, dias antes de morrer:
“Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca…
Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida”.
Ou então nestas considerações que ele escreveu sobre o sono:
“Ah, que intensos ciúmes, no passado e no futuro, sobre a nudez da amada que dorme! Só você a viu, só você a verá assim tão bela!;;;
Nas mulheres que dormem vestidas há sempre, por menor que seja, um sentimento de desconfiança.
A amada tem sob os cílios a sombra suave das nuvens. Seu sossego é o de quem vai ser flor, após o último vício e a última esperança.
Um homem e uma mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.
Mas, já que é isso impossível, que ao menos chova, a noite inteira, sobre os telhados dos amantes.“
E finalmente aqui, ao lembrar o carnaval na sua infância:
“Muitas vezes, de madrugada, o menino acordava com o clarim e as vozes de um bloco. Eles estavam voltando. O canto que eles entoavam se chamava ‘de regresso’. Não sei de lembrança que me comova tão profundamente. Não sei de vontade igual a esta que estou sentindo, de ser o menino que acordava de madrugada, com as vozes de metais e as vozes humanas daquele Carnaval liricamente subversivo”.
O carnaval da infância de Antônio Maria e nossa, inesquecível.
*Jornalista, escritor
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