O PARAÍSO DE LUCAS
SANTTANA
Novo
álbum do músico baiano reflete sobre a biosfera, temas ambientais e a vida na
Terra, o único planeta habitável conhecido por nós
LEONARDO VILA NOVA/revista Continente
“Sim, sim, sim/ O paraíso já é aqui.” Mesmo
diante desta Terra que vem sendo degradada e malcuidada pela humanidade, e de
projeções bastante pessimistas (ou realistas?) quanto ao nosso futuro como
seres do único planeta (ainda) habitável conhecido, esses versos de Lucas
Santtana teimam em alertar que, ainda assim, este é o lugar. É na Terra onde
podemos usufruir de uma série de riquezas naturais e orgânicas que, em sistema,
ainda seguram as pontas para garantir nossa existência e sobrevivência.
O “recado” do artista está nos primeiros versos da música O
paraíso, que abre o seu álbum homônimo, lançado no início deste
ano. O novo trabalho do cantor, compositor e músico baiano Lucas Santtana versa
sobre questões ambientais, crise climática, nossa relação com a Terra, com a
natureza e com os demais seres que compõem esse macro-organismo. Mas, em O
paraíso, Lucas não segue a linha “alarmista” e “apocalíptica”
adotada, em geral, nos trabalhos sobre a questão. Há, sobretudo, um quê de
esperança nas letras, e de reflexão sobre a biosfera e a sua importância para
manter em equilíbrio a cadeia vivente terrestre.
O disco foi se apresentando a Lucas durante o período pandêmico,
no qual ele, recolhido, deparou-se com insights provocados
a partir da leitura de alguns livros, entre eles, A Terra inabitável,
do jornalista David Wallace-Wells. O documentário Simbiotic Earth,
com a bióloga Lynn Margulis, foi outro “detonador” do ideário que compõe o
discurso de O paraíso. “Ela deu um passo à
frente no entendimento de Darwin, de que a evolução na Terra havia se dado pela
competição. Ela provou que não, que essa evolução se deu pela simbiose, pela
cooperação entre vários seres, por causa de bactérias, de seres microscópicos
que regulam para que a atmosfera seja assim até hoje. Tem uma porrada de seres,
neste exato momento, trabalhando pra que a gente respire oxigênio, beba água,
plante sementes no chão pra colher nosso alimento”, comentou Lucas à Continente.
“Essas leituras e o conhecimento dessas coisas sobre este Planeta me encheram
de muito amor.”
Morando desde maio de 2022 em Montpellier, no Sul da França, Lucas
contou com um time francês na feitura do disco, a pedido da gravadora No
Format, que cuida do seu trabalho na Europa. O paraíso foi gravado e mixado em Paris, por Fred
Soulard, que também toca sintetizadores e marimba, e traz os músicos Remi
Sciuto e Sylvain Bardiau (sopros), Vincent Segal (cello) e Zé Luis Nascimento (percussão), baiano que vive em Paris há
cerca de três décadas. Além disso, conta com as participações das cantoras
Flavia Coelho e Flore Benguigi (banda L’imperatrice). O resultado é um disco de
apuro e refinamento sonoro, que consegue agregar o orgânico e o eletrônico,
criando uma tessitura por vezes onírica. É de forma muito sutil que os sons
digitais e as batidas que nos levam a um cenário mais universal são
entrelaçados a ritmos como a capoeira, o maracatu, o pagodão e até a música
caribenha.
São 10 canções no álbum, sendo duas releituras: Errare humanun est, de Jorge
Bem (Jor), e The fool on the hill, dos
Beatles, que, segundo Lucas, têm letras que casavam perfeitamente com o
conceito do disco. “Em 1974, o cara (Jorge Ben) já falava que não somos os
primeiros seres terrestres, pois herdamos uma ‘herança cósmica’. E a Nasa
provou que todos os elementos químicos presentes na Terra e em nós – como o
carbono, oxigênio, nitrogênio e outros – vieram do espaço”, disse. “Em The fool on the hill, a letra
me lembra muito a sabedoria ameríndia de avisar, questionar como estamos
lidando com a Terra, esse ‘amor ao progresso’ que destrói tudo. E a letra fala
de um cara que tá falando às pessoas algo que elas não percebem e que ninguém
dá bola. O Krenak, por exemplo, tá aí falando há anos. E eles tão falando algo
para a sobrevivência do mundo inteiro, não só deles.”
Lucas canta em quatro idiomas no disco: português, francês, inglês
e espanhol, o que ratifica a necessidade da discussão desse assunto se dar em
âmbito global. What’ life, segunda
faixa do disco, é baseada na resposta de Lynn Margulis à pergunta “O que é a
vida?”, no filme Simbiotic Earth. Na Biosphère, primeira
composição de Lucas em francês, ele pergunta: “Où sont les civilisés? Où sont les sauvages? (“Onde estão os civilizados? Onde
estão os selvagens?”), questionando o modelo civilizatório e de progresso
imposto pela humanidade.
Encerrando o álbum, Sobre la memoria, que chama atenção para a
importância da memória no processo de desenvolvimento dos seres, do planeta. “A
evolução da vida na Terra foi feita graças à memória. Uma borboleta, até
conseguir fazer a sua transformação, teve que repetir o processo milhares de
vezes até que isso geneticamente fosse passado de geração a geração. Até as
cianobactérias aprenderem que podiam comer água e expelir oxigênio, passaram-se
bilhões de anos. E é por conta dessa memória aprendida que hoje temos uma
atmosfera terrestre com 20% de oxigênio”, afirma Lucas no release de O paraíso.
Muita pose, pouca yoga, com
participação de Flavia Coelho, foi feita por Lucas a partir de frases que
integram o projeto Lambes do Mal, do cineasta Daniel Lisboa, que consiste em
pôsteres espalhados pelas ruas de Salvador, com dizeres curtos que falam, de
forma ácida e bem-humorada, sobre questões políticas e comportamentais. Lucas
reuniu e reordenou várias dessas frases, de modo que fizessem sentido como
letra de música. Em resumo, dá uma estocada nos “praticantes de yoga de
Instagram”. Vamos ficar na Terra versa
sobre o casamento entre a ganância e o consumo e o estrago que isso provoca na
natureza, no lar que habitamos, e em nós.
“Esse disco fala sobre a vida na Terra”, resume Lucas. “Se existe
algum paraíso, já é aqui. Onde somos parte de um imenso bioma, também chamado
de biosfera, propulsor da vida que se dá, não por competição, como diziam os
darwinistas, mas por simbiose e cooperação. Em um mundo fragmentado e exaurido,
conectar-se com os outros seres aqui presentes é a única forma de sobre-viver”,
pontua o baiano, cidadão do mundo, dando um recado – tão urgente quanto
esperançoso – a todes que
por aqui estão.
LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.
O que mais se espera, acontece https://bit.ly/3Ye45TD
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