As várias rimas para covardia
As cortinas fechadas no filme são uma alegoria para uma ditadura que sempre gostou de esconder tudo
Luís Renato Vedovato/Le Monde Diplomatique
A arte existe para despertar sentimentos, emoções e novas perspectivas em quem está diante dela. Conseguir retratar um fato, seja pela escrita ou pelo cinema, a ponto de causar um impacto em outras pessoas, é fruto de trabalho árduo e dedicação profunda, além de muito talento.
Ainda Estou Aqui, filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que também é um dos roteiristas, leva o espectador para o coração da crueldade da ditadura brasileira. O diretor Walter Salles brilha ao passar para as telas o drama de uma família que perde o pai, em 1971, sequestrado e morto pelo regime autoritário, no momento mais duro do governo dos militares, inaugurado com o Ato Institucional nº5, de 1968, que foi o estopim para que os militares covardemente retirassem a vida de pessoas vistas como subversivas. Diante de um primoroso resultado cinematográfico, a raiva, a tristeza, a injustiça, a impotência e muitos outros sentimentos inv adem a sala.
A trágica separação do deputado Rubens Paiva de sua família é trabalhada em contrastes. A rotina repleta de momentos felizes e amizades, retratadas com luz abundante, convive com a presença do governo autoritário, capaz de destruir a vida daqueles que viram alvo, com cenas imersas na escuridão, da noite, das cortinas fechadas, dos calabouços.
O cartaz principal do filme é a representação desse antagonismo. Ele traz toda a família Paiva com amigos e parentes na praia, a única que não sorri é Eunice, seu olhar se fixa na distância, percebendo passarem caminhões repletos de soldados do exército. Eunice é vivida por Fernanda Torres, com atuação impecável, o que também pode ser dito sobre todo o elenco, de Selton Mello a Fernanda Montenegro.
Para o Direito, há muitos pontos a serem destacados, para além da violência representada pela existência da ditadura, que o transforma, especialmente no campo público, em semelhante a ficção científica. Porém, o filme retrata um ambiente de notícias sobre sequestros de diplomatas estrangeiros, usados como moeda de troca para a libertação de presos políticos, a tensão paira no ar, e se transfere à sala de projeção.
Ao serem parados numa blitz do exército, realizada em reação à captura do diplomata suíço, um grupo de jovens amigos são salvos pela carteira da OAB do pai do motorista. De fato, o advogado Lino, amigo da família Paiva, é tido como salvador da pátria naquele momento.
Mas, apesar de conseguir livrar, mesmo à distância, o seu filho, amigos e a filha de Eunice das garras do exército, o que indica mais o medo dos militares em “pegar” algum filho da elite, Lino não consegue sucesso no habeas corpus para libertar Rubens Paiva. Decisão do Superior Tribunal Militar nega o pedido.
O desaparecimento forçado de seu marido faz Eunice se deparar com burocracias, pois era ele que cuidava das finanças e assinava os saques da conta no banco. A renda da família desaparece, a mãe e os cinco filhos passam a encarar uma nova realidade. Entre as várias perversidades enfrentadas, a incerteza sobre a morte de alguém e a não existência de documentos talvez seja a mais desoladora, pois coloca a família num cenário kafkiano.
Alguns dias após amigos se mudarem para Londres, levando a filha mais velha dos Paiva, a casa de Eunice é invadida pelos agentes da ditadura. Entram armados e passam a fechar as cortinas da casa. Rubens Paiva é levado em seu carro por alguns, enquanto os outros intrusos permanecem por mais tempo na residência, fazendo, nos dias seguintes, a mãe e uma das filhas irem também prestar depoimento.
Eunice foi capaz de retratar a tortura que enfrentou durante mais de dez dias de prisão, passando por humilhações. Rubens Paiva não conseguiu. Morreu em janeiro de 1971, mas seu atestado de óbito só foi oficializado em meados da década de 1990, mais de 20 anos após sua morte. A cena, muito iluminada, de dentro do prédio do Fórum João Mendes, em São Paulo, também é um dos momentos de contraste com a escuridão da época do regime de exceção.
As cortinas fechadas no dia em que levaram Rubens Paiva servem de alegoria para uma ditadura que sempre gostou de esconder tudo. Essas mesmas cortinas estão fechadas quando a família muda da casa do Rio para São Paulo. Com isso, o filme busca mostrar o que acontece do lado de dentro dessas cortinas: o dia a dia da família, as conversas, as brigas, as festas, os desafios, tudo para que se possa sentir mais intensamente o desaparecimento do pai, do marido, da família.
Descortinar. Essa é a grande qualidade do filme. Exatamente o contrário do que faz uma anistia, que fecha as janelas e as cortinas, pedindo para que tudo seja aceito sem explicação. Depois de assistir ao filme, fica muito evidente que não é só uma rima pobre que pode unir covardia a anistia.
Luís Renato Vedovato é professor Associado da UNICAMP e de Direito Internacional na PUC de Campinas.
Leia: 'Os jovens criadores de mais de 80 anos' https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/urariano-mota-opina.html
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