05 fevereiro 2025

Gaza: a dimensão do genocídio

Cessar-fogo na Palestina: o que não podemos esquecer deste genocídio?
Enquanto a guerra por meio de tecnologias de informação desempenhava seu papel, crianças palestinas passavam fome, perdiam membros, familiares e, muitas vezes, suas vidas
Iara Moura, Olivia Bandeira e Pedro Vilaça/Le Monde Diplomatique 

De acordo com as autoridades de saúde da Palestina, são mais de 46 mil pessoas mortas no conflito de Gaza desde outubro de 2023. Esta contagem pode ser muito maior. Novas análises feitas pela revista The Lancet, conduzida por acadêmicos da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, da Universidade de Yale e de outras instituições, falam em mais de 64 mil palestinos mortos.

O cessar-fogo iniciado no último domingo, 19 de janeiro de 2025, não apaga os relatos da barbárie a que boa parte do mundo assistiu incólume. A narrativa de “guerra” ofusca e sustenta o genocídio do povo palestino em curso parecendo anestesiar cada um de nós num misto de tristeza e horror. A narrativa transmídia vai da rede social às redes de TV assentando apatia. Por que as imagens produzidas e compartilhadas mundo afora pareceram incapazes de gerar esforços coletivos pelo fim do genocídio?

A aceleração da vida conectada, a profusão de conteúdos muitas vezes sensacionalistas e pouco aprofundados, os vieses racistas dos algoritmos das redes sociais, que lucram com discurso de ódio e conteúdos falaciosos, e a cobertura parcial dos veículos de mídia, pró-Israel, são alguns dos fatores que respondem a essa questão, legitimando a defesa israelense.

A guerra pela informação, muito além das fake news

A era da aceleração, da digitalização e do domínio das big techs impõe uma vida desumanizada em diferentes escalas. Nesse contexto, novas estratégias de conquista, colonização e exploração se fortalecem pelas tecnologias de comunicação e informação, dominadas pela concentração de mídia, seja na radiodifusão, seja no modelo das grandes plataformas digitais, que predomina na internet. Na geopolítica da barbárie, a desordem informativa também é uma arma poderosa e, em período recente, Israel soube bem se utilizar dela, com apoio da grande mídia ocidental e das big techs.

Na internet, são milhares de mentiras que circulam e incentivam o ódio aos palestinos. Entre elas, foram desmentidas as informações de que o Hamas decapitou dezenas de bebês. Também é falsa a informação de que um bebê foi assado no forno, ou que um outro foi arrancado à faca do útero da mãe.

A desinformação que circula pelas redes, reforçada pelos algoritmos desenhados pelas grandes plataformas digitais, é apenas uma das violações do direito à informação e à comunicação identificadas no conflito atual e antes dele.

O Observatório Palestino de Violações de Direitos Digitais, coordenado pela organização 7amleh – The Arab Center for the Advancement of Social Media, possui uma plataforma online para monitorar, documentar e acompanhar as violações dos direitos digitais dos palestinos. De 2021 a 2025, a plataforma recebeu e encaminhou cerca de 10.200 violações de direitos contra palestinos em hebraico e árabe em plataformas de mídia social. Dessas, a maior parte se refere à incitação à violência contra palestinos por parte de contas existentes nas redes sociais (40,44%), seguido de censura de conteúdo palestino por parte das plataformas (35,34%), discurso de ódio (10,05%), remoção de conteúdo (3,70%), campanha difamatória (3,34%), fake news (2,66%), hackeamento (1,90%), v iolência baseada em gênero (1,76%), entre outros.

Relatório lançado pela organização em setembro de 2024 documenta mais de 5.100 casos de censura digital e disseminação de conteúdo prejudicial em grandes plataformas como Meta e X entre 7 de outubro de 2023 e setembro de 2024. As plataformas digitais também lucraram financeiramente com conteúdo publicitário prejudicial, como mostra o relatório: “O Facebook, de propriedade da Meta, veiculou anúncios direcionados incitando o assassinato de indivíduos e defendendo a expulsão forçada de palestinos da Cisjordânia para a Jordânia. Além disso, as políticas de publicidade do YouTube foram consideradas não compatíveis com os padrões de direitos humanos. O Minist& eacute;rio das Relações Exteriores de Israel promoveu anúncios sobre a guerra em andamento em Gaza no YouTube, refletindo sua ideologia para públicos na França, Alemanha e Reino Unido, com um orçamento de US$ 7,1 milhões em duas semanas após 7 de outubro de 2023, em violação às próprias políticas da plataforma”.

Além das violações de direitos por parte das plataformas digitais, o documento cita ainda o uso extensivo de tecnologia nas violações de direitos humanos pelo governo israelense, como o emprego de inteligência artificial para atingir os palestinos e a promoção de apagões de internet e comunicação sem fio como uma tática de guerra ilegal durante a campanha militar de Israel em Gaza. O ataque às infraestruturas de telecomunicações e a interrupção de serviços vitais de internet e comunicação geraram um grande obstáculo para documentar graves violações de direitos humanos em Gaza e salvar vidas. Sem telecomunicação, Gaza está desconectada do mundo e cada vez mais isolada. Além de afetar a liberdade de expressão e o acesso a informações vitais, o problema ainda prejudica as ajudas humanitárias, que já são dificultadas por Israel.

Disputas de visão de mundo na mídia ocidental

A guerra informativa não se limita às redes sociais. Casos amplamente divulgados pela grande mídia ocidental, mesmo que categoricamente desmentidos, são comuns e assustam pela força que se espalham, apesar da inconsistência.

Em análise recente, o filósofo Murilo Seabra aponta a tendenciosa cobertura da mídia ocidental sobre a pauta. Mostra, por exemplo, como o New York Times reanimou uma notícia cuja falsidade já havia sido comprovada: a de que os membros da brigada Al-Qassam cometeram “estupros em massa”. A matéria foi desmentida pela família da suposta vítima.

Em outro texto publicado no Le Monde Diplomatique, o jornalista Alex Hercog, do Intervozes, analisa que os veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ignorando o contexto histórico do conflito e encobrindo os crimes cometidos por Israel. O texto “A contribuição da mídia para o ciclo de violência” também destaca exemplos dessa parcialidade, como o uso predominante de fontes israelenses nas matérias.

Em resposta a esse contexto, no Brasil, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicou, em novembro de 2024, recomendação sobre a cobertura da ofensiva israelense. O texto pede que os jornais impressos, digitais e, principalmente, TVs e rádios, que administram concessões públicas de radiodifusão, garantam maior diversidade de vozes e equilíbrio de fontes na cobertura do conflito.

A recomendação alerta para o risco de uso de expressões que possam aumentar o preconceito a religiões ou grupos étnicos, como o qualificativo “extremista” ou “terrorista”. Apesar das recomendações, parte importante da cobertura jornalística no país segue enviesada.

Nos últimos dias, após o anúncio do possível cessar-fogo, veículos da mídia brasileira e internacional têm destacado como as “duas partes” irão cumprir acordos. Nesse contexto, referem-se ao Hamas como responsável por “reféns” e a Israel como detentor de “prisioneiros”. O termo “refém” carrega uma conotação pejorativa, enquanto “prisioneiro” sugere algo mais aceitável dentro de parâmetros legais do que seria uma guerra e ganha aparência de moral e civilizado. Contudo, como considerar razoável o fato de Israel deter pessoas, principalmente palestinos, que sequer recebem informações sobre os motivos de sua prisão?

O número de palestinos em cárcere está na faixa de dezenas de milhares, enquanto algumas centenas encontram-se detidas pelo Hamas. As prisões arbitrárias, incluindo de mulheres e de crianças, mantidas como garantia para acordos futuros também têm sido prática corrente de Israel. Essa prática se encaixa na definição de “refém” conforme o dicionário de Oxford: “Aquele que fica, contra sua vontade, em poder de outrem, como garantia de que alguma coisa será feita”.

Jornalistas na mira 

Outro fator que contribui para essa guerra por meio das informações é a violência contra jornalistas e comunicadores que se tornaram vítimas no conflito e, porque não dizer, alvo. Segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas, desde o começo do conflito, 166 jornalistas foram mortos em Gaza. Outras fontes indicam mais de 200 mortes.

Em 2023, cerca de 75% dos jornalistas mortos no mundo foram vítimas da ofensiva na Palestina. Em março de 2024, a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) denunciou que, em cinco meses, ao menos 103 jornalistas foram mortos em Gaza por ataques israelenses, incluindo pelo menos 22 no exercício de suas funções. A RSF classificou o conflito como um dos mais letais para jornalistas.

A terra dos homens é, como vós afirmais, de todos os homens?”

A pergunta tirada de poema de Mahmoud Darwish, poeta palestino falecido em 2008, provoca que é preciso seguir lembrando e questionando o genocídio e a barbárie.

A imagem das poderosas big techs participando da posse de Trump na última segunda-feira, 20 de janeiro, logo após o anúncio do cessar-fogo, é, mais que simbólica, aceno à ideologia autoritária nazifascista bélica e imperialista. É a demonstração contundente da aliança tecnopolítica de podres poderes no rumo de uma humanidade desumanizada. O anúncio de Zuckerberg de novas políticas de moderação de conteúdo explicitamente favorecedoras da difusão de ainda mais ódio a grupos vulnerabilizados também vem nessa toada e coloca os palestinos em risco, como alerta a organização Jewish Voice for Peace.

É urgente quebrar a apatia que entristece e anestesia pela retomada das humanidades e isso passa pelo desmantelo do poder político-econômico e técnico das big techs e grandes grupos econômicos do ramo midiático.

BOX

O que a mídia não conta

1- A ofensiva de Israel é um processo histórico de colonização
Para entender as raízes históricas e geopolíticas dessa barbárie é indispensável observar os mapas que mostram a expansão do Estado de Israel ao longo das décadas e como os palestinos foram ficando em territórios cada vez menores (em verde no mapa). Isso já em 2020, antes do atual conflito. 


Esses dados deixam explícito: o que estamos presenciando é um processo de colonização. Embora possua características específicas do momento histórico em que vivemos, ele carrega elementos comuns a outros processos coloniais: invasão de território, roubo de riquezas e o extermínio da população.
Compreender isso é fundamental para acabar com um dos maiores equívocos ao tratar desse massacre: a ideia de que Israel está apenas “respondendo a ataques”. Não. Israel é o invasor.

Apesar da confusão promovida por parte da mídia ocidental, incluindo a brasileira, a própria ONU classifica a ocupação dos territórios palestinos como ilegal. Em uma resolução de setembro de 2024 adotada pela Assembleia Geral, foi exigido que Israel “ponha fim sem demora à sua presença ilegal” nos territórios ocupados, estabelecendo um prazo de 12 meses para cumprir a determinação. A resolução foi aprovada por 124 votos favoráveis, 14 contrários e 43 abstenções.

Além da apropriação de terras, há outros interesses econômicos em jogo. Os territórios palestinos possuem vastas reservas de petróleo e gás natural, como apontado pelo relatório da Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A bacia próxima à Faixa de Gaza contém cerca de 122 trilhões de pés cúbicos de gás natural, avaliados em 453 bilhões de dólares. Israel é o único a explorar esses campos, e essa cifra assusta.

2-“Toda criança vivendo em Gaza está traumatizada”. – Ricardo Pires, Unicef.

A invasão e a disputa territorial ganham contornos ainda mais desumanos quando as crianças viram alvo. Os ataques indiscriminados de Israel contra civis transformaram as crianças em suas principais vítimas.

Mais de 14 mil crianças já foram mortas, e todas que sobreviveram carregam traumas profundos. Mais de 2.000 tiveram suas pernas amputadas, muitas delas sem anestesia, devido às restrições impostas por Israel. A Al Jazeera relata que mais de 700 bebês, com menos de um ano de idade, foram mortos em Gaza.

Segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU, quase 70% das vítimas na Faixa de Gaza são mulheres e crianças. A organização classificou as violações como sistemáticas e falou em números sem precedentes.

“Um número extremamente elevado de crianças em Gaza continua a morrer, a ser mutilado, ferido, desaparecido, deslocado, a ficar órfão e ser vítima da fome, da desnutrição e de doenças”, diz o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas.

3-As condições dos aprisionados palestinos são desumanas

O historiador Sayid Marcos Tenório, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou:
“Pouco se fala sobre a bestialidade com que Israel trata os presos palestinos, privados dos mais elementares direitos assegurados por Convenções Internacionais e submetidos às mais indignas, duras e violentas condições de encarceramento”.

Alaa Daraghme, em reportagem para a BBC, detalha o sistema de “detenção administrativa” de Israel, no qual uma pessoa pode ser detida sem acusações formais ou julgamento, prática que atinge principalmente palestinos.

A ONU e a Save the Children denunciam que entre 500 e 700 crianças palestinas entram anualmente no sistema de detenção militar israelense. Mesmo antes da escalada do atual conflito, os palestinos já eram tratados como reféns, enquanto a mídia comercial se mantinha em silêncio.

Iara Moura é jornalista, mestra em comunicação e coordenadora executiva do Intervozes. Olivia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e coordenadora executiva do Intervozes. Pedro Vilaça é redator publicitário e coordenador executivo do Intervozes. 

[Ilustração: Intervoses]

Leia: O documento do Ministério da Inteligência de Israel sobre a ocupação total de Gaza https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/10/detalhe-do-conflito-israel-x-palestina.html 

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