01 setembro 2023

Ultraconcentração da renda e da riqueza

A retórica da reação neoliberal e o futuro do igualitarismo
Quanto mais neoliberalismo, maior a diferença entre a renda extraída pela posse de propriedade e a distribuída como retorno pelo trabalho. Em escala mundial, sua incapacidade de produzir crescimento econômico, combinada ao aumento da desigualdade, é proporcional à sua capacidade de corroer, por dentro, regimes democráticos
Sávio Cavalcante/Le Monde Diplomatique

 

O neoliberalismo foi intelectualmente elaborado em meio à crise do “liberalismo realmente existente” e das guerras mundiais na primeira metade do século XX. O objetivo era oferecer um sistema de ideias alternativo aos princípios igualitaristas dos modelos que então surgiam como respostas de esquerda, ou seja, tanto o modelo capitalista de Estado de bem-estar social quanto o comunismo. Apenas a partir da década de 1970, especialmente após o fim da União Soviética, é que as ideias neoliberais puderam impor parte do que, por décadas, desenharam como ordem social e modelo de Estado ideais.

O resultado prático, coerente com seus princípios normativos, tem sido a retomada de poder e renda de parcela diminuta de grandes proprietários, especialmente da fração financeira do capital. Em diferentes países, quanto mais essa parcela obtém hegemonia, maior se torna a desigualdade de poder e renda entre o “1%” e o restante da sociedade.1 Quanto mais neoliberalismo, maior a diferença entre a renda extraída meramente pela posse de propriedade (especialmente na forma de ativos financeiros) e a distribuída como retorno “equivalente” do esforço dispendido no trabalho que, de fato, gera a riqueza.2 Em escala mundial, sua incapacidade de produzir crescimento econômico efetivo, combinada ao intrínseco aumento da desigualdade, é diretamente proporcional à sua capacidade de corroer, por dentro, regimes democráticos e pavim entar o caminho eleitoral, como no passado, ao campo da extrema direita, em alguns casos de tipo neofascista.  

Como um sistema de ideias profundamente anti-igualitarista, que legitima a deterioração democrática e pouco tem a oferecer, na prática, à maioria da população trabalhadora, se realizou historicamente? Como se tornou “racionalmente” possível e reivindicou legitimidade?

Nos últimos anos, o uso da fórmula Marx + Foucault tem gerado boas e novas respostas. Um acúmulo incontornável nesse sentido é o reconhecimento de que o neoliberalismo não pode ser reduzido à bandeira do “menos Estado, mais mercado”. Antes de disputar o tamanho da intervenção estatal, o neoliberalismo formulou um sistema de ideias cuja base normativa e intelectual era a de que todos (indivíduos, organizações/empresas e Estado) precisavam se reconhecer e agir como se empresas fossem, ou seja, uma razão, uma forma de governo e uma subjetividade de novo tipo.3

Na prática, porém, a suposta superioridade da razão neoliberal em termos de eficiência e justiça exigiu o confronto, soft e hard, com agentes orientados por princípios igualitaristas – não apenas com sindicatos, mas com todas as ideias, movimentos, ativistas e organizações que, dentro e fora das empresas, impunham limites políticos e morais à acumulação de capital. A razão neoliberal não abdica – pelo contrário, a legitima – da violência para barrar outros modelos de sociedade.4

Ainda que o “cassetete [seja] o télos dos códigos de conduta” da razão neoliberal,5 a luta em si de ideias incide sobre terrenos de ordem moral e intelectual em relação aos quais os neoliberais não podem simplesmente se abster, sob pena de restringir sua hegemonia apenas ao “1%”. O neoliberalismo não prescinde da crítica das armas, como bem sabem muitos povos, mas não seria possível sem a arma da crítica.

Eis, então, o maior desafio do neoliberalismo na luta de ideias: como sua normatividade essencialmente anti-igualitarista reivindica, com relativo sucesso, superioridade?

Seria oportuno retomar a estrutura básica da “retórica da reação” identificada por A. O. Hirschman, isto é, o uso articulado de variações argumentativas de três teses – da perversidade, da futilidade e do risco (ou da ameaça) – contra modelos igualitaristas. De forma resumida, funcionam no confronto de ideias da seguinte maneira: políticas moralmente bem-intencionadas (imbuídas de princípios igualitarista, por “justiça social”) podem gerar efeitos imprevistos que pioram o que se pretendia enfrentar (perversidade); na prática, alteram pouco ou quase nada aquilo que buscavam resolver (futilidade); se radicalizadas, corre-se o risco de perder o que não deveria ser afetado ou eliminado (risco/ameaça). A reivindicação de superioridade da razão neoliberal exige primeiro demonstrar a inferioridade das alternativas.6

Contudo, também por isso, começam aqui seus problemas: para os neoliberais “puros”, a igualdade jurídica de indivíduos racionais, ante contratos celebrados sem coerção física direta a qualquer parte, é a única dimensão do princípio igualitarista que valeria a pena ser defendida. Seria a única capaz de não gerar um trade-off com outro princípio. Todas as demais pressões que procurem dar grandes – ou mesmo pequenos – passos em direção a uma igualdade mais substantiva serão submetidas aos invariantes da retórica da reação.

Esse igualitarismo esvaziado de conteúdo cobra seu preço na luta de ideias. Mesmo o apelo a outros princípios, como o da liberdade ou da eficiência econômica, gera sínteses retóricas que não tem, por assim dizer, um apelo popular espontâneo: “Muitos direitos trabalhistas, por limitarem os negócios, reduzem empregos”; “Salário mínimo alto parece positivo, mas, com o tempo, não é bom para quem vive do salário”; “Impostos mais baixos para os mais ricos acabam sendo bons para os mais pobres”; “Políticas sociais, bolsas e ações afirmativas não são boas nem para quem mais precisa delas”; “Serviços públicos universais e gratuitos diminuem o incentivo ao trabalho”. A redução do problema a um trade-off entre igualdade e liberdade, como já amplam ente documentado, gera efeitos políticos ainda mais complicados e antipopulares: “Sufrágio universal pode minar a democracia”; “Políticas em defesa de justiça social (igualitaristas) são o prenúncio do autoritarismo”. 

Dada a recusa do conteúdo substantivo do princípio igualitarista – o qual, historicamente, tem capacidade de gerar movimentos de massa e ganhar eleições –, a reação neoliberal exige um mecanismo alternativo de justificação. Sánchez-Cuenca oferece um profícuo caminho de análise. A adesão – parcial ou integral, consequente ou não – de esquerdas reformistas ou revolucionárias ao princípio do igualitarismo lhes concede uma superioridade moral difícil de ser combatida, nos mesmos termos, pelas direitas. Para obter hegemonia e encontrar portadores sociais ativos, a reação das direitas precisa se apresentar, antes, como intelectualmente superior à esquerda igualitarista. Só depois desse desvio para a dimensão supostamente racional/intelectual do problema, e por conta dele, é que a reação alegar&aacu te; superioridade moral.7

Não se trata, é claro, de ignorar o recurso, em muitos casos procedente, da denúncia de hipocrisia ou perversidade do indivíduo, grupo ou regime “de esquerda” que, por se acharem portadores de uma moral superior, promovem as maiores violências e injustiças. O ponto não é esse. A questão é que não se conquista superioridade de ideias apenas alegando a incapacidade de seus inimigos de esquerda de cumprir, na prática, o princípio igualitarista. Novas forças e movimentos sempre aparecem prometendo não reeditar os fracassos do passado. Em algum momento, a reação anti-igualitarista sabe que é preciso coragem intelectual para disputar o próprio princípio igualitarista e colocar outra coisa no lugar.

Sugiro a seguir uma estrutura de três grandes camadas da retórica da reação neoliberal. De cada uma, derivam muitas variações – indicarei aqui apenas alguns exemplos. Cada uma pode gerar diferentes encontros, mais ou menos contextuais, com outros sistemas de ideias. Até por isso, não há homogeneidade completa entre seus intelectuais e divulgadores. Seria possível sugerir certa ordem lógica entre as camadas, mas ênfases, alcances e silêncios seguem uma dinâmica própria em cada tipo de intervenção e prática.

Como se trata de uma reação anti-igualitarista, a primeira camada é aquela que exige normalizar, como ponto de partida, a desigualdade, ou seja, justificar por que não é tão moralmente ruim assim ser anti-igualitarista. As sínteses retóricas neoliberais recentes ultrapassaram o tradicional “é preciso fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo” por meio de formulações mais diretas, que não precisam adiar para um futuro distante o problema da distribuição: “A desigualdade não é o problema, e sim a pobreza” ou “Não é possível praticar justiça social na miséria”. 

Essa primeira camada gera diversos efeitos. Primeiro, corrói a legitimidade política da pressão em si, por diminuição da desigualdade. Segundo, normaliza a tarefa de, antes de qualquer coisa, “pôr ordem na casa” – princípio das políticas neoliberais de austeridade. Terceiro, ao reacender a chama moral do anti-igualitarismo, viabiliza uma conexão de sentido prática com outros sistemas de ideias e valores, muitos de base religiosa, que fornecem fundamentos morais e éticos, especialmente aos mais pobres, para uma postura conservadora de resignação ou consentimento perante desigualdades de todo tipo (além de classe, gênero, raça, sexualidade etc.).

segunda camada é aquela que procura dar fundamento racional (técnico ou científico) à “função social” da desigualdade. A premissa é que o capitalismo pode ser um jogo de “ganha-ganha”: o pobre é aquele que, ainda, não é classe média ou rico. Trata-se, então, de “apenas” acabar com a pobreza. Passa-se, assim, a disputar, e restringir, os meios. Os mais eficientes seriam aqueles compatíveis com o livre mercado. Intervenções externas não mercadorizadas gerariam ineficiência econômica, que, por sua vez, não criaria a riqueza que se quer distribuída.

É nessa camada que as teses da perversidade e do risco ganham plenitude. Nela habitam tanto as críticas neoliberais a políticas desenvolvimentistas, de planejamento estatal e protecionismo nacional quanto as versões mais radicais da trickle down economics: “Quanto mais livres (de impostos e regulamentações externas) forem os mais ricos para enriquecer, melhor será para os mais pobres” ou “Os ricos precisam ter a confiança de que terão o retorno que esperam de seus investimentos para que exista algo para os pobres”. Intervenções menos radicais tendem a se refugiar na tese da futilidade: “Sabendo como funciona uma economia de mercado, é muito difícil, ou pouco eficaz, taxar grandes fortunas (ou a herança de propriedade, ativos financeiros etc.)”. 

terceira camada supõe a superioridade racional do anti-igualitarismo (“Para o bem de todos, sempre haverá desigualdade”), mas precisa voltar a lidar com o problema moral: os indivíduos (e suas famílias) que compõe o “1%” merecem estar no lugar social em que se encontram? Aqui talvez resida a novidade, e a fragilidade, do neoliberalismo.

A resposta tradicional do liberalismo ao problema da desigualdade foi legitimá-la como expressão de um retorno equivalente a uma “escala natural de dons e méritos”, expressa pelo risco do investimento ou pelo esforço de trabalho (intelectual ou físico, de concepção ou execução etc.) dispendido no comércio ou na produção de riqueza material. A existência de uma competição impessoal de mercado (único princípio igualitarista admitido) valeria até mesmo para secundarizar o peso da desigualdade de ponto de partida (a herança familiar, não individualmente conquistada pelo mérito). 

Assim, a ideologia meritocrática, base de legitimação necessária da “ciência econômica” liberal, pôde justificar a desigualdade, porque o retorno de renda de todo tipo de atividade no mercado seria regulado pelo princípio da equivalência (compradores e vendedores recebem o que racional e livremente contratam). Desde Max Weber, sabe-se que o fundamento moral que sustenta essa ideologia passou de uma conversão do ascetismo religioso ao laico: disciplina, autocontrole dos desejos de consumo imediatos, resignação ante as dificuldades e sabedoria para poupar e acumular pelo esforço e mérito do próprio trabalho. A recompensa, no céu ou na terra, uma hora chega.

Eis o problema: o neoliberalismo, ao realizar, sobretudo, os interesses do capital financeiro, abdicou de parte essencial do princípio do retorno equivalente ao “mérito”. No plano das ideias, a defesa teórica mais acabada da diferença “natural” entre mérito e recompensa é feita pela escola austríaca, especialmente F. von Hayek.8 Na agitação e propaganda de massa, manifesta-se pela vasta literatura de “autoajuda” e peças de marketing de bancos e consultorias que apresentam fórmulas e serviços para que “você enriqueça enquanto está dormindo, no lazer ou com a família”. Mesmo a ideia de “retorno de investimento em capital humano” obtido pela escolarização deixa de fazer sentido: “Enriquecer não exige diploma”. 

Isso não significa, por certo, que as formas rentistas e especulativas do capital nunca tenham enfrentado esse problema. O que chama a atenção é a ausência, naqueles que buscam produzir o sujeito-empresa da razão neoliberal, da aparência igualitarista antes embutida na ideia de retorno equivalente ao esforço do trabalho.

O anti-igualitarismo dos “liberalismos realmente existentes” não é novidade. Por mais de um século, as teses da perversidade, da futilidade e do risco, aplicadas à ampliação do estatuto de igualdade jurídica a qualquer pessoa, normalizaram ou até mesmo lucraram com o comércio ou trabalho forçado de milhões de seres humanos reduzidos à condição de servidão ou escravidão.9

Nas origens, diferenças tomadas como atributos naturais de desigualdade – especialmente de raça – tornaram socialmente compatíveis, por muito tempo, trabalho escravo (ou forçado) e acumulação de capital. Na atualidade, a defesa neoliberal irrestrita da legitimidade da coerção “puramente” econômica de incentivo ao trabalho, mesmo para aqueles cuja alternativa de sobrevivência seja apenas a fome ou a miséria, produz defesas “racionais” de trabalhos em condições análogas à escravidão.10

Novamente, o déficit anti-igualitário do neoliberalismo cobra seu preço. A dificuldade de ganhar base social de massa (e votos) gera certa bifurcação de suas variações políticas concretas. 

O caminho originário e com maior base social até aqui, percorrido desde os anos 1970, foi aquele que buscou, com mais ou menos violência, um sentido de comunidade e vínculo social existente no conservadorismo. O mecanismo de articulação de um sistema de ideias ao outro se efetivou pela instituição família. Se para os conservadores um modelo patriarcal de família era o único que garantia estabilidade, para os neoliberais a família foi vista como uma empresa, único ente superior ao indivíduo cuja racionalidade poderia garantir de forma “ótima” a reprodução de seus membros.11

O outro caminho, mais recente e com pouca base de massa, é o que Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressista”.12 Trata-se da cooptação, por parte de grandes corporações e de forças políticas neoliberais, de demandas de reconhecimento e redistribuição baseadas principalmente em termos de gênero, raça e sexualidade. O déficit moral da base neoliberal anti-igualitarista é aqui supostamente compensado por um mercado atento à “diferença” e à “diversidade”. 

O impasse neoliberal, contudo, permanece. Sua variante progressista pode tornar mais socialmente diversa alguma parcela da camada mais rica da sociedade, mas não enfrenta as causas da crescente desigualdade de poder e renda criada pelo próprio neoliberalismo. Gera, como efeito ideológico (este, sim, perverso), a aparência de uma “meritocracia justa” de mercado. O caminho conservador, por seu turno, se radicaliza. A necessidade de encontrar um sentido de igualdade comunitária com apelo popular ultrapassa a instituição família e passa a exigir níveis de pureza adicionais: religiosa, nacional, racial e étnica. O neofascismo se realiza historicamente como seu télos.

No Brasil, o novo governo petista tem à frente o desafio histórico, e decisivo, de renovar a esquerda igualitarista, interditando não apenas a resposta neofascista, mas também a versão neoliberal que impede, em seu interior, a superação desse impasse.

*Sávio Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

1 Gérard Duménil e Domique Lévy, “O imperialismo na era neoliberal”, Crítica Marxista, n.18, 2004.

2 Thomas Piketty, O capital no século XXII, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2015.

3 Pierre Dardot e Christian Laval, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, São Paulo, Boitempo, 2016.

4 Grégoire Chamayou, A sociedade ingovernável: uma genealogia do neoliberalismo autoritário, São Paulo, Ubu, 2020.

5 Idem, p.251.

6 Albert O. Hirschman, The rhetoric of reaction: perversity, futility, jeopardy [A retórica da reação: perversidade, futilidade, ameaça], Cambridge, Harvard University Press, 1991.

7 Ignácio Sánchez-Cuenca, La superioridade moral de la izquierda, Madri, Lengua de Trapo, 2018.

8 Essa posição causa um “sincericídio” curioso em Hayek. Ver, para tanto, Sávio Cavalcante, “Classe média, meritocracia e corrupção”, Crítica Marxista, n.46, 2018.

9 Ver Roberto Steinfeld, Coercion, Contract and Free Labor in the Nineteenth Century [Coerção, contrato e trabalho livre no século XIX], Cambridge, Cambridge University Press, 2001; e Domenico Losurdo, Contra-história do liberalismo, Aparecida, Ideias e Letras, 2006.

10 Leandro Narloch, “Devemos proibir os pobres de ter trabalhos degradantes?”, Folha de S.Paulo, 16 maio 2018.

11 Melinda Cooper, Family values: between neoliberalism and the new social conservatism [Valores familiares: entre o neoliberalismo e o novo socialconservadorismo], Nova York, Zone Books, 2017.

12 Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica, São Paulo, Boitempo, 2020.

As palavras valem, mesmo quando omitidas https://tinyurl.com/3ju94a87

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