Pessoas
esbarrando umas nas outras nos corredores dos shoppings centers, pisadelas e
xingamento. Lojas parecendo formigueiros oferecem produtos de péssima
qualidade, vendidos a peso de ouro. Empurrões e filas quilométricas. Lá fora,
transportes coletivos igualmente lotados e calorentos, barulho ensurdecedor e
clima de excitação geral. Não há dúvida nenhuma: este purgatório é o sinal de
que o Natal está chegando.
Imagine como isso não estará em mais duas semanas.
Haja néon, pisca-pisca, efeitos especiais. Quando a criatura
imagina que essa experiência é a representação, na terra, do inferno de Dante,
descobre que pode ficar pior: por onde você passa só escuta a voz monocórdica
de Simone, a entoar, nos graves, Então é Natal. “E o que você fez?”. Até parece
que os estabelecimentos do mundo inteiro se combinaram para tocar somente essa
lavagem cerebral que foi gravada quando Matusalém era menino.
No início de dezembro e por todo o mês, já virou tradição: todo
mundo se esquece que o Natal deve ser a comemoração do aniversário do
Menino-Deus e acredita que é a festa do consumo. Ligado nessa contradição, o
papa Francisco, que para mim é um servo de Deus, aproveitou os preparativos do
Black Friday, ocorrido na semana passada, e mandou um recado que vale para
todos os 31 dias: “Consumismo é como uma doença”.
Doença da alma. Que impede a prática da generosidade. “É uma
doença séria, o consumismo, de hoje. Eu não digo que todos fazemos isso, mas
gastar mais do que precisamos, é uma falta de austeridade de vida. Esse
é um inimigo da generosidade”, disse o pontífice. Ele aproveitou para
alertar que as pessoas procurem “fazer o bem”, em vez de gastar com supérfluos,
e que ajudem umas às outras “como for possível”.
A fala de Francisco, que eu copio aqui por que tem tudo a ver com
essa crônica, é um apelo corajoso. Quando diz para fazermos o contrário do que
o consumismo (e a ostentação) nos impõem, ele está mostrando que nós faríamos
mais negócio, acumulando prestígio junto ao dono da festa, se lembrássemos do
legado que Ele nos deixou através de suas Palavras.
Francisco sugeriu uma atitude nova, simples e admirável, se
considerarmos que o senso de justiça (trocar o consumo pela generosidade)
precisa estar nas nossas ações diárias nesse tempo natalino. Generosidade,
todos sabemos, é oferecer o que temos, em vez de só gastar. É ajudar a fazer
justiça (social). Em última análise tem a ver com a compaixão de se saber
colocar no lugar do outro e sentir a dor dos que necessitam.
Não é fácil fazer isso num mundo onde o consumo é prática
incentivada pelos dirigentes das nações e identificada como a razão do
desenvolvimento. A nossa sociedade criou doentes ao estimular a existência de
pessoas consumistas baseada na teoria de que, quanto mais se consome, maior é a
estabilidade econômica de uma região, de um país. (Só que não: enquanto
assistimos ao crescimento desenfreado do consumismo, também constatamos que são
maiores os problemas financeiros das pessoas, das famílias e dos governos).
Sem contar que existe, sim, uma relação entre o consumismo e o
meio ambiente. Não estou com discurso fácil ou querendo fazer pose de
ambientalista. Mas é um fato que para aumentar a demanda da produção, retira-se
a matéria-prima de onde? Elementar: tudo precisa de água, energia elétrica e de
transporte. A emissão de gases gera degradação e destruição de ecossistemas.
Por aí vai. E enquanto mais se consome mais se gera lixo. É um ciclo.
Na contramão desse mundo contemporâneo maluco, este papa
Francisco é um subversivo. É a Voz que clama no deserto da globalização. Um
transgressor.
[Ilustração: LS]
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Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances,
biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da
Academia Pernambucana de Letras.
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Um comentário:
Crônica incrível. E o tema melhor ainda pois assim é possível conscientizar as pessoas
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