30 novembro 2025

Abraham Sicsú opina

Poderes se digladiam
Abraham B. Sicsu  

Esqueçamos os manuais. Aquilo que aprendemos nada significa. Economia para um lado, política para outro. Não há conexão. Parece que teremos que criar novas teorias, pelo menos para o Brasil. Nele, economia indo bem tem levado ao caos na política. Não há a mínima relação de interdependência.

Exercer o direito legal. Presidência tem esse atributo. Indicar um nome para Ministro do Supremo. O Senado pode negar. Faz parte de suas atribuições. Se para o STF faz muito tempo não é negado, para outros cargos superiores não. Houve rejeições. Algo que pode ser negociado e mesmo absorvido com poucos traumas. Mas, a revolta toma outras proporções. A vingança é explicita. Tenta-se desarticular a estrutura do projeto de governança do Executivo nacional. Rapidamente, com atos inconsequentes.

Aprovam-se rapidamente as aposentadorias diferenciadas para agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias. Merecem claro, todos merecemos, mas porque diferente de todos os servidores públicos.

 Poder aposentar-se com cinquenta e poucos anos, com aposentadoria integral e possível pensão pós morte para parentes. Não é algo extremamente discriminatório, frente ás mudanças recentes feitas para tentar estabilizar a Previdência? Gerar uma despesa de quase cinquenta bilhões de reais em dez anos, não leva a uma desorganização das finanças públicas? Os municípios, inclusive os pequenos, grande parte sobre eles recairá, têm condições de cumprir com esse compromisso? Enfim, como sociedade, em última instância quem assume o ônus, gera-se um enorme problema a se administrar, apenas para mostrar poder, para fazer pirraça.

Na mesma linha, votam-se os vetos que o Presidente fez a projetos estapafúrdios.

Os interesses individuais prevalecem sobre o que é relevante para a sociedade. Grandes estados, São Paulo, Rio de janeiro, Minas Gerais, Rio grande do Sul e Goiás, principalmente, que irresponsavelmente se endividaram e não conseguem pagar o assumido, acham uma brecha. Derrubar um veto para poder continuar a farra da gastança, em detrimento a estados mais responsáveis que contiveram seus gastos às suas possibilidades reais de arcar com o ressarcimento. Com isso, aprofundam-se as disparidades inter-regionais, faz-se com que o fosso entre os estados aumente. É justo?

Os ruralistas ficam felizes. Os vetos, para manter controles e coerência com o discurso ambiental, são derrubados. A licença ambiental praticamente desaparece. Na prática, os projetos não exigem mais uma fiscalização prévia, basta que o latifundiário diga que aderiu ás regras e assuma esse compromisso. Está aprovado.

Projetos com risco muito elevado ambiental podem ir por esse caminho, também, fazendo com que novas barragens de rejeitos, por exemplo, fujam de uma rígida fiscalização prévia.

Ainda, obras de saneamento básico, ficam à mercê das prefeituras sem o acompanhamento dos órgãos fiscalizadores qualificados na área ambiental. Em síntese, interesses do capital dão duro golpe ao projeto ambiental que pretendia garantir melhores condições para a sociedade em geral.

Essa birra mostra que a economia vai mal?

Claro que não. Mesmo com a absurda SELIC que o Banco Central mantém e reafirma que manterá, o Brasil tem a menor taxa de desemprego da série, 5,6% nos últimos seis meses, e consegue ter uma atração de investimentos estrangeiros diretos que, este ano, fechará, em mais de 80 bilhões de dólares. Também, embora caindo um pouco, mantém um crescimento do PIB anual de mais de 2%.

Segundo estudo dos pesquisadores do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas- IPEA Pedro Herculano Souza e Marcos Dantas Hecksher, “Pobreza e Desigualdade no Brasil, no curto e no longo prazo”, publicado este mês, a melhoria de renda e sua distribuição no país, atingiram em 2024 o melhor patamar.

O índice de Gini melhorou em muito, mostrando uma distribuição de renda mais equânime inter-regional e inter extratos de renda. A extrema pobreza caiu vertiginosamente para menos de 5 %. Em termos reais, a renda média do brasileiro, nos últimos três anos, cresce mais que um quarto. Nessas melhorias, evidentemente, teve forte impacto a retomada do mercado de trabalho e os programas assistenciais, fundamentais para retirar a população da pobreza.

Bolsa Família, Benefício de prestação Continuada, Auxílio Brasil, entre outros, tiveram enorme impacto, inclusive para o redirecionamento para o mercado de trabalho.

O crescimento econômico e a queda da desigualdade têm sido fundamentais para a retirada da população da pobreza. Mas, há muito a fazer, pois ainda temos 4,8% da população que vive com menos de 3 dólares dia. No entanto, mostram, com clareza, que estamos no caminho certo e deveríamos continuar por essa rota.

Com o quadro econômico exposto, como podemos ter um cenário político tão explosivo, tão adverso?

Os avanços recentes não diminuíram a polarização de nossa sociedade, não fizeram com que minorasse o grau de antagonismo e de esgarçamento advindos do enfrentamento político.

Sim, é nesse ponto que se concentram as maiores divergências, que fazem incompatível o caminhar em um projeto de desenvolvimento e inserção social minimamente compartilhado. Tema complexo e difícil de prever acordos.

Utópicos insistem em um cansaço da sociedade brasileira com os extremos. Pode até ser verdade. No entanto, no curto prazo, difícil acreditar. O uso de redes sociais com desinformação, questões emocionais que separaram a sociedade, uma mídia fortemente atrelada a interesses específicos, de ambos os lados, desigualdade social que leva à assimetria da informação, veiculação de notícias sem nenhum fundamento real, dificultam muito acreditar nesse roteiro como saída.

A democracia passa pela necessidade de uma nova visão institucional, em que os interesses da sociedade sejam priorizados, em que haja diálogo, em que os Poderes da nação, Executivo, Legislativo e Judiciário, respeitem suas atribuições e as atribuições dos outros poderes.

2026 será um ano difícil. Já foi antecipado para este com as reações intempestivas que foram observadas neste mês. A conscientização da sociedade e seu poder de influenciar as instituições talvez seja caminho que poderia ser seguido.

Como toda a eleição, será um momento para refletir e julgar os caminhos que foram assumidos, avalizando-os ou dando a possibilidade de alternativas que surjam. O que não se admite é que, em prol da disputa eleitoral, tomem-se atitudes que podem destruir conquistas que se fizeram fundamentais para a nossa população.

Melhor dizendo, a luta política pelo poder e entre Poderes não deve extrapolar para uma guerra fraticidade e inviabilizadora de uma sociedade menos desigual, mais humana.

[Qual a sua opinião?]

Leia também: Banco Central em questão https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/banco-central-em-questao.html

Palavra de poeta

O amor é agora
Cida Pedrosa  


como dizer sempre
se o sempre é agora

basta ter nas mãos a carícia
o presente nos olhos
e o amor não demora

quem gosta da eternidade é a alma
o corpo não

o corpo se farta na chama
se espalha na chuva
se move entre mãos

quero dizer sempre
que o corpo é presente
é pele e é saliva
e o amor
o amor é agora

[Ilustração: Armando Barrios]

Leia também "Nossa marcha", Vladímir Maiakóvski https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_37.html

Sylvio: "inteligência?"

O general Heleno disse que tem alzheimer desde 2018, ou seja, antes de ser nomeado ministro da inteligência do governo Bolsonaro. É necessário explicar ainda porque esse período foi tão nocivo ao Brasil?

Sylvio Belém 

Leia: Sem norte e sem razão https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/minha-opiniao_25.html

Violência racial

O papel da ciência nas chacinas
A violência racial tem endereço: os laboratórios, as universidades, as categorias científicas que tornam a morte de corpos negros aceitável
GABRIEL SILVA*/A Terra é Redonda   

Ao acompanhar as notícias sobre o massacre da Penha no Rio de Janeiro é inevitável ser tomado por um desespero, uma sensação de tremenda angústia e perplexidade com a continuidade da normalidade do mundo à nossa volta. Li notícias falando de 132 assassinatos, o governo do RJ afirma 119, a maior chacina da história recente do país.

Nos celulares viralizou a imagem dos 70 corpos enfileirados, estes encontrados na mata pelos moradores da Penha durante a madrugada que se seguiu ao massacre. Como isso pode acontecer? Como isso continua a acontecer? O que sustenta essa normalidade de chacina? Como seguimos na normalidade sabendo que isso aconteceu?

Escrevo esse texto em um dia nublado, está chovendo em Barão Geraldo, bairro nobre de Campinas onde fica a Unicamp, lugar em que faço pós-graduação. Óbvio dizer que soa inimaginável uma operação militar como essa neste bairro, mas me pergunto qual a relação dos meus vizinhos, ou mesmo dos professores e colegas da universidade com essa operação?

Sabemos que esse tipo de operação tem um caráter midiático e eleitoral, que o público deste tipo de ação são pessoas como as que moram e trabalham neste bairro, que votaram em maioria nas últimas eleições no grupo político que elegeu o atual governador do Rio de Janeiro. No entanto, mais do que questionar a normalidade da cachina para os meus vizinhos brancos de classe média, é fundamental questionar o papel da universidade e dos nossos pares nesse processo.

Qual o papel dos intelectuais, dos estudantes, dos professores e dos diferentes profissionais especializados na continuidade dessa gestão racializada dos territórios? Qual o papel das organizações de esquerda, sindicatos, coletivos, movimentos negro e estudantil, o que fazemos diante disso? E o mais importante, o que nós podemos fazer para que as pessoas dos territórios de onde viemos parem de ser chacinadas?

A política de cotas raciais faz com que haja um maior número de pessoas de territórios racializados morando e estudando aqui, mais do que nunca antes. O que significa a nossa presença nas universidades com as cotas, quando os territórios das populações pretas, pardas e indígenas, seguem em gestão militar e assassina? Qual nosso papel, como pessoas pretas, que acessamos esses espaços, diante da continuidade da chacina?

Esses questionamentos ecoam as indagações de Denise Ferreira da Silva e de Sylvia Wynter, duas autoras que atravessam profundamente meu trabalho. A seguir irei apresentar uma síntese da leitura dessas autoras de como a ciência participa da produção de mortes que não geram crise ética. Quero com isso compartilhar esses dilemas que acredito serem fundamentais, este texto destoa de outros textos de intervenção que já escrevi, tem um caráter um pouco mais acadêmico, pois hoje é também a este público que quero aqui de alguma forma interpelar.

A analítica da racialidade

A obra Homo Modernus: por uma ideia global da raça (Ferreira da Silva, 2022) é um dos mais profundos trabalhos a investigar como as ciências construíram a racialidade, um mapeamento abrangente dos instrumentos científicos usados para gerir a diferença racial e cultural, o caminho tomado na obra vai na contramão da linha hegemônica de crítica do racismo científico, que se dá acusando de pseudociência as ciências raciais.

Caminho cujo marco heróico pode ser rastreado na obra do haitiano Anténor Firmin, que em sua obra Igualdade das Raças Humanas (Firmin, 2013 [1885]), contesta os argumentos que sustentam o racismo na literatura antropológica fundante da disciplina em sua época, destrinchando autores fundadores da eugenia como o influente antropólogo francês Paul Broca e o diplomata Conde de Gobineau, demonstrando a inconsistência do método científico da ciência racial nascente.

Ferreira da Silva toma o caminho oposto ao de Anténor Firmin: identifica o problema não na falta de cientificidade da ciência racial, mas em como os instrumentos da racialidade estão nas bases da filosofia e das ciências modernas.

No prefácio do livro Homo modernos, a autora traz uma reflexão sobre a violência racial promovida pelo Estado a partir de um caso específico que ocorreu nos EUA na época da defesa de sua tese em 1999, quando em 4 de fevereiro, um imigrante africano da Guiné, chamado Amadou Diallo, foi assassinado, estando desarmado e na frente de sua própria casa, com 41 tiros de quatro policiais do Departamento de Polícia de Nova York, despertando revolta e protestos locais. Os quatro policiais foram absolvidos das acusações com a alegação de autodefesa. A reflexão da autora partindo deste caso coloca a questão central que a obra afirma ter como objetivo responder: “Como o conhecimento científico social justifica o assassinato de pessoas não brancas?” (Ferreira da Silva, 2022, p. 21).

A resposta de Ferreira da Silva a essa questão é a analítica da racialidade, um regime simbólico produtivo que estabelece a diferença humana como um efeito da razão universal. Fazendo um mapeamento do contexto de emergência, das condições de produção e dos efeitos de significação de um arsenal conceitual que produziu o homem e seus “outros” relacionais.

No artigo intitulado Ninguém: Direito, Racialidade e Violência, Ferreira da Silva continua a desenvolver as mesmas problemáticas mas com outra abordagem, ela analisa o discurso midiático e de autoridades públicas como o presidente Lula e o então o governador do Rio, Sérgio Cabral, em diferentes casos de ocupações de favelas no Rio de Janeiro pelas forças de segurança do Estado na década de 2000, analisando com instrumentos filosóficos a operatividade da racialidade no contexto brasileiro.

O artigo começa com os seguintes questionamentos: “Quando é que se tornou uma trivialidade – mais do que uma evidência, mas ainda não uma ‘verdade’ óbvia – o fato de que um número considerável (cuja dimensão talvez nunca seja conhecida) de jovens do sexo masculino e do sexo feminino sucumbe como sujeitos da violência infringida para preservação da lei?” (Ferreira da Silva, p 2014).

Este questionamento nos lembra que a contagem de mortos anunciada pelo Estado na atual chacina da Penha e Alemão, veio primeiro com um número muito subestimado de mortos, que somente após a comunidade reunir os corpos houve uma mudança no número oficial, que segue abaixo da conta que circula nas mídias populares. Além disso, nos lembra do que as forças policiais fazem quando não são vistas, da onde se sustentam as estáticas de desaparecidos que seguem assombrando nossas comunidades.

As questões que motivam Ferreira da Silva ecoam a carta de Sylvia Wynter (2021 [1994]) publicada cinco anos antes, onde toma como ensejo a revolta ocorrida após policiais que foram absolvidos de responsabilização após as agressões contra Rodney King, em Los Angeles, que foi brutalmente espancado por policiais com cassetetes e arma de choque, as imagens gravadas do incidente tiveram grande repercussão na época.

Sylvia Wynter questiona no artigo a responsabilidade dos seus colegas, intelectuais, pesquisadores e professores universitários. Recuperando o debate sobre a educação pós Auschwitz, ela questiona o que há de errado em nossa educação para que continue a formar como agentes do Estado, policiais, jornalistas, operadores do direito e membros de júri, pessoas que perpetuam a violência racial. Mais que isso, interpela os intelectuais como os gramáticos da cultura de sua sociedade e das suas instituições, aqueles que produzem categorias como a de “Nenhum homem envolvido” (“No Humans Involved”), que nomeia o artigo e é sistematicamente usada em casos de violência e execução policial racista no contexto jurídico estadunidense tratado em sua carta.

Sylvia Wynter também questiona especialmente a nós, intelectuais negres, em um questionamento que entendo que a obra de Ferreira da Silva pode ser interpretada como uma robusta contribuição para a resposta: “O que fazer, então, enquanto gramátiques cuja rigorosa elaboração das “categorias prescritivas” de nossa atual ordem epistemológica – e, portanto, dos “olhos interiores” da nossa “cultura local” –, aqueles comportamentos coletivos que orientam e trazem à existência a atual ordem do Estado-nação estadunidense, tão específica da realidade, agora que nos confrontamos com o preço pago por arquitetar essa ordem da realidade, como no caso do espancamento de Rodney King/a absolvição do júri/o levante em South Central Los Angeles? O que nós, especificamente como intelectuais Negres, devemos faze r?” (Wynter, 2021 [1994])

Ferreira da Silva, em sua investigação sobre a construção científica da racialidade, sustenta que os textos histórico e científico instituíram a racialidade como um ato produtivo da razão universal. Através da globalidade se instaura o contexto ontológico moderno onde determinadas características corporais, configurações sociais e regiões do globo, são mapeadas e produzidas como irredutíveis e insuprassumíveis.

A analítica da racialidade enquanto reescreve a Europa pós-Iluminista na transparência (como o sujeito autônomo e autodeterminado), simultaneamente situa sempre já os outros da Europa na afetabilidade (a condição de estar sujeito a determinações externas, físicas e mentais).

A racialidade é um arsenal científico que descreve a trajetória dos outros da Europa em um movimento de engolfamento e obliteração, portanto, o racismo moderno não é um preconceito ou um arcaísmo, mas um produto da ciência moderna, que demanda o fim do mundo como o conhecemos para o seu desmonte. Os dois principais significantes da analítica da racialidade são o racial e o cultural, articulando os relatos sobre a diferença humana.

As violências raciais, como o assassinato sistemático de jovens negros que ocorre em diferentes países de formação colonial como os EUA e o Brasil sem que se desperte nenhuma crise ética, são formas de injustiça racial que só são possíveis devido a operação de significantes produzidos na analítica da racialidade, o que ela entende como as diferentes instâncias da fabricação científica da raça.

Esse arsenal teórico foi desenvolvido pela filosofia moderna e por uma série de enunciados científicos presentes desde o nascimento de campos como a biologia, a antropologia e a sociologia das relações raciais. A tese da transparência, a presunção ontoepistemológica que rege o pensamento pós iluminista, fundamenta o arsenal da analítica da racialidade, cujas condições de emergência ela mapeia nas teses da filosofia moderna presentes em autores como René Descartes, John Locke, Gottfried Wilhelm Leibniz, Immanuel Kant e Johann Gottfried Herder.

Estes filósofos reescrevem a peça da razão universal até a consolidação da tese da transparência, o que ocorre a partir de G.W.F. Hegel, que ao reconstruir o Sujeito moderno como Espírito, onde atualiza a autoconsciência como autodeterminante, engolfando tudo o que se torna acessível como objeto pelo sujeito, todo o existente se torna transparente, pois é concebido como um momento da trajetória da própria autoconsciência que se constrói interiorizando todo o mundo.

Dito de outra forma, o mundo é subsumido como que em um espelho que reflete o desenvolvimento histórico do próprio sujeito. Esta configuração do sujeito moderno pós iluminista, que ela vai denominar como o Eu transparente, é uma entidade cujo surgimento se localiza nos Estados imperiais da Europa pós-iluminista. A tese da transparência institui as condições de emergência da análitica da racialidade, o ferramental sociocientífico que opera nas relações jurídicas pós iluministas, instituindo o Eu transparente como o sujeito relacional produzido pelas alteridades do mundo que careceriam de autodeterminação, o Eu afetável.

Importante ressalvar que não se trata de uma atualização da dialética do senhor e do escravo hegeliana, onde o senhor seria o eu transparente e o escravo o eu afetável, em uma reescrita do conflito secular do espírito rumo à emancipação universal. Essa dialética não se aplica as condições da escravidão e da racialidade, pois estas operam com uma relação de violência e desigualdade, sem abertura ao reconhecimento mútuo, onde não há possibilidade de suprassunção (Aufhebung), criando uma oposição sem movimento de superação ou síntese. Na dialética racial, o círculo lógico que se forma resolve a causa e o efeito da subjugação racial como diferença racial.

Em pioneiros da biologia, como Georges Cuvier e Charles Darwin, são destacados por Ferreira da Silva enunciados inaugurais sobre a hierarquia das raças da humanidade em texto científico. Tratando sobre as leis da vida e seleção natural, iniciam relatos que viriam a operar as instituições nas condições ontoepistemológicas pós-iluministas. Darwin ao conceber o nomos produtivo, a lei da natureza que guiaria a evolução, situa o homem, o dito civilizado e branco, como estando além dos meios da seleção natural, sendo autoprodutivo e capaz de produzir autoperfeição (Ferreira da Silva, 2002, p. 235).

Ao contrário, as raças inferiores estariam sujeitas às leis da seleção natural, de modo que o eu transparente, está situado fora e sempre já vitorioso na luta pela vida, assim como seus outros relacionais são sempre já derrotados na luta pela sobrevivência, sendo compreendidos como fora da humanidade (civilizada e caucasiana, nos termos de Darwin) em relação a narrativa da evolução das espécies.

Os cientistas do homem, expressão que Ferreira da Silva usa para tratar dos antropólogos, do início do século XIX teriam sido responsáveis por dar acabamento ao conceito científico de raça. Entre seus fundadores, ela analisa obras de antropólogos como Paul Topinard, Daniel Brinton, Robert Knox, E.B. Tylor e o anteriormente mencionado, Paul Broca.

O manual deste último Instructions générales pour les recherches anthropologiques à faire sur le vivant [Instruções gerais para a pesquisa antropológica a ser feita em seres vivos] escrito para a Sociedade da Antropologia de Paris, descreve as técnicas e estratégias da antropologia, com o objetivo de aumentar a quantidade e a qualidade de dados sobre povos não europeus, com instruções sobre como diferenciar as raças. Sua obra desenvolve a craniologia, que com base em traços morfológicos, postula a diferença racial como conectada aos traços corporais. Também teorizou sobre a eugenia reprodutiva em seus escritos sobre a miscigenação.

A antropologia e sociologia do século XX continuou a desenvolver a analítica da racialidade, especialmente através do texto sobre a cultura. No Homo Modernos são analisados autores como Émile Durkheim, Franz Boas, A.R. Radcliffe-Brown e Claude Lévi-Strauss. No capítulo dez ela trata especificamente de autores brasileiros como Raymundo Nina Rodrigues, considerado o fundador da antropologia brasileira.

Nina Rodrigues em As raças humanas e a responsabilidade penal, argumenta que a miscigenação produz “corpos humanos que abrigam mentes patológicas” no Brasil, exigindo diferentes níveis de responsabilidade penal com base nas diferenças da composição racial (Ferreira da Silva, 2022, p. 398). Arthur Ramos, autor da primeira geração de antropólogos culturais brasileiros, liderou o famoso projeto da UNESCO sobre as relações raciais. Arthur Ramos via seu trabalho como uma sequência do projeto de Nina Rodrigues, pesquisando o que nomeou como origens tribais da personalidade cultural perdida do negro brasileiro.

E, por fim, Gilberto Freyre que, segundo Ferreira da Silva, em Casa grande e senzala, produziu a peça do engolfamento, na qual o patriarcado inscreve a marca da diferença brasileira: a democracia racial. Fundando a narrativa dominante das políticas raciais do Estado brasileiro no período. O engolfamento da diferença racial no texto brasileiro, por meio da violenta miscigenação patriarcal, se realiza na escrita da história brasileira como um processo temporal de obliteração dos africanos e indígenas.

Considerações finais

Nesse texto, a partir de um resumo da obra de Denise Ferreira da Silva, procurei mostrar como a ciência ajudou a construir um estado de coisas onde a chacina de pessoas racializadas não gera crise, não quebra a normalidade, a despeito de sua total ilegalidade e violência extrema.

Com isso, não viso fortalecer uma postura anti-intelectual ou contra a universidade, mas justamente trazer o questionamento a partir de dentro da universidade, sobre como mudar este estado de coisas instaurado, que teve e tem nos espaços de produção de conhecimento uma das suas fontes de poder e legitimação.

Não basta entrarmos na universidade, é necessário mudar as bases onto epistemológicas que regem a produção de conhecimento, suas carreiras e sua adesão implícita ou explícita as hierarquias raciais mantidas com sangue em nossa sociedade.

*Gabriel Silvabacharel em filosofia, é mestrando em Antropologia Social na Unicamp.

Referências


FIRMIN, Antenor. Igualdad de las razas humanas, Havana. Editorial de ciencias sociales, 2013.

FERREIRA DA SILVA, Denise. Ninguém: direito, racialidade e violência. Meritum, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 67-117, jan./jun. 2014.

FERREIRA DA SILVA, Denise. Homo Modernus: Para uma ideia global de raça. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável: uma crítica feminista, racial e anticolonial do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2024.

WYNTER, Sylvia. Nenhum Humano Envolvido: Carta Aberta a Colegas. Trad. de Stella Z. Paterniani e Patricia D. Fox. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias (orgs.), Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: crocodilo/n-1, 2021 [1994].

Imagem: Jorge Fernández Salas

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Confira também: Elias Jabbour: Estado fraco, crime forte e o preço do neoliberalismo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/elias-jabbour-neoliberalismo.html 

Minha opinião

Fundamentalmente analógico 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65    


Nunca resisti às novas tecnologias, por curiosidade e mesmo por conforto. E também por um profundo respeito ao trabalho humano — dos cientistas e dos operários. 

Daí a perder tempo com certos detalhes vai uma distância de anos-luz. Por exemplo, tentar entender o real significado dos emojis.

Na verdade, em relação às carinhas de diversos tipos e colorações guardo até certo preconceito. Talvez pelo apego às coisas ditas como são e à clareza das palavras escritas ou pronunciadas. 

Você manda uma mensagem atenciosa a respeito de determinado assunto e obtém como resposta o minúsculo desenho de uma carinha sorridente. Por que não a gratidão expressa com todas as letras?

Entretanto, após muitos anos de comunicação digital, me permiti duas exceções: o polegar para cima, para dizer que gostei ou que concordo; e o coraçãozinho minúsculo, vermelho ou lilás, como expressão de afeto. 

Só. Não mais do que isso — e assim mesmo meio que tímido ou envergonhado. 

Eis que agora descubro que o emoji tem uma importância que jamais imaginei! O Globo dedica matéria de alguns parágrafos a um emoji especificamente, o da cara amarela derretida, que estaria sendo usado erroneamente pela grande maioria dos internautas.

O dito cujo (que nunca havia despertado a minha atenção, arre!) “aparece sobre uma poça enquanto sorri de lado... Muitos o usam com ironia, o que gera a dúvida sobre qual é seu verdadeiro significado”, assinala a matéria.

Depende da interpretação de quem o usa ou de quem o recebe. E do contexto da conversa, modestamente acrescento. Pode significar sarcasmo, resposta a algo considerado absurdo ou comentário de duplo sentido, como também uma forma de suavizar um erro com humor, vergonha, embaraço ou cansaço...

Se o assunto é tão importante assim, a ponto de merecer matéria de destaque, cá com meus modestíssimos teclados me vejo como quase analógico, pois sequer prestara atenção ao tal emoji.

Se mal compreendo, vale para os emojis o dito pelo inesquecível Chacrinha: “não vim para explicar, eu vim para confundir”. Oxente!

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Leia também: Intolerável vício de linguagem https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/minha-opiniao_29.html 

Humor de resistência

 

Céllus

Prisão de Bolsonaro: o resumo jurídico que você precisa entender https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/bolsonaro-sob-os-rigores-da-lei.html 

Fotografia

 

Helia Scheppa

Leia: Figuras em IA não geram direito de imagem https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_23.html 

Economia global em transição

O centro de gravidade da economia mundial se desloca para a Ásia
Os EUA tentaram usar pressão econômica e militar para manter uma posição dominante na Ásia, mas a ascensão da China e a agenda da região tornaram isso cada vez mais difícil.
Tricontinental   

No último dia de outubro de 2025, líderes das 21 nações do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec) se reuniram na cidade de Gyeongju, na República da Coreia (Coreia do Sul), para a 33ª cúpula da organização. Desde sua fundação em 1989, em Canberra, Austrália, a APEC tem promovido a construção de uma zona de “comércio livre e aberto” — um conceito delineado pelas Metas de Bogor, que surgiram da cúpula realizada na Indon&eacu te;sia em 1994.

A APEC é um produto de seu tempo. Primeiro, surgiu como um instrumento do Conselho de Cooperação Econômica do Pacífico do Japão, com o objetivo de construir cadeias de suprimentos regionais após o Acordo Plaza (1985), que valorizou o iene em relação ao dólar. Segundo, foi concebida durante a Rodada Uruguai (1986-1994) do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), que terminou com a formação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa foi a era da liberalização comercial, quando os Estados Unidos e seus parceiros do G7 — imbuídos da sensação de que a História havia chegado ao fim e que todos os países girariam em torno dos EUA para sempre — pressionaram outras nações  a abrirem suas economias para as corporações do Atlântico Norte e do Japão. Os EUA esperavam qu e o Tratado de Maastricht (1993), que criou a União Europeia, levasse a um acordo de livre comércio transatlântico (embora isso nunca tenha acontecido) e que o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) (1994) vinculasse o Canadá e o México aos EUA perpetuamente.
 

Durante anos, os EUA participaram das cúpulas da Apec e pressionaram por uma área de livre comércio que permitisse às suas corporações dominar a região. As Metas de Bogor, de 1994, tinham esse objetivo, mas fracassaram por diversos motivos – incluindo o receio interno de que o crescente poderio industrial da Ásia superasse a competitividade dos EUA. Em 2005, quatro países (Brunei, Chile, Nova Zelândia e Singapura) assinaram o Acordo de Parceria Econômica Estratégica Transpacífica (TPEP), que adicionou mais oito países (Austrália, Canadá, Japão, Malásia, México, Peru, EUA e Vietnã) até 2013. Mas foi muito pouco, e muito tarde. A crise financeira de 2008 abalou o Sul Global, que passou a reconhecer a fragilidade das economias do Atlântico Norte e a necessidade de construir uma alternativa de comércio e desenvolvimento Sul -Sul.

Em 2007, às vésperas da crise financeira, a China já era a terceira maior economia do mundo. Em 2010, ultrapassou o Japão e se tornou a segunda. Hoje, a China é o maior parceiro comercial da maioria dos países da região Ásia-Pacífico, incluindo 13 dos 21 países da Apec. Após a crise financeira de 2008, os países da Bacia do Pacífico deixaram de priorizar um acordo de livre comércio com os EUA. E quando o presidente dos EUA, Donald Trump, retirou seu país da Parceria Transpacífica em 2017, os países restantes continuaram as negociações sem a presença de Washington. Dez dos onze signatários do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica, que surgiu dessas negociações, eram membros da Apec. 

Em uma cúpula da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) em 2011, alguns membros discutiram a possibilidade de um acordo de livre comércio com foco na Ásia. As negociações prosseguiram com a certeza de que os dez membros da Asean – mais a China e a Índia – formariam uma importante rede comercial. A Índia acabou desistindo, mas todos os dez países da Asean, assim como a China, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia, permaneceram no processo. Em 2020, esses países assinaram a Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP) — o maior bloco comercial do mundo, com quase um terço da população mundial (2,3 bilhões) e 28% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Em comparação, a União Europeia representa cerca de 18% do PIB mundial, enquanto o Nafta representa aproximadamente 30% do PIB mundial. A RCEP alcançou uma forma de “comércio livre e aberto” — o que a APEC aspirava atingir com suas Metas de Bogor – enquanto os EUA permaneceram isolados.

Mas os EUA mantêm pelo menos dois instrumentos para exercer poder na região Ásia-Pacífico: a Apec, menos um fórum econômico e mais um instrumento para os EUA disciplinarem seus aliados asiáticos, e a Rimpac [Rim of the Pacific], seu braço militar. Esta foi criada em 1971 como parte da arquitetura da Guerra Fria contra a União Soviética, mas se transformou em um mecanismo para exercer poder naval contra a China e outros países que buscam soberania. A Rimpac, organizada pelo Comando Indo-Pacífico da Marinha dos EUA e sediada no Havaí, agora inclui ativos militares israelenses. Isso deve criar problemas para membros como Colômbia, Chile e Malásia, que adotaram posições firmes contra o genocídio israelense em curso contra os palestinos. Todos os países da Apec participam da Rimpac, exceto China, Rússia e Vietnã (a China participava até ser excluída em 2018).

A sobreposição entre os membros da Apec e da Rimpac revela a tentativa dos EUA de exercer hegemonia por meio do consenso econômico (por meio da APEC, que coordena os circuitos econômicos do capitalismo) e da coerção militar (por meio da Rimpac, que garante as condições militares para essa ordem econômica). Embora a Apec pareça tratar apenas de investimentos, cadeias de suprimentos e economia digital, ela é, na verdade, um mecanismo para garantir que os EUA — com pelo menos 260 bases militares e instalações rotativas, da Base Aérea da Raaf em Darwin, na Austrália, à Base Aérea de Kadena, no Japão, e com as manobras militares da Rimpac — permaneçam a potência dominante na região. A estratégia dos EUA para conter a China está agora firmemente ancorada na dinâmica Apec-Rimpac. In capazes de contestar a prosperidade econômica da China e de seus vizinhos, os EUA recorrem a campanhas de pressão militar e diplomática.

A cúpula na Coreia do Sul foi marcada por manifestações em massa lideradas por sindicatos de trabalhadores da indústria e agrícolas, grupos de direitos humanos e organizações estudantis. Também houve focos de apoiadores ultranacionalistas do ex-presidente Yoon Suk Yeol (2022–2025), do Partido do Poder Popular (de direita), que declarou lei marcial em 2024. Mas esses grupos não representaram a maior parte das manifestações, que visam a criação de uma economia centrada nas pessoas na Coreia do Sul e se opõem à tentativa de usar a cúpula da APEC para consolidar a elite política do país, que permanece abalada pela queda de Yoon.

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Contradições aguçadas no mundo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/palavra-do-pcdob.html 

Palavra de poeta

O IMENSURÁVEL EM NÓS
Maurílio Rodrigues  

Foi tão pouco
O que dividi contigo,
Apenas uma vida ,
Que deveria durar mais.
 
Contigo tenho o barco
No rumo certo,
E a lua, sorrateiramente,
Só brilha para nós.
 
Quando sorrimos ,
Somos um só sorriso.
Quando choramos,
Somos uma só lágrima.
 
Quando não falamos,
Dizemos tudo que pensamos.
Quando nos olhamos,
Dois amantes se olham.
 
Te amo, como se ama
As noites vestidas de você.
Como um amor incestuoso,
Trocando intimidades.
 
Te amo, com todos
Os perdidos e achados ,
Que ocorrem na vida a dois,
De inteira reciprocidade.
 
Te chamarei pelo nome,
Mas não precisas responder,
Ao deixares tuas sandálias,
Junto as minhas, já respondestes.
 
A breve sentença do amor,
Cumprimos por inteiro,
Agora, resta despertarmos ,
Na nostalgia do infinito.
 
Leia também um poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/palavra-de-poeta_27.html 

Minha opinião

É a correlação de forças, ora!
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

Verdade que da promulgação da Constituição, em 1988, aos dias que correm muito aconteceu — tanto através de PECs, como por operações infraconstitucionais. 

Temos um Estado dito de direito democrático, porém disfuncional. 

Em período recente, precisamente durante a desastrosa gestão do ex-presidente hoje prisioneiro Jair Bolsonaro, poderes discricionários foram adotados favorecendo deputados e senadores no manuseio de recursos do Orçamento.

São as chamadas PIX, criadas pela Emenda Constitucional nº 105/2019, que permite a execução direta de recursos para estados e municípios, sem a obrigatoriedade de convênios com a União, de uma automaticidade suspeita. 

Isto como componente de uma instabilidade no equilíbrio entre os chamados três poderes da República. O Executivo perdeu temporariamente força relativa. 

Verdade, porém em última instância em função da correlação de forças real expressa na composição das duas Casas parlamentares; estampando o contraste entre o programa do governo e a maioria parlamentar posicionada contra. 

Analistas de diversas espécies e convergente superficialidade parecem esquecer que cerca de 4/5 dos deputados federais se elegeu apoiando o candidato derrotado, Bolsonaro.

Governar nessas circunstâncias não é simples, obviamente. Demanda imensa flexibilidade e predisposição a negociar cada matéria importante fazendo concessões quase espúrias. 

Esta é a variável que se apresenta no tempo presente — a correlação de forças —, que dificulta a prática do que se convenciona chamar "presidencialismo de coalizão", mas não o extingue.

O campo de forças democrático e progressista, na hipótese da reeleição do presidente Lula, terá que alcançar maioria parlamentar absolutamente necessária à governabilidade.

Não é fácil, mas pode ser possível. Veremos.

[Qual a sua opinião?]

Leia também - Paulo Nogueira Batista Jr.: "Pluto-, clepto- e kakistocracia"  https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/paulo-nogueira-batista-jr-opina.html 

Humor de resistência

 

Nando Motta

Leia: Vitória da democracia! https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/editorial-do-vermelho_12.html 

Walter Sorrentino opina

O Agente Secreto: um filme que fala às emoções e à alma brasileira
Narrativa de Kleber Mendonça revela afetos e contradições do país em silêncios, humor e imagens marcantes, com Wagner Moura em atuação que acentua a força simbólica do filme
Walter Sorrentino/Portal Grabois www.grabois.org.br   

Assisti O Agente Secreto e saí tomado por uma emoção difícil de traduzir. Não escrevo como crítico de cinema — não tenho esse ofício —, mas como alguém que deixa a arte atravessar. O filme de Kleber Mendonça Filho me falou diretamente às emoções, à memória e a algo profundo da minha formação como brasileiro. Talvez por isso eu o tenha amado tanto.

Há ali uma brasilidade que não é apenas retratada: é refratada. O filme desvia, decompõe e devolve ao espectador um Brasil que reconhecemos mesmo quando preferimos esquecê-lo. Digo isso como alguém que precisou se “abrasileirar” pela cultura, quase por escolha, à falta de raízes genealógicas fincadas aqui. Talvez por isso a experiência tenha sido tão intensa: o filme escava aquilo que este povo tem de mais belo: o acolhimento afetivo, a solidariedade, o apego à vida, o lúdico e o sensual. Ao mesmo tempo, revela a violência estrutural e sistêmica que atravessa nossa história social e política.

Somos um país que cultiva pouco a própria memória. Carregamos o que chamo de esquecimento ativo: um mecanismo para “ir levando”, para sobreviver à dureza da vida. Esse esquecimento é quase um personagem do filme. Kleber o traduz pela eloquência dos silêncios, pela narrativa fractal, pela textura da fotografia, pela respiração da música e por momentos macunaímicos de humor, delírio e poesia popular. Há uma sátira doida da perna cabeluda, marchinha de carnaval, um “alemão” saudado como soldado de Hitler que era um judeu do gueto, imagens que poderiam ter saído de Fellini ou Sorrentino, e que só fazem sentido no caldo da nossa cultura.

Wagner Moura está um cão — expressão que aqui é elogio absoluto. A interpretação dele costura a oscilação entre o grotesco e o sublime, traço tão nosso. O filme é “de época” e, ainda assim, absolutamente contemporâneo. Como observou o próprio Kleber, enraizado no passado e no presente. Já nasce clássico, tal como Bye Bye BrasilCentral do Brasil e outras obras que ajudaram a contar quem somos. 

Talvez porque o Brasil seja mesmo para profissionais: território onde as coisas são e não são ao mesmo tempo, onde a lógica e a ilógica convivem, onde luz e sombra se abraçam. É quase mecânica quântica. Só poetas como Jobim, Gil e Caetano captam plenamente esse país e esse filme bebe dessa mesma fonte.

Se vai ao Oscar? Talvez. Se importa? Não muito. O que realmente importa é a força desse cinema brasileiro que insiste, resiste e revela, com arte e técnica, a complexidade de um povo que não cabe em sínteses fáceis.

Ainda preciso descobrir por que recebeu este título. Enquanto isso, celebro Kleber Mendonça Filho e todos os que fazem o nosso cinema pulsar.

Viva o cinema brasileiro!

Walter Sorrentino é presidente da Fundação Maurício Grabois.

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Leia também "O agente secreto", uma opinião crítica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/o-agente-secreto-critica.html 

29 novembro 2025

Cássia Eller: O segundo sol


Uma crônica de Urariano Mota

Falando sobre a ditadura para um jovem estudante
Em respostas francas a um jovem estudante, o autor revisita memórias da ditadura, relata riscos vividos na clandestinidade e alerta para a gravidade do terror de Estado no Brasil.
Urariano Mota/Vermelho  

Por e-mail, recebo estas perguntas de um estudante de escola pública, que não me autorizou a divulgar seu nome. Copio o que respondi ao jovem, na medida da minha experiência.

1. Como era seu dia a dia na época do governo militar no Brasil? A ditadura afetou algum aspecto do seu cotidiano ou de sua família?

– Terrível. O cotidiano era um pesadelo. Fui morar em pensão, e lá abriguei companheiro perseguido, o que era um altíssimo risco, porque se ele fosse pego, seríamos os dois presos, torturados e mortos. Pude abrigar companheiros clandestinos, escondidos da polícia e da dona da pensão também.  Como se não bastasse, no mesmo quarto em que eu dormia, estava debaixo da minha cama um mimeógrafo (um objeto que reproduzia documentos, que para nós era como uma pequena gráfica). Eu conto isso em meu romance “A mais longa duração da juventude”.

 2. Alguma notícia marcou você no período da ditadura militar, qual?

– Muitas coisas me marcaram. Uma das mais graves foi o massacre, chamado de caso da Granja São Bento, onde um amigo foi assassinado. Foram seis mortos de uma só vez, que a ditadura chamava de “terroristas”. Entre eles estava Soledad Barrett, sobre quem escrevi o romance “Soledad no Recife”, e que retorna em outro romance, “A mais longa duração da juventude”.  

3. Você ficou sabendo sobre as pessoas que foram perseguidas do regime militar?

– Sim. Nós nos comunicávamos por panfletos (pequenos textos mimeografados) clandestinos, que faziam as denúncias dos mortos e torturados pela ditadura. E também pelo que éramos informados nos “pontos” que tínhamos – “ponto” era um lugar de encontro de subversivos. A demora máxima pra ficar no local era de 5 minutos, no máximo. Caso contrário, era abandonar ligeiro o lugar, sem olhar para trás. O companheiro atrasado poderia ter sido preso e podia “abrir” o lugar do encontro. Todos tínhamos relógios acertados pela Rádio Tamandaré, no Recife.

4. Casos de perseguição ou tortura eram do conhecimento de todas as pessoas?

– Não.  A imprensa, toda a imprensa, era censurada. Havia censores policiais e militares nas redações dos jornais. O teatro, a música, o cinema estavam sob censura. Os artistas foram exilados na Europa (Chico Buarque, Caetano Velos, Gilberto Gil…). Então os crimes, os sequestros de pessoas eram um segredo de Estado. Um jovem militante morria e o exército negava que o preso houvesse estado sequer no quartel. A polícia entrava nas casas dos suspeitos a qualquer hora. E ai de quem comentasse o que havia visto. Podia ser preso também, E “desaparecido”. Os corpos eram enterrados sem identificação, como indigentes. Alguns deles em valas coletivas. O terror, o terror absoluto.

5. Qual era a sua opinião sobre a ditadura militar naquela época? Atualmente sua opinião era a mesma ou mudou? Por quê?

– A minha opinião, na época, era a consciência de viver sob um regime de terror. Vivia cheio de angústia, a mais profunda angústia. E não podia fugir ao dever de ajudar os companheiros perseguidos. Eu não ia entregá-los à morte por minha omissão. Então eu me fazia presente, por dever de consciência. Não por alegria ou coragem. Com medo. Mas com medo também se age. A minha opinião hoje é mais madura. Tanto que escrevo sobre o período livros que são romances, artigos que são lidos e comentados. Jamais gostaria de voltar àquele tempo. Mas na memória já me encontro lá, de modo permanente. Sei o que é a ditadura brasileira. Sobre ela escrevo.

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Leia também E agora? Só a Papuda salva https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/enio-lins-opina_25.html

Thiago Modenesi opina

Pluribus: quando a paz se torna a mais sutil das tiranias
A distopia criada por Vince Gilligan transforma a busca por harmonia em ameaça silenciosa, mostrando como a paz total pode corroer liberdades e sufocar a diversidade democrática.
Thiago Modenesi/Vermelho    

A nova série de ficção científica da Apple TV, Pluribus, emerge não apenas como um produto de entretenimento, mas como um espelho inquietante dos dilemas das democracias contemporâneas. No centro de sua narrativa está um debate fundamental e urgentíssimo: até que ponto a busca pela harmonia e pela paz social justifica a supressão de direitos individuais e a homogeneização do pensamento? A série nos alerta, de forma sutil e por isso mesmo perigosa, que a maior ameaça à liberdade pode não vir do caos, mas de uma ordem imposta a qualquer custo.

Vince Gilligan, criador dos sucessos Breaking Bad e Better Call Saul, volta com uma nova série que já se tornou o maior sucesso da plataforma de streaming Apple TV e vem angariando elogios semana após semana em que seus episódios são disponibilizados aos espectadores. Pluribus, a palavra em latim, está no lema dos Estados Unidos, “E pluribus unum” (“de muitos, [faz-se] um”), e é uma ode ao espírito coletivo na época da independência do país.

Pluribus nos apresenta um mundo em que um vírus da felicidade vem do espaço e se espalha por toda a humanidade. O conflito e a discórdia são erradicados, já que todos fundem suas mentes e emoções por todo o planeta, com pouquíssimas exceções (13 pessoas). A princípio, soa como uma utopia realizável quem não desejaria o fim da polarização tóxica que assola nossas praças públicas e digitais?

Essa unidade emocional que apresenta aos poucos que não foram incluídos um panorama em que a felicidade, a segurança e união de maneira absoluta trazem um mundo sem violência, sem riscos, sem polêmicas, mas também oferta um mundo em que alguns não conseguem se moldar ao padrão da vez e o desconforto que isso nos traz. Aqui o seriado de Gilligan nos cutuca com a questão: no mundo real, quando quase todo mundo pensa da mesma maneira, onde se encaixam aqueles poucos que não sentem o mesmo?

O diabo reside nos detalhes, e o preço dessa paz, felicidade e união plena é a abdicação da autonomia. Para eliminar o mal-estar social, o sistema precisa primeiro defini-lo. E é aí que a linha entre proteção e opressão se dissolve.

No mundo de hoje, a supressão das opiniões divergentes não se manifesta através de tanques nas ruas, mas de algoritmos que as identificam e as neutralizam antes mesmo que sejam expressas. Os direitos à privacidade, à liberdade de expressão e até ao livre arbítrio são corroídos em nome de um bem-estar coletivo supostamente superior.  

A série explora essa tirania suave, onde os cidadãos não são oprimidos por um líder carismático, mas por uma lógica aparentemente imparcial e inquestionável, apresentada ao espectador com sorrisos e promessas de felicidade plena, trazidas pelo vírus cósmico.

A genialidade de Pluribus está em como ela reflete, de forma ampliada, mecanismos já em operação em nossas vidas. As redes sociais já buscam criar “bolhas” de consenso, promovendo conteúdo que engaja e, frequentemente, suprimindo (através de shadow banning ou remoção) o que foge de um padrão de comunidade ou do que é considerado “verdade” por um grupo, já fazem virtualmente o que o vírus do seriado faz fora das telas e redes.

O desconforto de Carol (vivida pela atriz Rhea Seehorn, que já havia atuado nos dois seriados anteriores de Gilligan)em Pluribus é o mesmo de todos aqueles que não se moldam ao padrão do momento, a série é sobre ela, mas também é sobre nós.

Esse vírus em Pluribus, embora inicialmente concebido para proteger, cria uma ilusão de harmonia. Ela nos poupa do desconforto do contraditório, da complexidade dos argumentos e da necessidade de exercitar o pensamento crítico. O perigo, como ilustra Pluribus, é quando essa dinâmica extrapola o que já vivemos no ambiente digital e se torna o princípio organizador da sociedade, a série exagera para nos fazer enxergar que a quase totalidade ali é feliz porque passa sentir o mesmo, absorvidos por uma entidade coletiva, mas isso na verdade se torna uma prisão, já que a felicidade tão propalada no seriado, que não suporta a ambiguidade, se torna desumana. A diversidade de opiniões e pensamento, essencial para o vigor de qualquer democracia, é tratada como algo a ser erradicado. A discordância e ser diferente, não participando da coletiv idade viral em Pluribus, torna-se sinônimo de perigo, e o debate, o oxigênio da política, é asfixiado.

Uma democracia saudável não é aquela livre de conflitos, mas sim aquela capaz de geri-los através de instituições fortes, diálogo e respeito às minorias. O modelo de Pluribus oferece um atalho perigoso: a eliminação do conflito pela eliminação da diferença. Essa é uma corrosão silenciosa. Não há necessidade de golpes de estado quando a população, anestesiada pela promessa de segurança e paz, abre mão voluntariamente de suas liberdades.

Em tempos de crise de confiança nas instituições e de overload informativo, a tentação por uma solução tecnocrática e/ou autoritária é grande. Pluribus serve como um alerta contra essa sedução. Ela nos lembra que a verdadeira resiliência de uma sociedade está em sua capacidade de absorver, criticar e integrar visões de mundo distintas. A uniformidade do pensamento é um sintoma de morte intelectual e política, não de saúde social.

Pluribus se firma como uma obra distópica crucial para o nosso tempo. Ela vai além da crítica clássica ao totalitarismo e ataca o cerne de uma vulnerabilidade moderna: nossa fadiga do conflito e nosso desejo por conforto cognitivo.

A série nos força a questionar: estamos, em nossa busca por um ambiente online e offline mais civilizado, inadvertidamente construindo os mecanismos da nossa própria servidão? A paz que vale a pena ter é a que surge do respeito mútuo na diferença, ou a que é imposta pela supressão dela? Ao dramatizar as consequências de escolher a última opção, Pluribus não é apenas um aviso, mas um chamado para defendermos o direito ao dissenso, o ruído da discordância e a beleza desarrumada da diversidade de pensamento. Pois é nesse solo fértil e por vezes incômodo, e não no árido campo da unanimidade forçada, que as democracias verdadeiramente florescem.

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Leia também: "O agente secreto", uma opinião crítica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/o-agente-secreto-critica.html

Minha opinião

Unidos pelo entulho
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65   

Alguém já disse - na verdade, milhares de pessoas dizem isso - que a rivalidade entre times brasileiros de futebol enseja mais amor, alegria, revolta, ódio e tristeza do que uma guerra entre dois países. Muito além do racional. Pura e cega emoção. Fanatismo.

Silvio Guimarães, meu colega de turma na antiga Faculdade de Medicina da UFPE, quando presidia o Sport Clube do Recife, não faz muito tempo, teve seu gabinete invadido por um velho amigo que lhe atirou ao peito a carteira de sócio rubro-negro, semidestruída, e aos gritos protestou porque um patrocinador do clube havia pintado seus anúncios no estádio da Ilha do Retiro em cores vermelho e branco. Ora, isso é coisa de alvirrubro, do arquirrival Clube Náutico Capibaribe! Inadmissível. Que a logomarca da empresa se transmutasse em vermelho e preto ou não tinha acordo.

Salvo engano meu, o acordo foi feito e mudaram-se as cores da logomarca, pelo menos no estádio do Leão da Ilha. E o sócio continuou sócio.

Também ouvi falar que um corintiano apaixonado teria ido às lagrimas porque um filho, vítima de infecção intestinal, teria defecado verde. Como admitir em sua própria família esse absurdo, merda na cor do Palmeiras, jamais!

Mas eis que, dias atrás, vi na TV que boa parte da metralha resultante da demolição do Parque Antarctica, do Palmeiras, serviu como matéria prima na construção da futura arena do Corinthians, em Itaquera, na forma de brita reciclada. Isto sem conhecimento prévio dos diretores dos dois clubes, segundo informa a empresa envolvida no caso.

E agora? Aceitarão os corintianos esse supremo sacrilégio, que os fará pisar no solo sagrado de sua própria arena sabendo que nos alicerces há material outrora pertencente ao Palestra Itália? Pelo andar da carruagem, quer dizer, da construção, já não há mais o que fazer. A obra já tem pouco mais de 90% realizada. Termina em dezembro. 

Bobagem! - diz o amigo Epaminondas, com quem comento o assunto, ele próprio americano fanático, incapaz da menor concessão ao adversário ABC, nas pelejas norte-rio-grandenses. – Torcedor tem jeito pra tudo, amigo. Pois a turma do timão, em São Paulo, pode dizer que, nas arquibancadas, pulará sobre farelos de concreto alviverdes. Com força e com ódio.

Talvez sim. Em matéria de futebol, mais ainda de confronto entre torcidas enfezadas, todo argumento é válido, a mais grotesca sublimação assume ares de tese fundamentada, racional e correta.

Aqui mesmo na heroica terra do Frei Caneca, o Santa Cruz amarga há alguns anos a terceira divisão do futebol brasileiro. Suprema humilhação para a grande nação tricolor, campeã de público nos estádios, vencendo até para os grandes times do Rio e de São Paulo.

Errado. A nação tricolor torce sim para voltar à chamada divisão de elite do futebol nacional, mas enquanto isso comemora três títulos consecutivos no campeonato estadual. E ainda tripudia sobre torcedores do Sport e do Náutico: no século 21, só o santinha conseguiu ser tricampeão. E estamos conversados.

Crônica de outubro de 2013

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Leia também: "Palavras fora de lugar" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/minha-opiniao_7.html 

Palavra de Cecília Villanova

“Uma cena estúpida?/ - Um poeta escreve/e rasga seus sentimentos.”

Cecília Villanova  

Leia: A gratidão dos bichos e os riscos da clonagem https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/minha-opiniao_6.html