31 agosto 2025

Palavra de poeta

Protuberância

Ana Cristina Cesar     


Este sorriso que muitos chamam de boca

É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito ma madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

[Ilustração: Albena Vatcheva]

Leia também "O poço", poema de Pablo Neruda https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/palavra-de-poeta_8.html 

Postei nas redes

Oposição tenta inviabilizar a tributação dos super-ricos como forma de derrotar o governo. Se conseguir a sem-vergonhice, será derrota do povo, isto sim. 

Convergência necessária e possível https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/minha-opiniao_15.html

China: desenvolvimento

China atualiza conceito da economia de projetamento de Ignácio Rangel
Gabriel Dalpiaz e Elias Jabbour analisam, na Revista Princípios, como o socialismo chinês aplica a dialética rangeliana à modernização e à planificação econômica
Leandro Melito/Portal Grabois www.grabois.org.br  

O conceito de projetamento elaborado pelo economista brasileiro Ignácio Rangel (1914-1994) para analisar economias planificadas, a partir da experiência da União Soviética, foi mobilizado por Gabriel Dalpiaz e Elias Jabbour para analisar a experiência atual do socialismo chinês no artigo “Análise filosófico-econômica do conceito de projetamento no socialismo chinês do século XXI“, publicado na edição número 172 da Revista Princípios.

Dalpiaz e Jabbour destacam a necessidade de compreender a dialética hegeliano-marxista para analisar de forma efetiva a realidade chinesa. “Reconhecer o desenvolvimento chinês em sua complexidade não é considerar as formas históricas e conceitos como predefinidos — como fazem os cientistas sociais ocidentais —, mas em um processo dialético”, apontam no artigo.

A partir dessa perspectiva, o texto apresenta as características do modelo chinês enquanto uma experiência de socialismo no século XXI, com uma economia política ditada por um planejamento central e guiada por meio de projetos, que se enquadram no conceito de economia do projetamento elaborado por Ignácio Rangel na obra Elementos de economia do projetamento (1959).

A teoria desenvolvida por Rangel é baseada na dialética e elaborada a partir da relação de custo e benefício, instrumentos norteadores de uma economia planificada que prioriza o olhar científico sobre a economia política para determinar não apenas o que é vantajoso para a empresa, mas também para a sociedade.

Esse modelo, argumentam os autores, só pode ser aplicado em economias planificadas, “visto que o benefício não virá necessariamente a curto prazo”.

Em uma sociedade capitalista, em que um dos blocos históricos do poder político dominante é o capital financeiro, fica inviável a aplicação do projetamento, pois aquele se utiliza da prática de aplicar o dinheiro de seus acionistas no mercado financeiro para obter lucro imediato, tornando a técnica obsoleta, em vez de aplicar esses recursos na transformação tecnológica da empresa e avançar na fronteira do conhecimento.

Diferente do Brasil e outros países capitalistas que têm como um dos blocos históricos de poder político dominante o capital financeiro, os autores apontam que a China, tendo o PCCh como um bloco histórico de poder político com orientação socialista, consegue desenvolver as suas tecnologias sem ceder ao capital financeiro, e, portanto, utiliza os seus ativos para o desenvolvimento do próprio país. 

Nesse sentido, Dapiaz e Jabbour apontam que é a partir da procura da razão entre custo e benefício que se dá a modernização chinesa nas áreas urbanas e o desenvolvimento industrial do país. “O novo projetamento no socialismo chinês proporciona a elevação da técnica em um período em que se estabelece a Quarta Revolução Industrial, com o PCCh construindo as ferramentas para esse processo”, destacam os autores.

Os autores concluem que o pensamento de Rangel renasce no socialismo com características chinesas.

O projetamento é uma resposta como teoria e método, que corresponde a uma necessidade histórica, em que o Estado chinês, como ente, procura se desenvolver em prol da nação. A atual planificação chinesa consegue deixar o terreno fértil para o projetista elaborar o seu raciocínio em prol do país. Busca-se o benefício à sociedade, superando problemas que muitas das vezes são naturalizados em economias capitalistas, que buscam o lucro imediato em vez do investimento em tecnologias que darão resultados mais tardios.

Socialismo, China e nova economia do projetamento

O conceito de economia do projetamento foi trabalhado nos números 171 e 172 da Revista Princípios, lançados no início deste mês na Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes).  O conceito de projetamento foi objeto de uma chamada de artigos que, devido ao grande número de contribuições, resultaram em um dossiê publicado nas edições consecutivas da revista, organizadas por Elias Jabbour.

“Esses dois dossiês da Princípios são um marco no processo de renovação do debate sobre o socialismo no nosso país”, destaca Fábio Palácio, editor da revista. “O conceito de projetamento é hoje vértice de um conjunto de elaborações inovadoras, que tentam lançar luz sobre o fenômeno chinês e, de forma mais ampla, sobre a alternativa socialista na atualidade.”

Na edição 171 foram publicados estudos empíricos, voltados ao exame de aspectos específicos da vida chinesa e na edição 172 foram publicados artigos teóricos e conceituais que refletem sobre o significado da nova economia do projetamento para os desafios da transição ao socialismo no século XXI.

“Percebe-se, na China dos últimos anos, a descoberta de novas formas de governança e o surgimento de superiores formas de planificação econômica. O socialismo se transforma em uma ‘sociedade de projetamento’ – forma histórica marcada pela transformação da razão em instrumento de governo”, destaca Palácio.

Serviço

Revista: Princípios (Qualis A3)
ISSN: 1415-7888 | E-ISSN: 2675-6609
Editora: Anita Garibaldi
Para ler a edição completa online:

Princípios 171: China e nova economia do projetamento

Princípios 172: Socialismo e nova economia do projetamento

Adquira a versão impressa: Clique aqui

Desigualdades regionais no tempo presente https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/meu-artigo-no-portal-grabois-3.html

Arte é vida

 

Vilmos Aba-Novak

Com tarifas abusivas e ingerência política, Trump testa o Brasil https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/walter-sorrentino-opina.html 

A sua identidade importa

 


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Ilustração: Gil Vicente

Blog de Luciano Siqueira 

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Humor de resistência

 

Luis Fernando Verissimo

Falava muito pouco, mas fazia o Brasil inteiro rir https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/um-estilo-unico.html

30 agosto 2025

Mestre da crônica

Morre Veríssimo, vive a crônica
O escritor que poderia ter sido tudo fez da crônica sua bandeira. E assim mostrou que, na brevidade, cabe o infinito
Thales Machado/O Globo  


Um cronista, o cronista. Luís Fernando Veríssimo tinha todas as ferramentas para ser o que quisesse: romancista de prateleira alta, poeta de auditório cheio, ensaísta de rodapé de cátedra. Mas preferiu a esquina do jornal, a mesa pequena da crônica, onde cabem uma boa piada, um gole de ironia e uma piscada para o leitor.

Não foi por falta de talento que se contentou com esse “formato menor”. Foi justamente por excesso: o talento transbordava tanto que não precisava de tapete vermelho. A crônica era o botequim perfeito para a sua inteligência: um lugar onde se pode falar de futebol como quem fala de filosofia, e de filosofia como quem comenta um gol perdido.

Por isso, a morte de Veríssimo não leva só um escritor. Leva uma instituição. Leva o cara que fez da crônica uma trincheira contra a sisudez e a favor do riso bem pensado. Morre mais que o autor; morre um defensor da beleza de escrever curto sem ser raso, leve sem ser bobo, engraçado sem ser superficial.

Fica o eco: viva a crônica, viva o cronista. E, se alguém perguntar se esse gênero “menor” resiste, a resposta é simples: resiste porque Veríssimo mostrou que naqueles textos curtos cabem todas as grandezas.

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Leia também: O gigolô das palavras https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/verissimo-humorismo-literario.html

Palavra de poeta

A noite na ilha
Pablo Neruda 

Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.

Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.

Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.

Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

[Ilustração: Marc Chagall]

Leia também um poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/palavra-de-poeta_27.html 

Postei nas redes

A evidente recorrência de fatos e atitudes e a clareza dos autos do processo fazem com que agora não se tenha dúvidas da condenação de Bolsonaro e já se discuta se cumprirá pena no presídio da Papuda ou numa dependência da Polícia Federal. 

Mergulhar fundo para avançar na superfície https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/11/meu-artigo-no-portal-da-fundacao.html

Um estilo único

Luis Fernando Verissimo falava muito pouco, mas fazia o Brasil inteiro rir
Cronista criou estilo único inspirado nos mestres americanos e conquistou com a sua observação elegante do absurdo cotidiano
Ruy Castro/Folha de S. Paulo  

Luis Fernando Verissimo surgiu no Caderno B do Jornal do Brasil ao mesmo tempo em que, nos Estados Unidos, Woody Allen, já famoso no cinema, se revelava como humorista pela New Yorker. O ano era 1974 e, para alguns, a identidade de estilos era óbvia.

Assim como Woody, Verissimo se punha na posição do observador que via o ridículo ou o absurdo com grande naturalidade. Também como Woody, ele não buscava a gargalhada, mas o riso silencioso. E seus personagens, assim como os de Woody, eram homens e mulheres nascidos não para, mas um contra o outro.

O texto era elegante e conciso, bem diferente do coloquialismo barroco de Nelson Rodrigues e da ferina objetividade de Millôr Fernandes, os dois cronistas mais ativos da época.

Mas Verissimo não devia nada a Woody Allen. A semelhança entre eles se dava por terem em comum as mesmas matrizes —os também americanos Robert Benchley, morto há 80 anos, e S. J. Perelman, que morreu em 1979.

Apesar de vigente nos Estados Unidos desde princípios do século 20, ninguém fazia esse humor no Brasil. Verissimo foi pioneiro —ele próprio se definia como um brasileiro que escrevia "em americano traduzido". Hoje, esse tipo de humor está presente, sem a mesma qualidade, na maioria dos que praticam a comédia stand-up por aqui.

Sem querer, e justamente por admirar o autor, atrasei em um ano a consagração de Verissimo. Em fins de 1975, o Jornal do Brasil criou a Domingo, a primeira revista semanal colorida dentro de um jornal, e seu editor-executivo —eu— quis Verissimo em suas páginas.

Com isso, ele deixou de publicar no jornal, de alcance nacional, e passou a sair só na revista, que, no começo, circulava apenas nos exemplares que se destinavam ao Rio de Janeiro. E assim, durante algum tempo, Verissimo foi um privilégio dos cariocas. Quando foi reincorporado ao jornal, o Brasil o descobriu —e se apaixonou.

Ele conseguiu a proeza de fazer o país rir com um personagem de forte sabor regional, o analista de Bagé. Outra de suas criações, a velhinha de Taubaté —a última pessoa no Brasil a continuar acreditando no regime militar— nos lavava semanalmente a alma. Minha favorita, no entanto, era uma que ele explorava pouco, a ravissante Dorinha Doravante, a socialite socialista, que escrevia ao cronista cartas deliciosamente cínicas.

Verissimo também desenhava (na minha opinião, muito bem) e construiu pequenas grandes sagas em quadrinhos.

A melhor delas, a da família Brasil, com aquele pai perplexo e sem chão, às voltas com a filha moderninha e com o genro hippie e parasita —um porta-voz de muitos de sua geração, que já não se reconheciam muito bem no mundo. Com seus toques de Jules Feiffer no desenho e Neil Simon nos diálogos, a família Brasil teria feito bonito em qualquer jornal do mundo.

Fomos colegas e contemporâneos no Jornal do Brasil, em O Estado de S. Paulo e na revista Playboy e, no decorrer de 40 anos, nos encontramos dezenas de vezes. Mas tudo que dissemos um para o outro, sobre jazz, futebol ou literatura, caberia numa única página.

Verissimo falava pouco. Eu o entendia —com a quantidade de material que tinha de escrever diariamente para jornais e revistas, falar devia parecer a ele uma queima de energia. E ele não abria mão da qualidade, como se pode ver em seus livros —em quase 100% saídos do que produzia para a imprensa

Adepto de primeira hora do Partido dos Trabalhadores, Verissimo vinha sofrendo ultimamente com seu partido —assunto de que evitava tratar nas colunas. Sofria também cobranças, às vezes agressivas, dos que não pensavam como ele.

Esses agressores não entendiam que, com seu jeito único e intransferível de enxergar a fragilidade humana, Verissimo, na verdade, nunca pensou como ninguém.[S

O gigolô das palavras https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/verissimo-humorismo-literario.html

Humorismo literário

Luis Fernando Verissimo, o gigolô das palavras
Escritor formava, com Millôr e Lessa, o trio de ouro do humorismo literário brasileiro. Agora, sem dúvida, teremos de recomeçar do zero
Sérgio Augusto/O Estado de São Paulo  

Ele próprio se definia assim. Porque vivia à custa delas, como um “cáften profissional”, exigindo-lhes total submissão. A gramática, recomendava, “precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.” Verissimo nunca perdeu o mando, nunca guardou o chicote. Formava, com Millôr Fernandes e Ivan Lessa, o trio de ouro do humorismo literário brasileiro. Agora, sem dúvida, teremos de recomeçar do zero. 

Não por acaso Millôr e Ivan figuravam em seu panteão de heróis, ao lado de dois mestres da crônica carioca, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria, e dos escritores Joseph Conrad e Evelyn Waugh. Ainda caberia aí meia dúzia de humoristas britânicos e americanos, que ele descobriu na adolescência, quando morou nos Estados Unidos. E ao grupo poderíamos acrescentar o igualmente versátil Woody Allen, com cujo humor judaico (intrinsecamente cético e autodepreciativo) ele muito se identificava. Verissimo nunca dirigiu um filme, mas em compensação Allen não sabe desenhar. No resto, empatavam. A única diferença é que Allen toca clarinete e Verissimo, saxofone.

Verissimo não se considerava humorista

Não se considerava humorista. Sentia-se, mais que um intruso, “um impostor” na categoria. Nada engraçado pessoalmente, tímido, taciturno, encarava o seu humor como um triunfo da técnica sobre a vocação. “Minha graça não é nada espontânea”, dizia, mas ninguém acreditava. A impressão geral era de que ele sentava diante do computador e, como num passe de mágica, as palavras iam fluindo naturalmente. Tinha “muita dificuldade” para escrever e também por isso gostava mais de desenhar. Havia dias em que ficava olhando o computador, espremia a cabeça, e nada, confessou-me nos anos 1980. Quando os raios cortavam os céus e as musas atendiam ao seu apelo, sai debaixo que lá vinha um texto de dar água na boca, de transformar todos nós em Salieris da palavra escrita. 

O gaúcho ‘desnaturado’ 

Gaúcho por acaso - ou desnaturado, como preferia se qualificar-, nunca vestiu bombacha, não tomava chimarrão, jamais montou um cavalo. Seu pampa começava e terminava em Porto Alegre. Urbanoide convicto, cosmopolita irredutível, apaixonado por Paris e Nova York, até nas restrições que fazia à vida no campo emulava o cineasta americano: “Lá também tem mosquito, espinho, bosta, cobra, coisas podres, falta de conforto e água corrente e raramente se consegue um bom molho bordalesa.”

Apesar de, já no nome, superlativo, passou os primeiros 30 anos sem se acertar na vida. Mal nos estudos, chegaram a duvidar de sua inteligência - e sobretudo de seu futuro. Tentou de tudo; até secretariou um gângster americano, que, por ser quem era, deu-lhe um tremendo cano. Teve uma fase de playboy, para imenso desgosto do pai, que nem sob hipnose seria capaz de prever o que seu filho um dia faria pela glória dos Veríssimo. 

A família acalmou-se quando ele entrou para a Editora Globo, a mais famosa do Rio Grande do Sul, como tradutor e planejador gráfico, mas custou a acreditar que pudesse dar certo na redação do Zero Hora. Sua carreira no diário portoalegrense foi meteórica: de copydesk a editor (de variedades e internacional), de editor a cronista. Como publicitário, ganhou mais dinheiro e até um prêmio de “melhor do ano”, em 1975, dividido com um artista gráfico. Dois anos antes, publicara seu primeiro livro de crônicas (O Popular), marco inaugural de uma das carreiras mais bem sucedidas da história editorial brasileira.

Seu primeiro romance, gênero de que fugiu o quanto pôde, nasceu de uma encomenda da agência de publicidade MPM. A agência queria um presente especial para seus clientes, no Natal de 1987, e Verissimo produziu em dois meses O Jardim do Diabo, “uma obra-prima da literatura policial de quinta categoria”, na avaliação do autor. Posto à venda, meses depois, conquistou em pouco tempo mais 20 mil leitores. Pândega metaficcional, narrada e protagonizada por um escritor que opera em escala industrial (um livro por mês) e acende incenso no altar de Conrad, O Jardim do Diabo é uma paródia da ficção noir americana, com alguns personagens à clef, entre os quais se destaca um traficante colombiano chamado García Márquez. Sua abertura é uma gozação no Herman Melville de Moby-Dick.

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Minha opinião

A antecipação no futebol e na política*
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65  

O médico e colunista esportivo Eduardo Gonçalves de Andrade, o Tostão, um dos craques da seleção brasileira campeã mundial em 1970, desenha o perfil do atleta diferenciado, às vezes genial: 

— O grande jogador tem a capacidade de inventar o momento. E tem a antevisão do lance: quando recebe a bola, ele já sabe tudo o que vai acontecer dali pra frente. Chega sempre primeiro que o outro, disse, em depoimento gravado originalmente para a série Futebol, entre 1996 e 1998, da revista Piauí.

Lá atrás, próximo de encerrar sua brilhante carreira nos gramados, Newton Santos — ex-lateral esquerdo então convertido a quarto zagueiro — em entrevista à revista Manchete Esportiva, explicou por que havia se tornado um excelente marcador de Pelé:

— Eu me antecipo. Dou combate antes do 'negão' pegar a bola, pois se ele a domina não há quem o impeça de fazer uma jogada genial.

Cá com meus modestos botões de velho militante apenas esforçado, mas com alguma capacidade de análise, na cena política brasileira nem sempre contamos com “grandes jogadores”. 

Os fatos comandam as atitudes, quase ninguém tem a capacidade de a eles se antecipar.

É o que Lênin, o genial líder da Revolução de Outubro, na Rússia, caracterizava como se deixar ficar a reboque dos acontecimentos. 

Às vezes a bola quica na entrada da área e ninguém chuta em gol. Ou se anuncia esta ou aquela jogada, e a certeza do êxito desejado, atropelando a evolução dos fatos. De quebra, abrindo o jogo para o adversário, antecipadamente.

Vale para as próximas eleições gerais, em 2026, quando estarão em disputa a presidência da República, os governos estaduais, dois terços do Senado, a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas.

Uma das marcas da sociedade brasileira é a instabilidade, social e política; que se reflete numa espécie de caleidoscópica evolução dos acontecimentos nos grandes embates eleitorais.

Daí o volume de vitoriosos de véspera derrotados, afinal, pela confluência de fatores até previsíveis, porém ocultos ao olhar cego da soberba.

Que se considerem hipóteses, perscrutem tendências, suponham previsíveis situações táticas – mas jamais se conte vitória antes do tempo. Sob pena da bola fora diante do gol escancarado.

*Minha coluna semanal no portal Vermelho www.vermelho.org.br   

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Luis Fernando Verissimo, presente!

Morre Luis Fernando Verissimo, mestre do humor e da crônica, aos 88 anos
Autor de mais de 80 livros, Verissimo marcou gerações com humor e crítica social em crônicas, contos e personagens inesquecíveis como o Analista de Bagé.
Barbara Luz/Vermelho www.vermelho.org.br   

O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo morreu na madrugada deste sábado (30), aos 88 anos, em Porto Alegre, vítima de complicações de uma pneumonia. Internado desde 11 de agosto na UTI do Hospital Moinhos de Vento, o autor deixa a esposa, Lúcia Helena Massa, e três filhos: Pedro, Fernanda e Mariana. A despedida acontece neste sábado, a partir das 12h, no Salão Nobre Júlio de Castilhos, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Um dos maiores cronistas do Brasil

Filho do também escritor Érico Verissimo, Luis Fernando construiu uma trajetória literária que o consagrou como um dos autores mais populares do país. Publicou mais de 80 livros e vendeu 5,6 milhões de exemplares. Entre suas obras mais conhecidas estão As Mentiras que os Homens ContamO Analista de BagéEd Mort e Outras Histórias e Comédias da Vida Privada, que ganhou adaptação televisiva de grande sucesso na Rede Globo.

O impacto de sua obra foi lembrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se manifestou em nota:

“Luis Fernando Veríssimo, um dos maiores nomes de nossa literatura e nosso jornalismo, nos deixou hoje aos 88 anos de idade. Dono de múltiplos talentos, cultivou inúmeros leitores em todo o Brasil com suas crônicas, contos, quadrinhos e romances. Criou personagens inesquecíveis, a exemplo do Analista de Bagé, As Cobras e Ed Mort. Sua descrição bem-humorada da sociedade ganhou espaço nas livrarias e na TV, com a Comédia da Vida Privada. E, como poucos, soube usar a ironia para denunciar a ditadura e o autoritarismo; e defender a democracia. Eu e Janja deixamos o nosso carinho e solidariedade à viúva Lúcia Veríssimo – e a todos os seus familiares.”

Paixões e legado cultural

Sua carreira começou no jornal Zero Hora, em 1966, e se consolidou com crônicas, contos e colunas em veículos como O Estado de S. PauloO Globo e Zero Hora. Criador de personagens marcantes, também foi roteirista do programa de humor TV Pirata, nos anos 1980.

Além da literatura, Verissimo tinha duas grandes paixões: o jazz e o futebol. Tocava saxofone e colecionava discos do gênero musical. No esporte, era torcedor fervoroso do Internacional, clube ao qual dedicou o livro Internacional, Autobiografia de uma Paixão. Cobriu Copas do Mundo desde 1986 e escreveu crônicas celebradas pelos colorados, como “Não me acordem”, sobre o título mundial do Inter em 2006.

[Ilustração: Enio]

Leia: "Sala de espera", uma crônica de Luis Fernando Veríssimo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/uma-cronica-de-luis-fernando-verissimo.html 

Uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Hoje não escrevo
Carlos Drummond de Andrade 

Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.

Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.

Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese - transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.

Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.

E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...

Então hoje não tem crônica. 

[Ilustração: Edward Hopper]

[Se comentar, identifique-se]

Leia: O repouso do guerreiro https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_12.html 

Humor de resistência

 

Hector

Desigualdades regionais no tempo presente https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/meu-artigo-no-portal-grabois-3.html


29 agosto 2025

Palavra de poeta

vinil
Cida Pedrosa 
à noite 
a cidade muda de pele 

a moça de vermelho 
e coxas de pedra 
serve um gin ao poeta 
que tateia um verso 

na vitrola anísio silva 
diz que sofrer por ti é viver 

à noite 
a cidade muda de pele 
e o homem da esquina 
se perde entre balas e fogos de festa

[Ilustração: Toulouse-Lautrec]

Leia: "Para te ver é longa toda espera", poema de Jaci Bezerra https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/palavra-de-poeta_26.html


Editorial do 'Vermelho1

Agressão estadunidense à Venezuela serve de alerta para a América Latina
Não é uma simples ameaça, mas um ato de beligerância. Não pode se subestimar a agressividade de um império em decadência sob o comando da extrema direita.
Editorial do 'Vermelho' 
www.vermelho.org.br   

O envio pelos Estados Unidos de navios de guerra com 4.500 militares, incluindo 2.200 fuzileiros navais, para o Caribe Sul, perto da costa da Venezuela, é um grave gesto de provocação imperialista. Sob o pretexto de enfrentar ameaças de cartéis de drogas latino-americanos, o governo de Donald Trump – que em fevereiro designou grupos criminosos do México e da Venezuela como organizações terroristas globais – lançou a operação para limitar a migração e reforçar os navios da guarda costeira e da Marinha que operam regularmente na região, apoiada por voos de espionagem.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, denunciou ameaça por submarinos nucleares, uma violação a tratados internacionais. “Nossa diplomacia não é a diplomacia dos canhões, das ameaças, porque o mundo não pode ser o mundo de cem anos atrás,” disse Maduro, cujo governo enviou tropas para estados ao longo da fronteira ocidental com a Colômbia para combater grupos de tráfico de drogas, um reforço que inclui aeronaves, drones e vigilância fluvial. Também pediu que grupos de defesa civil realizem treinamentos todas as sextas e sábados e que o governo da Colômbia adote medidas semelhantes.

A atitude do governo estadunidense é uma agressão, não resta dúvida. Ela ocorre em meio a provocações e acusações de que Nicolás Maduro e o ministro do Interior, Justiça e Paz, Diosdado Cabello, são ligados a cartéis de drogas. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rúbio, elevou a agressividade ao chamar o governo venezuelano de “organização criminosa”. “Eles tomaram o controle do território de um país e estão ameaçando os Estados Unidos e os países vizinhos”, vociferou. Prevendo o agravamento das agressões, o governo venezuelano pediu apoio à Organização das Nações Unidas (ONU).

Na recente Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), em Bogotá, Colômbia, o assunto compareceu, embora sem uma referência nominal. A declaração final – a Carta de Bogotá – destaca a “urgência” para que a região seja “livre de ameaças, agressões e medidas unilaterais, inclusive as coercitivas”. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva articulou a inclusão de citações na Carta sobre estratégias de segurança na Amazônia.

Como afirma a direção Executiva do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a nota da OTCA tem relevante importância ao repelir as ameaças para a região. “É importante, neste momento, relembrar o princípio da não intervenção previsto na Constituição Federal brasileira e a defesa da paz e da integração latino-americana”, diz. A nota do PCdoB denuncia, também, “a clara violação do direito internacional – que veda o uso ou a ameaça do uso da força e garante a autodeterminação dos povos”. “A América do Sul é uma zona de paz e assim deve continuar”, conclui.

Igualmente relevante é a nota da Internacional Antifascista, subscrita pelo Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), aprovada em reunião com a presença de mais de 600 organizações de cerca de 80 países. “Esta operação não é um ato de ‘defesa’ nem de ‘segurança’, mas sim uma manobra fascista de guerra psicológica que busca semear terror na região”, afirma. “Este ato de intimidação é, na realidade, a confissão da debilidade estratégica de um império em decadência que, incapaz de vencer a batalha das ideias, pretende impor o terror para sustentar sua hegemonia.”

A constatação de que a ameaça estadunidense não se restringe à Venezuela é um alerta que remete à história da unidade da América Latina. Não se trata de bravata. É, declaradamente, uma agressão, uma declaração de beligerância que, se não for contida, tende a se desdobrar. O histórico de agressão estadunidense à região – assim como em outras partes do mundo – revela que não se deve subestimar as ameaças de Trump.

São fatos que demonstram a falsidade dos argumentos da Casa Branca, em grande medida apoiados na guerra cultural midiática para tentar desqualificar e deslegitimar o governo e a institucionalidade da Venezuela, recurso formulado por equipes estadunidenses especializadas em assuntos latino-americanos, encarregadas do roteiro de hostilidades a agressões sistematicamente utilizado para justificar atos de barbárie.

Essa fórmula, presente também no genocídio palestino e na guerra da Ucrânia, na América Latina é repetida mais uma vez como combate ao narcotráfico e ao terrorismo, apoiado em bases militares. Ou seja: a agressão estadunidense impõe prioridade para o movimento integrador da América do Sul. O Brasil, principalmente, tem grande interesse no fortalecimento dessa integração por ser a principal economia da região e por suas imensas riquezas naturais.

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Uma crônica de Rubem Braga

O mistério da poesia
Rubem Braga 

Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço o poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era Bueno em el Sur. Cortar los árboles hacer canoas de los troncos.

E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.

O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem, quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de que.

Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.

De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não apenas do sentido. Se ele dissesse: Era Bueno trabajar em el Sur , não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinitivo do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo: ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. 

Reparem que tudo está dito com elementos mais simples: trabajar, era Bueno,Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.

Isso me lembra um dos maiores versos de Camões , todo ele também com as palavras mais corriqueira de nossa língua:
"A grande dor das coisas que passaram".

Talvez o que mais me impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a idéia da canoa é também motivo de emoção.

Não há coisas mais simples e primitiva que uma canoa feita de tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom não essa "necessidade aborrecida" de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.

Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem à muito equívoco e muita bobagem . Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem profundas...

[Ilustração: Cecilia Vicuña]

Leia: A palavra e o gesto https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_14.html

Humor de resistência

 

Miguel Paiva

Presente e futuro na luta cotidiana: a reforma urbana, por exemplo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/meu-artigo-no-portal-da-fundacao.html 

PCdoB debate

Rumo ao Congresso do PCdoB, Ciclo de Debates aponta estratégias da esquerda contra crise, direita e imperialismo
Mesas em cinco capitais discutiram soberania, partido, eleições, o papel da classe trabalhadora e os rumos do desenvolvimento nacional
Leandro Melito/Portal Grabois 

Promovido pela Fundação Maurício Grabois, o Ciclo de Debates para o 16º Congresso do PCdoB mobilizou a militância comunista ao longo das últimas semanas presencialmente em cinco capitais brasileiras e também virtualmente por meio das transmissões ao vivo no YouTube. As mesas aprofundaram o debate sobre “Os desafios brasileiros num mundo em transição”  a serem discutidos no Congresso do partido que acontece entre 16 e 19 de outubro em Brasília (DF).

“O Ciclo indicou que os temas em debate no Congresso do PCdoB estão na mais íntima sintonia com os desafios e dilemas do país para superar a condição dependente e periférica sob direção das forças populares”, aponta Walter Sorrentino, presidente da Fundação Maurício Grabois (FMG) e vice-presidente do PCdoB. E destaca:

“É uma bela contribuição aos debates da esquerda brasileira, a fim não apenas de vencer as próximas eleições presidenciais, como também de disputar na sociedade a correlação de forças necessária para mudar estruturas que constrangem o desenvolvimento e autonomia estratégica do país.”

Foram cinco mesas de discussão realizadas entre os dias 28 de julho e 25 de agosto em São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Porto Alegre (RS) e Recife (PE), com um público presencial de mais de mil pessoas.

As transmissões online espalharam os debates pelo Brasil. A playlist do Ciclo de Debates na TV Grabois. composta por 21 vídeos, já acumula mais de 13,3 mil visualizações e 2,8 mil horas de tempo de exibição.

Mundo em transição

Na tentativa de recuperar sua hegemonia, os EUA intensificaram a ofensiva contra o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, antecipando os embates eleitorais de 2026 ao apoiar explicitamente as forças de extrema direita que atuam no país, lideradas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, alvo de uma ação penal por tentativa de golpe de Estado e outros nove inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse fato político atravessou os debates sobre a Crise do capitalismo e da globalização neoliberal em São Paulo (SP). Anunciada logo após o encontro do Brics no Rio de Janeiro (RJ), a taxação extra de 40% aos produtos brasileiros foi a primeira sanção dirigida especificamente ao país por Donald Trump não teve caráter econômico, mas político, com objetivo exatamente de desestabilizar a economia do Brasil, destacou  Davidson Magalhães, economista e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

Soberania nacional

O tema da soberania nacional, que já havia surgido durante as discussões da mesa anterior, ganhou corpo e foi objeto de consenso entre os debatedores da mesa Mundo em Transição.

Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Luis Fernandes defendeu:

“A contradição principal, eu diria, é entre imperialismo e projetos nacionais anti-imperialistas, que não se apresenta com essa linguagem no mundo, mas na essência, no conteúdo, são. Essa é a contradição principal. A segunda contradição é uma contradição de reserva, que são as tensões sobre as potências, sobretudo.”

Centralidade da classe trabalhadora

Com o tema Mudanças estruturais para o Brasil do século XXI, a terceira mesa realizada em Salvador (BA) trouxe para o centro da discussão a classe trabalhadora brasileira.  José Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras (2005-2012), colocou como um dos desafios centrais para promover mudanças estruturais no Brasil de hoje o estado de fragilização e fragmentação em que se encontra a classe trabalhadora a partir de um processo de alteração estrutural com a ausência de formulações de projetos nacionais.

“O PCdoB tem razão em cobrar a ausência das reformas estruturais”, afirmou Gabrielli. “O projeto nacional desaparece, o projeto de transformação da sociedade desaparece e, portanto, nós temos que recompor isso nesse momento.”

“Falta dos partidos, da parte consciente da classe trabalhadora, fazer com que esse projeto nacional de desenvolvimento expresse e reflita, coloque em primeiro lugar os anseios dessa classe trabalhadora brasileira”, destacou o economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Diogo Santos.

[Ilustração: em foto de Pedro Caldas o debate no Recife]

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Leia: Convergência necessária e possível https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/minha-opiniao_15.html 

Arte é vida

 

Moïse Kisling

Como as IAs turbinam a especulação imobiliária https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/inteligencia-artificial-especulacao.html 

Urariano Mota opina

A memória da ditadura hoje
Em um romance, a mistura de mortos e vivos nem sempre está na intenção consciente do escritor
Urariano Mota/Vermelho  

A escritora Han Kang, Nobel de Literatura, fala em entrevista à Folha de S.Paulo:

“Confundo intencionalmente quem está morto e quem está vivo. Não importa. O mais importante é que estão todas conectadas.

Quero sentir que aquelas pessoas existem. Quero emprestar minha vida, minha carne, minhas sensações a elas. É um processo muito pessoal.

Às vezes você não consegue distinguir o que é político do que é pessoal.”

Comento, de modo breve, as declarações da escritora a seguir.

Em um romance, a mistura de mortos e vivos nem sempre está na intenção consciente do escritor. Diante da sua memória, o escritor não se pergunta: “essa pessoa já morreu?”. Pelo contrário, o modelo da pessoa está vivo e lhe fala, numa voz maior que a dos médios espíritas quando incorporam um morto. Quero dizer, a pessoa volta inteira, no que foi e continua a ser em suas circunstâncias. O “falecido” está assim, entre aspas. Ele não está na página como uma lembrança simplesmente. Ele é, ele está, ele é nosso parceiro, amigo ou inimigo. Ele pula, grita, chora e sorri, ali, aqui, ou não será digno da sua inesquecível presença.

E de fato, o escritor não quer sentir a pessoa, modelo da personagem. Ele a sente. Lembro que ao falar de Soledad Barrett, numa instrução que eu dava sobre uma peça de teatro para ela, eu afirmei no restaurante: “Eu vejo Soledad entrar por aquela porta”. Verdade. Tão natural, não me assombrava que Soledad estivesse morta pela repressão bárbara da ditadura. Mas eu a via a entrar no restaurante. Como dizê-lo? Era uma comunhão inescapável.

No romance A mais longa duração da juventude, ao escrever sobre o personagem Vargas, cujo modelo é Jarbas Marques, assassinado pela ditadura em 1973, ele me fala, eu o sinto e compreendo vivo, perto da hora extrema da morte:

“Um ônibus para, pessoas sobem. Ele entra também, sem saber para onde vai. Que importa? Será executado amanhã. E pela janela vê a Conde da Boa Vista, a ponte Duarte Coelho, a avenida Guararapes, o rio Capibaribe, como pela primeira vez. Que amargo encanto. ‘Como é bonita a minha cidade. Só agora percebo. Me perdoa, Recife, por ter sido tão brutal. Tu és para mim a mundo, o lugar da fraternidade que ainda não temos. Mas um dia vamos ter, e tu serás a companheira e camarada da revolução’. E põe as mãos juntas como se rezasse, logo ele, um ateu sectário, põe as mãos juntas por um reflexo antigo, da infância: ‘Eu te amo a ti, somente a ti, acima de todas as coisas. Eu te amo como o meu último afeto. Estás acima do que mais amo, a minha pátria e túmulo da revolução’. E começa a re zar, pelo Recife, ele se diz. Mas reza por ele mesmo, enquanto o ônibus sai da Avenida Guararapes. Vargas não quer ter consciência, não quer censura, no instante em que reza: ‘Meu Deus, me liberta de vez ou me dá mais um tempo. Mas se eu não for digno, dá-me um tiro. Meu Deus, dá-me um tiro na cabeça. Sem a humilhação da tortura ou dor infame. Dá-me a paz de um tiro certeiro’. E fala em voz alta: Deus, tu me ouves?

O passageiro ao lado o examina com desconfiança. Isso não incomoda Vargas. ‘Que me importa? Olhe. Se Deus não me escuta, que me importa que me tomem por louco? Eu sou um homem. Eu sou apenas um patriota sozinho’. O corpo treme, arde de febre. Então fecha a janela. Vem de repente um fogo, uma fornalha, boca de vulcão que ele não sabe como. É uma expulsão de lava, chamas de fogo explodem. A boca do vulcão é um grande olho vermelho, um sexo. ‘É assim que me falas, Deus? Eu não tenho medo do fogo. A minha prova será maior’. Então a lembrança da prova do outro dia lhe faz desviar a vista da boca que vomita lava na avenida. Olha para dentro do ônibus e o que descortina é um longo corredor.

Por que longo, se será tão curto? A distância é uma dimensão alterada pela dor. Minutos de afogamento, choque elétrico e espancamento a ferro são longa agonia. Numa antevisão, Vargas pula para o resultado, a destruição física do corpo, abstraindo a tortura. Mesma na dura realidade, o cérebro pula o mais doloroso. Como uma extração de dentes com anestesia. O resultado é sangue, objeto arrancado em um raio, zás! ‘Se me torturarem, se eu sofrer muito, eu resolvo’. Se, se, luta entre o fatal e o possível. Evita a pior hipótese. Ele não sabia, ele não esperava chegar a esse ponto. ‘Eu não estou organizado, por que me caçam?’. Mas o ônibus segue, transformado em veículo que o conduz à parada final. O ônibus não é a máquina que despeja e recebe passageiro, é met&a acute;fora do nome que ele não quer dizer. ‘Serei o próximo a … cair? Sim, é certo, eu vou cair. E se eu não morrer?’. Mas Fleury está no Recife, ele não viria de São Paulo para nada. Veio por algo mais grave, e sente um arrepio. ‘É a febre’. E se vê de passagem na frente do assassino. O matador procura extrair tudo, com o máximo de dor, até a fronteira que desembarca no nada. ‘Nada?! Eu sou Vargas. Nada? O que é o nada?’. E se põe no labirinto de ideias que é cerco. ‘Nada, que é que é nada?’. Não pode ser o seu cadáver machucado. Como ficaria o seu corpo? ‘Absurdo. Eu sou Vargas’ ”.

Para um escritor, a ditadura não é história morta. Ela está além das tentativas dos fascistas, da gangue de Bolsonaro e companhia destes dias. Ela está viva a exigir a mais severa punição. Até hoje, até agora.

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"Dá-me a tua mão", poema de Clarice Lispector https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/palavra-de-poeta_27.html