21 outubro 2023

João Cabral em análise

A poética de João Cabral e o balanço entre polos-elos

Confira resenha do livro O rio, a cidade e o poeta: cultura popular e construtivismo na poética de João Cabral de Melo Neto, escrito pela professora Thaís Toshimitsu e lançado neste ano pela Editora UFABC
Michelle Prazeres/Le Monde Diplomatique


 

O que leva João Cabral de Melo Neto a experimentar em sua obra o dado popular, de um lado, e o racionalismo mais avançado por outro? Neste livro, Thaís Toshimitsu nos mostra que os cheiros do Nordeste, aqueles mesmos que estão “tatuados em sua pele” como filha de mãe pernambucana, orientam a obra do autor em um caminho-dualidade que se espelha em seu olhar e nas sobreposições de dualidades que sua obra apresenta.  

Thaís é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo e professora de Literatura. Nesta obra, ela examina a poesia de João Cabral sobretudo dos anos 1950 ao início dos 1960 em articulação com outras artes e com sua matéria histórica.

Segundo a autora, “o que pareciam ser dois polos são vistos e trabalhados por Cabral como elos”, o que faz com que sua obra se estabilize num balanço, por meio da justaposição de duas pontas opostas que constituem a sociedade brasileira historicamente. 

O livro está dividido em três partes. Na primeira, “A crítica concretista e a poesia como lugar do diálogo”, Thaís faz uma revisão histórica das linhas críticas mais importantes na poesia de Cabral com especial ênfase ao caminho aberto pelos poetas do Concretismo. Na segunda, “A poética do rio”, a autora detalha esse “jeito de fazer” cabralino, em que se toma o elemento geográfico como signo do convívio entre contrários. O capítulo mais extenso do livro é um estudo analítico de O cão sem plumas (poema-livro de 1950), a partir do qual ela define uma “guinada na formação poética” de Cabral em conjunção com os poemas “O Rio” (1953) e “Morte e vida severina” (1955). 

Thaís vai tecendo sua análise mostrando como João Cabral atrela seu fazer poético à referência do real. “O desejo duplo de pertencer ao movimento cosmopolita sem, contudo, abandonar a raiz plantada na experiência local” construiu o sentido da obra do autor a partir da escrita de Cão sem plumas

Para a pesquisadora, a articulação entre poesia e sociedade não está apenas na superfície do texto de Cabral, e rebate na forma do poema. Por isso, “poética do rio”, porque o rio “tem forma análoga à caminhada do retirante e à cultura popular das procissões, dos folguedos religiosos e das narrativas populares, com os autos e cordéis. Mas é também o rio dos palácios, dos engenhos, das usinas”. 

Esse capítulo se desfecha com a análise de “Morte e vida”, em que Thaís investiga a especificação das relações sociais e sobretudo da posição social envolvida no trato com a linguagem, na experimentação artística dessa obra de João Cabral. Ela aponta para o papel do autor na inserção de uma dinâmica entre contrários como tradição na literatura nacional.  

Na terceira parte do livro, “O projeto de racionalidade contra o fundo da matéria histórica”, Thaís fala sobre a criação da cidade de Brasília e como esse episódio da história do país ecoa nos poemas de João Cabral, pontuando que “dentre todas as expressões artísticas, a arquitetura é a que está mais fundada no real”.  

Thaís nos ajuda a entender que ler Cabral não “é apenas ler as singularidades de saídas pessoais, mas é ver atravessar-lhe o tempo, é entender a complexidade de um país que se desejava moderno, ao modo ainda colonial”, mostrando assim a atualidade da obra do autor, que teria completado 100 anos em 2020, quando o país, assombrado por uma pandemia mundial, vivia também o assombro de uma virada à direita. 

Michelle Prazeres é jornalista e educadora.

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