Duas horas e quarenta e cinco minutos de voo
Luciano Siqueira
Quando o cansaço e o sono me abatem, simplesmente durmo. Acordo quando a voz do piloto anuncia a proximidade do nosso destino. Às vezes nem isso, desperto mesmo com os solavancos da aterrissagem. Outras vezes, leio ou escrevo. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, alternadamente. Concentrado e tendo o cuidado de mostrar mesmo que me dedico à leitura e às anotações, medida preventiva contra a ameaça do passageiro ao lado que ensaia uma conversa. Evito sempre conversar com estranhos durante o voo, pois quase nunca me dei bem.
Desta vez, no voo Recife-São Paulo, na radiosa manhã desta sexta-feira, apenas cochilo alguns minutos. Folheio a revista de bordo TAM nas Nuvens e não encontro nada para ler: a cada viagem acho-a pior. Fossem apenas amenidades, ainda bem; mas com essa profusão de propaganda e merchandise e roteiros falsamente atraentes, não há quem aguente. Quer dizer: não aguento, mas muita gente acha o contrário, pelo que vejo nas filas próximas. Como aquele cidadão perto dos oitenta que não larga a página que ostenta uma viagem dos sonhos a uma região inóspita da Índia. Totalmente entregue à imaginação. Que o faça, está no seu direito.
Pois bem, essa está sendo para mim uma viagem atípica: não durmo, não leio, apenas escrevo o que aqui vai registrado. De tudo alguma coisa: o comissário de bordo toda vez que passa apaga a luz de leitura que acendi (na próxima, vou pedir satisfações); o vizinho do assento do meio ronca; a garotinha ali três filas adiante ora chora, ora rir no colo da mãe; o oitentão fascinado pela Índia não larga a revista nem muda de página; aquele grupo de meia idade ali atrás queda-se em algazarra juvenil; o italiano aqui do lado mantém-se grudado em tabelas e gráficos no laptop. Um caleidoscópio.
Mutatis mutandis, como escrevem os advogados, essa miríade de sons e imagens me faz recordar a primeira viagem que fiz com Luci, de Maceió a Delmiro Gouveia, no início dos anos setenta. Em razão do plano estratégico do PCdoB, deveríamos seguir a militância clandestina no Sertão alagoano. Deixaríamos a casa da Rua do Meio, no Vergel do Lago e buscaríamos moradia ali na fronteira com a Bahia, junto de Paulo Afonso. Terminamos encontrando casa bem antes, em Santana do Ipanema - mas essa é outra história que agora não vem ao caso.
O ônibus era um típico pinga-pinga, parando onde houvesse gente para subir ou para descer. Todo mundo carregava alguma coisa: sacolas, saco de feijão, cachos de banana, gaiola com passarinho, cachorro de estimação e até galinhas. Uma babel, todos falando ao mesmo tempo. Quantas horas durou nossa aventura não me lembro, mas com certeza o longo trajeto, boa parte em estrada de barro batido, muita poeira, o calor infernal tornaram-se plenamente suportáveis para o casal que tudo enxergava com deslumbre. O olhar na paisagem que se transmudava ao longo dos quilômetros rodados e os ouvidos atentos aos causos que se sucediam, contados em voz alta. Afinal, ali estávamos para nos ligar ao povo da região, fazer parte daquela vida e cumprir nossa missão revolucionária.
Agora no voo da TAM o barulho é menos, as coisas parecem seguir todas rigorosamente em seus lugares, conforme as normas da aviação comercial, mas a babel é parecida. Divertida. Até o esforço hercúleo do gordo bem postado no assento da janela uma fila à frente para ir à toalete. O jovem de boné da Ferrari que dormia a sono solto desperta contrafeito e se levanta lentamente para dar passagem. O magricela sarará, mais ágil e impaciente, idem. O gordo, pede desculpas seguidamente.
Agora é a minha vez de estirar as pernas e caminhar um pouco pelo corredor. Erro fatal: lá do fundo da aeronave logo surge um gigante careca que se apresenta como morador da Madalena, me chama de prefeito, elogia o prefeito Geraldo e logo tenta me vender um colchão ortopédico com massagem eletromagnética. Arre! Mas fui salvo pelo gongo: o comissário de bordo pede que todos voltem aos seus assentos porque estamos iniciando os procedimentos para pouso da aeronave. Felizmente. (Publicado no Jornal da Besta Fubana)
Quando o cansaço e o sono me abatem, simplesmente durmo. Acordo quando a voz do piloto anuncia a proximidade do nosso destino. Às vezes nem isso, desperto mesmo com os solavancos da aterrissagem. Outras vezes, leio ou escrevo. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, alternadamente. Concentrado e tendo o cuidado de mostrar mesmo que me dedico à leitura e às anotações, medida preventiva contra a ameaça do passageiro ao lado que ensaia uma conversa. Evito sempre conversar com estranhos durante o voo, pois quase nunca me dei bem.
Desta vez, no voo Recife-São Paulo, na radiosa manhã desta sexta-feira, apenas cochilo alguns minutos. Folheio a revista de bordo TAM nas Nuvens e não encontro nada para ler: a cada viagem acho-a pior. Fossem apenas amenidades, ainda bem; mas com essa profusão de propaganda e merchandise e roteiros falsamente atraentes, não há quem aguente. Quer dizer: não aguento, mas muita gente acha o contrário, pelo que vejo nas filas próximas. Como aquele cidadão perto dos oitenta que não larga a página que ostenta uma viagem dos sonhos a uma região inóspita da Índia. Totalmente entregue à imaginação. Que o faça, está no seu direito.
Pois bem, essa está sendo para mim uma viagem atípica: não durmo, não leio, apenas escrevo o que aqui vai registrado. De tudo alguma coisa: o comissário de bordo toda vez que passa apaga a luz de leitura que acendi (na próxima, vou pedir satisfações); o vizinho do assento do meio ronca; a garotinha ali três filas adiante ora chora, ora rir no colo da mãe; o oitentão fascinado pela Índia não larga a revista nem muda de página; aquele grupo de meia idade ali atrás queda-se em algazarra juvenil; o italiano aqui do lado mantém-se grudado em tabelas e gráficos no laptop. Um caleidoscópio.
Mutatis mutandis, como escrevem os advogados, essa miríade de sons e imagens me faz recordar a primeira viagem que fiz com Luci, de Maceió a Delmiro Gouveia, no início dos anos setenta. Em razão do plano estratégico do PCdoB, deveríamos seguir a militância clandestina no Sertão alagoano. Deixaríamos a casa da Rua do Meio, no Vergel do Lago e buscaríamos moradia ali na fronteira com a Bahia, junto de Paulo Afonso. Terminamos encontrando casa bem antes, em Santana do Ipanema - mas essa é outra história que agora não vem ao caso.
O ônibus era um típico pinga-pinga, parando onde houvesse gente para subir ou para descer. Todo mundo carregava alguma coisa: sacolas, saco de feijão, cachos de banana, gaiola com passarinho, cachorro de estimação e até galinhas. Uma babel, todos falando ao mesmo tempo. Quantas horas durou nossa aventura não me lembro, mas com certeza o longo trajeto, boa parte em estrada de barro batido, muita poeira, o calor infernal tornaram-se plenamente suportáveis para o casal que tudo enxergava com deslumbre. O olhar na paisagem que se transmudava ao longo dos quilômetros rodados e os ouvidos atentos aos causos que se sucediam, contados em voz alta. Afinal, ali estávamos para nos ligar ao povo da região, fazer parte daquela vida e cumprir nossa missão revolucionária.
Agora no voo da TAM o barulho é menos, as coisas parecem seguir todas rigorosamente em seus lugares, conforme as normas da aviação comercial, mas a babel é parecida. Divertida. Até o esforço hercúleo do gordo bem postado no assento da janela uma fila à frente para ir à toalete. O jovem de boné da Ferrari que dormia a sono solto desperta contrafeito e se levanta lentamente para dar passagem. O magricela sarará, mais ágil e impaciente, idem. O gordo, pede desculpas seguidamente.
Agora é a minha vez de estirar as pernas e caminhar um pouco pelo corredor. Erro fatal: lá do fundo da aeronave logo surge um gigante careca que se apresenta como morador da Madalena, me chama de prefeito, elogia o prefeito Geraldo e logo tenta me vender um colchão ortopédico com massagem eletromagnética. Arre! Mas fui salvo pelo gongo: o comissário de bordo pede que todos voltem aos seus assentos porque estamos iniciando os procedimentos para pouso da aeronave. Felizmente. (Publicado no Jornal da Besta Fubana)
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