22 março 2023

Complexa reconstrução

Muitas transições: do desmonte à reconstrução do Estado no Brasil
Entre 2019 e 2022, o governo operou como se toda a institucionalidade construída desde a Constituição de 1988 tivesse de ser destruída e substituída por uma ordem geral liberal-autoritária. É desse cenário desolador que se deve partir para repensar o peso e o papel do Estado nacional (e da função pública) na contemporaneidade
José Celso Cardoso Jr./Le Monde Diplomatique


Após longo e tormentoso período de intenções autoritárias, negação de direitos e outros atentados à Constituição Federal de 1988, mormente o desmonte de organizações e políticas públicas federais, chegou ao fim no Brasil o governo Bolsonaro, Guedes e cia. Infelizmente, no entanto, o malogro desse desgoverno não foi apenas eleitoral. Ao fim desse tenebroso período, constata-se, como consequência direta da tentativa de destruição dos aparatos e institucionalidades de Estado, uma imensa fragilização político-institucional e um quas e colapso das condições econômicas e sociais de vida para imensos contingentes populacionais e regiões do país.
Assim, diante desse quadro de terra arrasada é que desafios insanos se colocam para o recém-eleito governo Lula (2023-2026). Para enfrentá-los, praticamente tudo, em âmbito estatal, precisará passar ou por processos profundos e céleres de recriação ou reconstrução, ou por processos igualmente profundos e céleres de inovação e experimentalismo institucional. Entre esses, refiro-me aqui à – cada vez mais imperiosa – necessidade de conferir centralidade política à transformação institucional positiva do Estado, sem o que o própr io processo de governar estará em risco no governo Lula.
Comecemos, então, pelo desmonte Bolsonaro/Guedes do Estado. Nesse período (2019 a 2022), é como se toda a institucionalidade política e constitucional construída no país desde a Constituição de 1988 tivesse de ser destruída e substituída por uma ordem geral pautada pelo que a literatura contemporânea vem chamando de liberal-autoritária, vale dizer: liberal na economia e reacionária nos costumes. É como se a Constituição de 1988 não houvesse criado ou sugerido, ela mesma, bases institucionais razoavelmente adequadas para uma transformação orgânica e positiva do Estado brasileiro e de sua administração pública.
Nesse intervalo, já em contexto de crises econômica e política abertas, cujo desfecho institucional foi a destituição de Dilma Rousseff em 2016 e a tomada de poder pelo consórcio liberal-conservador formado por toda a oposição parlamentar de então, e também por parte expressiva da coalizão de apoio (de centro e de direita) reeleita em 2014, conformou-se um momento que veio caracterizando-se como golpe e desconstrução abrangente, profunda e veloz dos fundamentos basilares da Constituição de 1988. Nesse período, 38 emendas constitucionais foram aprovadas, sendo quinze entre 2015 e 2018 e 23 entre 2019 e 2022, totalizando 128 emendas desde o início.
Esse, que foi o pior momento vivenciado pela Constituição de 1988 desde seus primórdios, se caracterizou por ter sido, ao mesmo tempo: i) abrangente, no sentido de que envolveu e afetou praticamente todas as grandes e principais áreas de atuação governamental; ii) profundo, já que promoveu modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de funcionar das respectivas áreas; e iii) veloz, pois se processou em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguiam acompanhar o sentido mais geral das mudan&ccedi l;as em curso.
Essas três características, por sua vez, apenas se explicam pelo contexto e estado de exceção a que foram submetidas as instituições republicanas e democráticas, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade (des)organizada desde o golpe parlamentar-judicial-militar-midiático realizado no Brasil entre 2016 e 2022. É somente em função disso que se pode entender a ousadia do projeto liberal-fundamentalista em ter tentado colocar em prática, sem maiores resistências ou desavenças, sua agenda disruptiva, entendida em dupla chave de análise.
Em primeiro lugar, a agenda liberal-autoritária é disruptiva em relação ao passado, pois em termos históricos não há no projeto liberal-fundamentalista nenhuma perspectiva de construção nacional ou de fortalecimento do Estado para esse fim. Isto é, não há referências claras ao desenvolvimento da nação como objetivo último de suas reformas, mas tão somente entendimento de que a consolidação e a valorização capitalista de mercados autorregulados poderiam engendrar algum tipo de “desenvolvimento”. Este, em termos do liberalism o econômico em voga, significa coisas como maximização das rentabilidades empresariais de curto prazo, crescimento microeconômico eficiente dos empreendimentos etc.
Em segundo lugar, a agenda liberal-autoritária é também disruptiva em relação ao futuro, pois pretende alterar de forma estrutural o modo como a classe trabalhadora deve doravante se comportar e agir para se inserir e sobreviver nos mundos do trabalho e da proteção social. Essa agenda pretende impor condições e circunstâncias estritamente individuais e tremendamente assimétricas ou desiguais para tanto. Ela promete promover mudanças paradigmáticas – para pior – nas formas de sociabilização básica entre as pessoas, em todas as fases da vida, e em suas capacid ades e possibilidades de sustentação e reprodução das condições mínimas de sobrevivência ao longo do tempo. Com isso, haveria um reforço sem precedentes do individualismo como forma predominante de conduta e do consumismo como forma predominante de realização pessoal.
Tanto isso é verdade que, em todas as áreas setoriais investigadas pelos grupos de trabalho durante a transição de governo ocorrida em novembro e dezembro de 2022, constataram-se processos abrangentes, profundos e velozes de desconstrução institucional.1&n bsp;As consequências foram bastante perniciosas não apenas no que se refere às estruturas organizacionais e formas consagradas de funcionamento dos aparatos de Estado, mas sobretudo no que tange à efetivação de direitos e políticas públicas de modo geral. Ao fim e ao cabo, é a própria população brasileira, em especial a parcela mais vulnerável alijada ou à margem dos circuitos de produção, consumo e bem-estar propiciados pelos mercados monetarizados da economia, que mais sofreu com a ausência ou precarização dos serviços públicos na ponta.
Para exemplificar, veja-se pelo gráfico neste texto que uma visão de conjunto dos quatro últimos governos (Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro) conforma um processo de perda de densidade, entre os governos Lula e Dilma, e de verdadeiro desmonte, na passagem dos governos Dilma para Temer e Bolsonaro, no que diz respeito à tríade República, democracia e desenvolvimento.
Enquanto as dimensões republicana (cujo percentual agregado passou de 50% para 41,6% entre os governos Lula e Dilma, e de 16,6% para apenas 8,3% entre os governos Temer e Bolsonaro) e democrática (cuja pontuação passou de 83,3% para 50% entre os governos Lula e Dilma, e de 33,3% para 25% entre os governos Temer e Bolsonaro) foram se enfraquecendo nas passagens de um governo a outro, a dimensão do desenvolvimento sofreu um abalo (de 80,9% para 61,9%) entre os governos Lula e Dilma, e um colapso (de 33,3% para 4,7%) na passagem entre os governos Temer e Bolsonaro. 2

O difícil caminho da reconstrução institucional no Brasil

É desse cenário desolador que se deve partir para repensar o peso e o papel do Estado nacional (e da função pública) na contemporaneidade, sobretudo em suas inter-relações com os mundos econômico, pol&ia cute;tico, social e ambiental em franca deterioração nos dias que correm.
Dessa maneira, qualquer que seja a nova estrutura de ministérios e secretarias, o terceiro governo Lula partirá de uma base normativa, fiscal, organizacional e burocrática bastante confusa e desalinhada internamente. Assim, a principal t arefa de início será recuperar a capacidade governativa que foi destroçada ao longo dos últimos anos. Isso é condição necessária para conseguir colocar em movimento – de modo rápido e eficaz – as novas políticas e prioridades governamentais no menor intervalo de tempo possível.
Para tanto, nossa proposta consiste em lançar mão de três ideias-força, de cujo resgate se poderia partir para avançar tanto na crítica aos formatos e conteúdos atualmente dominantes na esfera estatal como &nda sh; indo além – na reafirmação ou proposição de novos princípios, diretrizes, estratégias e táticas de ação (coletiva, contínua e cumulativa) que nos permitam conduzir a situação a um patamar qualitativamente superior de entendimento, organização e funcionamento do Estado nacional para as novas gerações de brasileiros e brasileiras, ainda no século XXI. Elas são as seguintes:
i) Projeto de país: o desenvolvimento nacional é o carro-chefe da ação do Estado, ou seja, o Estado n&at ilde;o existe para si próprio, mas como veículo para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento estratégico público, da gestão participativa e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é condição necessária para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI.
ii) Capacidade de governo/governança: a necessidade de uma reforma do Estado de natureza republicana, que traga mais transpar ência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, é condição inescapável para redirecionar a ação governamental e fortalecer as capacidades estatais para o atendimento das necessidades vitais da população.
iii) Governabilidade democrática: não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participaç ;ão bem informada da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam periodicamente. Contudo, para além da democracia representativa, há elementos de uma democracia participativa – e mesmo deliberativa – que pressionam por mais e melhores espaços de existência e funcionamento.
A republicanização do Estado< /a> exige, entre outras coisas, o máximo possível de transparência dos processos decisórios e dos resultados intermediários e finais dos atos de governo e das políticas públicas de forma geral. Conferindo-se visibilidade e publicidade às arenas decisórias, aos atores e interesses envolvidos em cada caso, bem como aos processos institucionais (formais e informais) por meio dos quais as decisões cruciais da República são tomadas, equilibra-se mais e melhor a distribuição desigual de recursos de poder de cada ator e produzem-se resultados, simultaneamente, mais legítimos do ponto de vista político e mais aderentes à realidade e perenes ao longo do tempo.
Por sua vez, a democratização do Estado exige, no mínimo, formas mais efetivas de controle social público sobre os Três Poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário), sobre o Ministério Público e sobre os meios de comunicação (públicos e privados), e, ao mesmo tempo, uma reforma política que implique de fato maior representatividade da imensa diversidade e heterogeneidade da população e seus problemas, anseios e necessidades no Parlamento. No entanto, além dos aperfeiçoamentos necessários nos fundamentos e mecanismos da democracia representativa, é preciso fazer avançar a efetividade das instituições e mecanismos da democracia participativa (por meio de conselhos, conferências, audiências, ouvidorias, fóruns, grupos de trabalho etc.) e da democracia deliberativa (por meio dos referendos, plebiscitos, iniciativas populares etc.).
Por fim, se é verdade que o desenvolvimento brasileiro no século XXI deve ser capaz de promover, de forma republicana e democrática: i) inserção internacional soberana; ii) macroeconomia do desenvolvimento: crescimento, est abilidade, emprego e distribuição de renda; iii) estrutura tecnoprodutiva avançada e regionalmente integrada; iv) infraestrutura econômica (energia, transportes, comunicações), social e urbana (moradia, saneamento, mobilidade); v) sustentabilidade, produtiva, ambiental e humana; vi) proteção social, garantia de direitos e geração de oportunidades; e vii) fortalecimento do Estado, das instituições republicanas e da democracia, então o desenho organizacional do Estado brasileiro deve possuir tantas áreas de atuação programáticas e carreiras públicas (do tipo estratégicas/finalísticas e transversais/estruturantes dos macroprocessos administrativos das políticas públicas) quanto as necessárias para enfrentar os grandes desafios da contemporaneidade.
Em suma, com o conjunto de reformas sugeridas, o Estado nacional pode recuperar poder e centralidade em virtude de sua capacidade sui generis de mediar os diferentes interesses presentes na comunidade política para a construção de um referencial universalizante que se projeta no futuro. A história das nações desenvolvidas – e também das subdesenvolvidas – mostra que as capacidades e os instrumentos de que dispõe o Estado para regular o mercado, mediar a participação da sociedade na condução dos assuntos públicos e moldar o desenvolvimento têm importância decisiva em suas trajetórias de afirmação e construção nacional.
 
*José Celso Cardoso Jr. é doutor em Economia, desde 1997 é servidor público federal no Ipea e entre 2019 e 2023 foi presidente da 
Afipea-Sindical. Após a vitória de Lula nas eleições de 2022, integrou a equipe de transição, atuando em temas do planejamento, orçamento e gestão, bem como centro de governo e participação social, tendo sido um dos redatores do Relatório Final da Transição. As opiniões aqui emitidas são de inteira responsabilidade do autor.
 
1 Ver, a respeito, o Relatório Final Síntese da Transição de Governo, disponível em: bit.ly/3IPvsxC.
2 Os valores plotados no gráfico representam a média simples das notas emitidas por um conjunto de especialistas consultados pelo autor especificamente para esse fim. Evidentemente, trata-se de uma avaliação aproximada, que usa co mo parâmetros de pontuação alguns critérios importantes (porém não exaustivos) da configuração de Estados nacionais republicanos, democráticos e desenvolvidos. Ainda como alerta metodológico, embora a pontuação aplicada de cada quesito a cada governo reflita uma leitura/interpretação pessoal de natureza retrospectiva acerca dos governos findos de Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, pareceu-nos importante essa confrontação com vistas ao esforço comparativo aqui sugerido.
Um novo ciclo de transformações progressistas na sociedade brasileira? bit.ly/41AKA9j

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