Estratégia de desenvolvimento verde ou interesse comercial? Carros elétricos chineses e a reconfiguração geopolítica
Por trás da retórica ambiental do “desenvolvimento sustentável” há uma poderosa disputa entre nações e classes em torno da fronteira tecnológica e dos insumos da sociedade do futuro
Euzébio Jorge Silveira de Sousa, Rafael Rodrigues da Costa e Tomás Braga/Le Monde Diplomatique
Nos últimos anos, o setor de carros elétricos tem se tornado um campo de batalha central na guerra comercial entre grandes potências econômicas, ao mesmo tempo que se coloca como uma peça-chave na mitigação das mudanças climáticas. Este artigo examina a ascensão dos carros elétricos chineses no contexto de tensões comerciais globais e suas implicações para a sustentabilidade ambiental. A China, que incorporou a sustentabilidade como diretriz central em seus planos quinquenais recentes, tem investido massivamente em tecnologias verdes, incluindo veículos elétricos e painéis solares, posicionando-se como líder mundial nesses setores. Enquanto isso, os Estados Unidos e a União Europeia adotam medidas protecionistas para proteger suas indústrias locais, gerando um cenário de disputa que influencia tanto o comércio internacional quanto os esforços globais para combater as mudanças climáticas.
Nos planos quinquenais mais recentes, a China incorporou a sustentabilidade como uma diretriz central de seu desenvolvimento econômico. O 14º Plano Quinquenal (2021-2025), por exemplo, incluiu investimentos significativos em tecnologias eficientes e ecológicas, biotecnologia, novas gerações de TI, produção avançada e energias renováveis. A estratégia chinesa de desenvolvimento verde busca fazer do lucro e da sustentabilidade objetivos complementares, promovendo a inovação tecnológica ao mesmo tempo que reduz a poluição e melhora a eficiência energética. A escolha de setores estratégicos para ampliar investimentos e realizar um planejamento de longo prazo converge com as estratégias adotadas pelos países que tiveram rápido crescimento na segunda metade do século XX.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão, a Alemanha e a Coreia do Sul experimentaram um rápido desenvolvimento econômico, impulsionado por uma combinação de forte intervenção estatal, planejamento econômico rigoroso e a escolha estratégica de setores industriais chave. No Japão, o governo estabeleceu o MITI para coordenar políticas econômicas e industriais, promovendo a industrialização e modernização através de subsídios, empréstimos preferenciais e proteção tarifária.
A Alemanha adotou a economia social de mercado, beneficiando-se do Plano Marshall para reconstruir sua infraestrutura e promover setores estratégicos como a indústria automobilística e a siderúrgica, com uma política monetária estável e incentivos à inovação. A Coreia do Sul, seguindo um caminho similar, implementou planos quinquenais detalhados para direcionar o crescimento econômico, incentivando o desenvolvimento de setores como a siderurgia, petroquímica e eletrônicos, através do apoio a conglomerados familiares (chaebols).
Esses países focaram na educação e na formação técnica para criar uma força de trabalho qualificada, essencial para a competitividade global. O planejamento estatal e a parceria público-privada foram fundamentais para o sucesso dessas economias, permitindo-lhes se tornarem potências industriais no mundo contemporâneo.
Mazzucato destaca que a China é um exemplo de país que tem adotado uma abordagem corajosa ao investir massivamente em energias renováveis, como energia eólica e solar. Segundo a autora, a China planeja construir um mercado de energia eólica do tamanho das redes elétricas dos Estados Unidos e da Europa até 2050 e aumentar seu mercado de painéis solares fotovoltaicos em 700% em três anos. Esse compromisso demonstra a necessidade de investimentos públicos robustos para catalisar a inovação e reduzir os riscos associados ao desenvolvimento de novas tecnologias.
A China reconhece a necessidade de atingir os objetivos climáticos enquanto promove seu desenvolvimento econômico. Em 2023, a China vendeu 9,5 milhões de carros elétricos, superando todos os outros países. O país tem se destacado na produção de veículos elétricos e painéis solares, superando os EUA e a União Europeia em diversas áreas. Ao consolidar-se como um país de elevada produtividade e com salários industriais relativamente elevados, a China utiliza o livre mercado para transformar-se na maior parceira comercial do maior número de países do mundo.
Nos últimos anos, a China tomou a dianteira no mercado de carros elétricos e painéis solares. Com uma combinação de inovação tecnológica, apoio estatal e uma visão estratégica de longo prazo, o país ultrapassou os EUA e a União Europeia, estabelecendo-se como o líder global nesses setores críticos para a transição energética e o combate às mudanças climáticas.
O foco da China em veículos elétricos tem sido intensificado por subsídios governamentais, investimentos em infraestrutura de carregamento e incentivos para pesquisa e desenvolvimento. Montadoras chinesas, como BYD e NIO, têm produzido veículos elétricos com autonomia e desempenho que rivalizam com as melhores marcas globais. A BYD superou a Volkswagen como a marca mais vendida na China e ultrapassou a Tesla como a maior produtora mundial de veículos elétricos no final de 2023. Além disso, a Tesla, ao abrir uma fábrica em Xangai, não apenas impulsionou a inovação local, mas também aumentou a competitividade do mercado chinês.
O que explica tamanho sucesso da indústria chinesa em tão pouco tempo? Há um conjunto de fatores a serem levados em consideração. O primeiro deles diz respeito ao processo de industrialização adotado pela China desde as reformas dos anos 1980, que passa a explorar o uso de múltiplas formas de propriedade, remodelando a relação entre público-privado no país, ao mesmo tempo em que reforça o planejamento governamental aumentando a concentração e centralização de capital, ampliando a eficiência e orientando os investimentos nos setores críticos transformadores do futuro.
Essa integração profunda é viabilizada por uma forte coordenação econômica e planejamento de longo prazo, características de um Estado nacional que participa ativamente do setor produtivo a fim de mitigar riscos e desequilíbrios do mercado.
Em meio às retóricas sobre o intervencionismo chinês, os EUA e a União Europeia respondem com medidas protecionistas, impondo tarifas elevadas sobre carros elétricos e painéis solares chineses. A União Europeia, por exemplo, impôs tarifas de até 48% sobre carros elétricos chineses a partir de julho de 2024.
Essas ações demonstram que por trás da retórica ambiental do “desenvolvimento sustentável” há uma poderosa disputa entre nações e classes em torno da fronteira tecnológica e dos insumos da sociedade do futuro. A crescente conscientização sobre os efeitos das mudanças climáticas parece caminhar em paralelo à escalada de tensão econômica e militar entre as grandes potências, o que torna o tema da transição verde mais um aspecto em disputa.
Os dados em tela reforçam os desafios para uma necessária cooperação global para enfrentamento das mudanças climáticas. Os Estados nacionais são fundamentais neste processo, e a experiência chinesa demonstra que, com planejamento estratégico e apoio estatal de longo prazo, é possível promover o desenvolvimento econômico sustentável combinando inovação tecnológica com distribuição de renda e inclusão social. O modelo chinês possui as suas contradições internas, mas sua experiência exitosa no planejamento pode servir como uma referência ao Brasil para aperfeiçoamento das capacidades estatais rumo a um desenvolvimento autônomo, inclusivo e sustentável.
A reconfiguração das cadeias globais de valor e o acirramento geopolítico dos últimos anos abrem uma janela de oportunidade para o Brasil se inserir de forma qualificada no comércio internacional. Segundo o relatório “Be The Story”, o Brasil é o segundo maior produtor de energia renovável do mundo, ficando apenas marginalmente atrás da Noruega e superando a Nova Zelândia. Dessa forma, o país tem a possibilidade de se consolidar como um player relevante na produção de bens com baixa pegada de carbono. Com um planejamento adequado, o Brasil pode aproveitar os esforços da Nova Indústria Brasil e do Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação para redefinir sua inserção internacional e superar o subdesenvolvimento. Através de políticas estratégicas que incentivem a inovação tecnológica e a sustentabilidade, o Brasil pode não só fortalecer sua economia, mas se transformar em uma referência na construção de uma matriz energética diversificada e de baixo carbono, associando veículos elétricos que efetivamente reduzem o carbono com diferentes tipos de biocombustíveis.
Euzébio Jorge Silveira de Sousa é Assessor Especial do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Professor de Economia na FESPSP e na Strong Business School. Pós-doutor em Economia Criativa pela UFRGS, Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e Coordenador Acadêmico da Cátedra Celso Furtado. Rafael Rodrigues da Costa é Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e Coordenador da Cátedra Celso Furtado. Pesquisador-Visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tomás Braga é Sociólogo e economista, Mestre em Desenvolvimento Regional e Políticas Públicas. Atua como Pesquisador Assistente da Cátedra Celso Furtado.
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Leia também:
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