Teologia política tecnodigital e transmodernidade: sobre o devir político da racionalidade digital
Musk e Trump se unem na consagração de uma relação entre o libertarianismo e a tecnologia vista como um negócio, levando a esboçar a velocidade como uma exigência do mundo contemporâneo
Juan David Almeyda Sarmiento/Le Monde Diplomatique
No atual contexto político dos Estados Unidos, em que Trump ameaça cada vez mais a corrida eleitoral contra Kamala Harris, é necessário entender o papel desempenhado pelos aliados do ex-presidente para que ele possa se restabelecer como uma força política.
Não é apenas o retorno à sua administração passada que mobiliza o enxame emotivo dos eleitores, mas algo maior: trata-se de toda uma maneira de proceder e de entender seu discurso como uma verdade que se impõe na realidade, independentemente de o que ele defende ser real ou não. Isso já foi experimentado durante a pandemia, quando a desinformação sobre a COVID-19 gerou uma crise pública nos EUA, e agora esse instrumento opera dentro da mesma estrutura de uma disputa política como a que estamos presenciando atualmente, na qual qualquer noção de fair play político parece cada vez mais distante.
O filme polonês The Hater, lançado em 2020 e dirigido por Jan Komasa, reflete com precisão o que implica essa fabricação da verdade e o obscurecimento da honestidade política, independente do lado político envolvido, especialmente em uma sociedade dominada pelo império da digitalidade. É nesse ponto que devemos falar sobre o que seria a teologia tecnodigital, com seu santo favorito: Elon Musk. Não é coincidência que esse megaempresário de origem sul-africana, conhecido mundialmente por suas controvérsias políticas (não só com o Brasil, mas também com a Bolívia, Argentina, Venezuela, etc.), tenha sido&nb sp;escolhido por Trump para confirmar uma “comissão de eficiência governamental”. Ele encarna, com sua visão de mundo, uma proposta que oferece aos eleitores algo em que acreditar, um amálgama de economia e moralidade, ou seja, a tecnodigitalidade.
Ao longo do tempo, Musk construiu uma teologia tecnodigital à medida que entrega, em um ato de fé, o futuro da humanidade à tecnologia. Em princípio, isso não estaria errado, mas, quando examinado à luz de seus reais interesses como empresário, levanta questionamentos por estar imerso em um forte impulso pela privatização, pela precarização do trabalho e da ecologia, além de uma ideologia conservadora em relação à moralidade. Trump precisa de Musk para oferecer aos seus eleitores uma fé na tecnologia, não necessariamente na ciência, mas uma visão de futuro que o próprio sistema que defende colocou à beira do apocalipse. Nesse contexto, é preciso considerar a função d a teologia tecnodigital na estrutura do cenário político e os usos que ela possui para consolidar uma visão de futuro além do apocalipse.
É aqui que entra o conceito de transmodernidade, que se refere, como Franco Berardi aponta, a: “a parábola que leva da modernidade industrial expansiva à modernidade tardia semi-capitalista neoliberal, a atual era magmática cujo horizonte parece ser a extinção” (2020, p. 181). Uma era transmoderna é aquela marcada pelo fim absoluto, não mais como uma possibilidade, mas como uma realidade que começa a ser experimentada (secas, incêndios, inundações, novas doenças, pandemias etc.), tudo é resultado de uma abordagem política e social voltada para a produção acelerada e desenfreada de objetos de consumo. Essa abordagem promove, em vez de inovação, nada mais que um exercício de marketing pseudotecnológico, onde o progresso é medido pelo volume de vendas de um produto, e não pela real qualidade tecnológica que ele oferece à sociedade.
Esse cenário implica uma relação inescrupulosa entre negócios e tecnologia, gerando um efeito placebo que faz crer que os avanços tecnológicos apresentados garantem algum tipo de melhoria, quando, no final, são apenas a repetição de produtos já lançados no mercado. Isso é relevante porque permite observar como a teologia tecnodigital se insere no mundo da vida para implantar o tecnoautoritarismo como regime de existência, com o objetivo de transformar a tecnologia e a informática, permeadas pela empresarialização da vida, em uma necessidade para o ser humano. Colocando-a no cerne do sujeito contemporâneo, busca-se a nova inovação subjetiva do sujeito neoliberal: “Aquele mar, cujas ondas apagam o rosto na areia, é agora um mar sem fim de dados. O homem está diluído nele; em um triste registro de dados” (Han, 2022, p. 70).
Assim, Musk aparece como um Jesus Cristo futurista que busca posicionar a tecnodigitalidade como um imaginário capaz de preencher a necessidade humana de esperança contra a extinção. Para Musk, sua função política não é outra senão inserir ainda mais velocidade na paisagem subjetiva; sua função administrativa serve apenas como plano de fundo para um projeto ideológico que busca romper, subjetivamente, com tudo o que, para ele, seja lento demais para existir ou pobre demais para ser atualizado. A visão futurista aparece no horizonte ideológico desse santo tecnodigital de forma ameaçadora: “Não temos nenhuma objeção a declarar que o esplendor do mundo foi enriquecido por uma nova beleza: a beleza da velocidade” (p. 129), diz Filipo Marinetti em seu Manifesto Futurista (1978), uma adoração da velocidade que parece cada vez mais ligada aos modos de existência da humanidade e promovida por uma visão sem alma e antiética do uso de tecnologias no sujeito.
Musk, nesse sentido, une-se a Trump na consagração de uma relação catastrófica entre o libertarianismo e a tecnologia vista como um negócio, levando a conceber a velocidade como uma exigência do mundo contemporâneo. O problema disso, em termos políticos, é que normaliza a desigualdade resultante da incapacidade de acesso a essa tecnologia devido à precariedade econômica, deixando na Terra aqueles que não podem “pagar por Marte”. A transição de uma teologia tecnodigital para uma teologia política tecnodigital traz consigo o surgimento de uma configuração do mundo que se caracteriza por: 1) propor uma economia libertária, na qual o mercado atua como gestor da economia e da política; 2) adotar o conservadorismo moral como regulador da moralidade e da ética; e 3) posicionar a te cnodigitalidade como gestora da intimidade humana, à medida que esta se desenvolve na vida cotidiana.
Isso é algo que vem ocorrendo há relativamente pouco tempo, como quando o presidente argentino Javier Milei expressou seu apreço por Musk e sua visão de mundo, ou quando o mesmo presidente elogiou os empreendedores bilionários como aqueles que “fazem o mundo girar” em seu discurso em Davos. A tecnologia e seus empreendedores têm ingressado no mundo da política com a intenção de promover o progresso econômico em detrimento do progresso tecnológico, o que, no processo, agrava a catastrófica crise ambiental que o mundo enfrenta e amplia ainda mais a lacuna da desigualdade. Além disso, promove uma dinâmica em que o lucro é privatizado, enquanto os danos de longo prazo são compartilhados.
Dessa forma, Musk tenta esconder a extinção propondo um futuro em que todos aqueles que puderem pagar poderão fugir em suas naves para Marte, utilizando, para isso, o dinheiro de seus eleitores por meio da NASA. Essa proposta, quando traduzida em termos políticos, implica que somente aqueles com acesso ao capital poderão pensar em escapar quando o fim do mundo chegar; em outras palavras, os indivíduos comuns terão que arcar com os lucros dos empresários, já que, como dizem os libertários, “não existe almoço grátis” (Friedman, 1977). A teologia política tecnodigital possui a capacidade de criar uma necessidade no sujeito e, em seguida, privatizar o acesso a ela, de modo que o crescimento econômico é gerado por meio de uma barreira. É por isso que a presença política de Musk deve nos alertar sobre como os profetas da tecnodi gitalidade se enxergam. Ele não é apenas um empresário em busca de lucro, mas representa uma violência estrutural e uma visão de mundo que impõe um cenário imaginário no qual todos poderíamos viver em Marte. No entanto, esse cenário acaba relegando todos aqueles que não têm dinheiro suficiente — a maioria de nós que habitamos a Terra — a permanecer aqui e arcar com o “almoço grátis” dos empresários.
Em 1973, David Bowie se perguntou se havia vida em Marte com sua música “Life on Mars?”; para Musk, a resposta é sim, e todos que puderem pagar para chegar lá deverão ter acesso. Musk promove uma hierarquia econômica disfarçada de liberdade econômica, na qual a concorrência levará os privilegiados para fora da Terra e aos portões celestiais do espaço. No caminho para esses portões, abandonar os terráqueos não parece ser uma opção descartada para atingir seu objetivo, e a fase política dessa forma de agir empresarial é apenas uma consequência lógica de um amálgama como a teologia tecnodigital que o próprio Musk pratica em seus negócios e que ele tanto deseja aplicar na administração dos EUA.
Precisamos aprender a nos distanciar dos profetas da tecnologia e entender a relação que temos com ela, algo que a filosofia vem alertando desde o século passado. Somente assim é possível enxergar através da imaginária teologia política tecnodigital que empresários do setor, como Musk, querem vender como o santo graal que salvará a humanidade. A pseudotecnologia não apenas impulsiona o crescimento econômico antes da inventividade científica em si, mas, ao longo do caminho, atores como o próprio Musk não hesitam em promover visões conservadoras que reafirmam mais um projeto ideológico com intenções econômicas do que um projeto científico e investigativo que ajude a melhorar as condições de vida dos habitantes da Terra.
Juan David Almeyda Sarmiento é estudante de doutorado em filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador e professor da Universidade Industrial de Santander (Bucaramanga-Colômbia), assim como integrante de vários grupos de pesquisa do Brasil.
Bibliografia:
Berardi, F. (2020). El umbral. Crónicas y meditaciones (E. Sadier, trad.). Buenos Aires: Tinta Limón.
Friedman, M. (1977). There´s no such thing as a free lunch. Chicago: Open Court Publishing Co.
Han, B. (2022). Infocracia. La digitalización y la crisis de la democracia (J. Chamorro, trad.). Barcelona: Herder.
Marinetti, F. (1978). Manifiestos y textos futuristas (G. Gómez, N. Hernández y C. Sanz, trads.). Barcelona: Ediciones Cotal.
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